De Isabel a Fantinel, segue no Brasil a escravidão que Nabuco previu

05 março 2023 às 00h00

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Já que virou moda fazer “disclaimer” de declarações e artigos, preciso recordar que, em uma infeliz coincidência, este texto vai tocar em um tema presente na “Conexão” anterior, sobre a tragédia anunciada no litoral norte de São Paulo: novamente, estampa-se de forma explícita nas linhas a estrutura escravocrata da sociedade brasileira.
No último carnaval, viralizou nas redes sociais uma postagem compartilhada por pessoas da Região Sul. Era uma imagem destacando orgulhosamente Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul do restante do País: em um mapa, a palavra “trabalhando” cobria os três Estados; para os demais, a expressão era “pulando carnaval”.
No início da semana passada, o Brasil inteiro soube que realmente muita gente no Sul estava pegando no pesado durante os dias de folia: na noite da Quarta-Feira de Cinzas, 22, uma operação do Ministério Público do Trabalho (MPT), em conjunto com Ministério do Trabalho e Emprego, Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF), havia resgatado em um alojamento no município de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, mais de 200 homens que trabalhavam em condições análogas à escravidão.
O grupo havia sido contratado na Bahia para uma temporada na colheita de uvas pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, do Grupo Oliveira & Santana, que atuava como terceirizadora de conhecidas marcas produtoras de vinho.
O roteiro é o mesmo relatado ao longo das décadas nos rincões de Pará, Bahia, Goiás, Minas Gerais e tantos outros Estados considerados “atrasados” por sulistas como os do primeiro parágrafo: na terra da fina flor da prosperidade gaúcha, havia seres humanos submetidos a jornadas prolongadas e exaustivas; alimentados com comida imprópria ao consumo; tendo de comprar em um único estabelecimento “indicado” pelos patrões, com preços extorsivos; e, por fim, mantidos vinculados ao trabalho pelas “dívidas” supostamente contraídas com o empregador.
A “novidade” é que desta vez não eram carvoarias no Cerrado ou fazendas no meio da Amazônia: eram pessoas sendo exploradas na Serra Gaúcha, um símbolo do empreendedorismo, da modernidade nos negócios, do sucesso empresarial no exterior, destino de tantas viagens turísticas. Mais: isso ocorria com o envolvimento de pelo menos três grandes vinícolas (Salton, Aurora e Garibaldi) da região – e do País, já que vem basicamente do Rio Grande do Sul o vinho nacional consumido. Todas até então estavam presentes em feiras internacionais – foram suspensas pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil) até a conclusão das investigações sobre o caso.
Mais ainda: a fiscalização encontrou no alojamento uma máquina de choque elétrico e tubos de spray de pimenta. Testemunhos colhidos pela imprensa com trabalhadores dão conta de o “material” de tortura era usado como intimidação e “corretivo”. Um gaúcho que também esteve como terceirizado revelou que o castigo só se aplicava aos nordestinos. O mesmo homem contou que a jornada começava e terminava muito mais cedo e mais tarde, respectivamente, do que o contrato previa e que a refeição (arroz, feijão e frango) servida no almoço estava quase sempre azeda, porque lhes era entregue ainda de madrugada, e as opções eram ou terminar a jornada forçada sem o dia comer e se arriscar
O crime de escravidão está no artigo 149 do Código Penal e é definido como “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Ou seja, basicamente o relato feito pelos resgatados.
No afã de defender os empregadores, se ‘esquecem’ de pelo menos se desculpar, em nome da classe empresarial que representam, diante das vítimas
O choque diante da notícia e de sua repercussão fez as autoridades da região entrarem no modo “barata voa”, haja vista o teor estapafúrdio, para ser ameno, das declarações emitidas. Primeiramente, o Centro de Indústria e Comércio de Bento Gonçalves (CIC-BG) – uma espécie de “Fecomércio” local –, soltou uma nota oficial espantosa. Pede que o fato seja investigado, mas antes de qualquer conclusão já enfatizam a “idoneidade” do setor, a “participação” das vinícolas na comunidade e a “preocupação” delas com o “bem-estar” de seus “colaboradores/cooperativados”, “estendidas a seus funcionários terceirizados”.
No afã de defender os empregadores, se “esquecem” de pelo menos se desculpar, em nome da classe empresarial que representam, diante das vítimas. Procuram, ao invés, desculpas para o flagrante ocorrido, e da forma mais bizarra: dizem que “há muito tempo” estão alertando para a falta de mão de obra local, cuja causa seria o fato de que “uma larga parcela da população com plenas condições produtivas (…) encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.
Falando em português direto: em última análise, o patronato gaúcho está transferindo ao programa Bolsa Família a responsabilidade pela existência de trabalho escravo na região. Afinal, existe uma população potencialmente ativa na comunidade local, mas que parece preferir o “sistema assistencialista” a trabalhar nas vinícolas. Como quem conhece mais de perto as empresas está recusando a empreitada, alguma coisa está errada: ou o salário está muito aquém ou as condições de trabalho não são muito atraentes. Ou, ainda, as duas coisas.
E aqui fica a questão para os sulistas internautas do primeiro parágrafo: são “acomodados”, “preguiçosos”, aqueles que saem de suas cidades na Bahia, a “terra do carnaval”, deixando as famílias a milhares de quilômetros, para trabalharem em empregos que os gaúchos rejeitam? Pelo que foi relatado pelo MPT, não são acomodados nem preguiçosos, mas talvez ingênuos e com pouco esclarecimento sobre o que encontrariam naquela que foi uma “terra de oportunidades” um século atrás, para pobres imigrantes da Europa.
É histórico que o Sul, região mais branca do País, sempre se sentiu mais “autônomo” em relação ao restante do Brasil, do qual é também mais crítico, como um todo, do que as demais regiões. As vozes separatistas atuais, ainda que minúsculas e até o momento inofensivas, vêm do Sul. Se elas não se materializam em um manifesto, tornam-se timbres lamentosos a cada resultado eleitoral que consideram ruim e pelo qual a democracia os submete ao desejo da maioria dos brasileiros. Desde 2014, pelo menos, a agressividade com os votantes do Nordeste aparece assim que se abrem as urnas.
É exatamente no Norte-Nordeste que estão, porcentualmente, as populações mais pobres e mais carentes do País. O argumento do CIC-BG consiste em esbravejar que os políticos usam o Bolsa Família para tornar reféns as pessoas beneficiadas e, como boa parte se concentra nessas duas regiões, eis aí um curral eleitoral. Interessante observar, no entanto, que as vinícolas buscaram trabalhadores baianos porque gaúchos preferiram ficar com a renda menor do governo do que encarar o regime nas lavouras locais. Ironia perversa: no Sul, tornaram reféns aqueles que buscaram o trabalho.
Baianos não ficam apenas “tocando tambor na praia”, como registrou, em seu nojento discurso xenófobo para defender as empresas envolvidas, o vereador Sandro Fantinel (Patriota). À parte terem saído de lá alguns dos maiores nomes da música brasileira – inclusive percussionistas fantásticos, como Carlinhos Brown e o grupo Timbalada –, baianos compõem o quarto maior eleitorado do País e fazem sua parte pelo progresso do País tanto quanto o Rio Grande do Sul. Em sua fala que tachou os compatriotas como gente “lá de cima”, “sujos” e de segunda categoria, o vereador de Caxias do Sul, o segundo município mais populoso do Rio Grande do Sul, no coração da Serra Gaúcha, corroborou uma previsão mais que centenária de Joaquim Nabuco.
Um dos maiores nomes da história brasileira, o abolicionista escreveu no livro de memórias, “Minha Formação”, publicado em 1900, apenas 12 anos após a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.