A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro, que foi instalada na semana passada pelo presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), bem que poderia ter como nome alternativo “CPMI do Terraplanismo Patriota”. Afinal, se contar o enredo de sua concepção para um estrangeiro desavisado, será preciso explicar a história desde o começo para que ele tenha a chance de entender.

Não é toda vez na história que aqueles que em tese estariam entre os principais alvos de uma investigação procuram forçar… a investigação. Pois, se existe hoje a CPMI para investigar os atos golpistas incentivados por anos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é porque foi exatamente a bancada bolsonarista no Congresso Nacional que sempre a quis.

O governo federal tentou evitar sua instalação até o limite. Por temer a apuração dos fatos? Não teria por quê, já que era justamente contra o novo governo que se levantou a multidão de extrema direita que se concentrou durante meses na porta do quartel do Exército, em Brasília. O que ocorre é que uma CPI – ou CPMI, como é o caso – atravancaria a rotina de matérias legislativas que o Planalto quer que passe logo pelo Legislativo, para que as ações governamentais possam sair da inércia.

Outra questão é que uma investigação puramente política, como será a do 8 de Janeiro, vai servir para que subcelebridades políticas criadas nas redes sociais usem cada fala nas sessões para recortes e postagens nas redes sociais, retroalimentando um ciclo vicioso que compromete a credibilidade da própria política. Em suma, dar palco para supostos malucos – nem tão malucos assim, ou, pelo menos, malucos bem espertos – só beneficia os próprios malucos.

Ocorre que o ponto limite para segurar a CPMI foi ultrapassado com o vazamento de imagens do sistema de segurança do Palácio do Planalto em que o até então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Marcos Edson Gonçalves Dias, aparecia pelas dependências do prédio, conferindo portas e acompanhando bolsonaristas invasores até um local de saída.

À divulgação do material pelo jornalismo da CNN se seguiram militantes direitistas intensificando acusações contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e seus assessores. A tese: estava desmontada ali, pelas imagens, a “narrativa” – palavra, aliás, onipresente na narrativa da direita – de que a depredação dos prédios públicos nos atos golpistas de 8 de janeiro havia sido obra de apoiadores de Jair Bolsonaro (PL).

Na verdade, o que se desmontava era a figura de Gonçalves Dias – ou G. Dias, como é conhecido nos círculos militares e políticos –, uma referência de fidelidade a Lula dentro dos quadros das Forças Armadas, mas que passava, nas cenas reveladas, um ar de quem estava perdido na própria missão. Perdeu, também, a confiança do governo para exercer o cargo e foi demitido mais por isso do que por suspeita de conivência com o golpismo.

Ao mesmo tempo, a partir daquele dia o Planalto teve noção de que, ironicamente, o versículo-slogan repetido pelo ex-presidente era a solução para combater politicamente os apoiadores do ex-presidente: só o conhecimento da verdade dos fatos poderia libertar de vez o governo das amarras impostas pelo discurso bolsonarista. E, apesar da interrupção da rotina de votações que uma comissão desse tipo sempre provoca, não teria mais como fugir de encarar a investigação política.

Voltando ao exemplo do amigo estrangeiro, é bem provável que para ele ou qualquer ser racional, uma CPMI sobre os atos golpistas contra as sedes dos três Poderes só faria sentido se fosse proposta pela situação (quem está no governo e foi vítima de uma tentativa de golpe), não pela oposição (que defende os golpistas e pede a libertação dos que estão presos).

A questão é esta: o bolsonarismo não se coloca dentro da esfera racional dos temas. Fosse assim, não teria o ex-presidente passado anos a fio indo contra a vacina e louvando a cloroquina em meio a uma pandemia que matou quase 7 milhões de pessoas e mais de 700 mil só no Brasil – e uma parte considerável delas, diga-se, exatamente por culpa da pregação negacionista por parte do líder maior.

No círculo da extrema direita, por mais difícil que se possa crer racionalmente, é genuíno o sentimento de indignação contra o que seria a “armação” perpetrada pelo atual governo para incriminar Bolsonaro e seus seguidores. Para eles, a invasão foi comandada por infiltrados em conluio com os “petistas” da nova administração federal.

A coisa se dá ao ponto de procurarem pelo em ovo da forma mais bizarra que se possa imaginar: na semana passada, o jornalista Jorge Serrão publicou no Twitter uma foto com a seguinte legenda: “Pergunta para a CPMI fazer: O que esse ‘patriota’ estaria fazendo com a bandeira do MST na mão, dentro do Palácio do Planalto durante a invasão com depredação do 8 de janeiro??”.

A publicação falsa de Jorge Serrão no Twitter, já com a correção feita por internautas | Foto: Reprodução

A questão é que a foto mostrava um homem de chapéu, ao lado do valiosíssimo e vandalizado relógio do século 17 feito por Balthazar Martinot, segurando duas bandeiras, uma do Brasil e a outra do Rio Grande do Sul – esta, a que foi confundida com a do movimento dos trabalhadores sem terra. Serrão foi demitido no mesmo dia pela Jovem Pan, emissora em que trabalhava.

Não se sabe nem se saberá se a postagem de Serrão foi de uma impetuosidade imperdoável ao bom jornalismo ou de antiética diante da profissão que exerce, publicando e vendo o que iria acontecer – como um “se colar, colou”. O que faz, porém, alguém agir dessa forma é a certeza de que continuará acolhido pela militância de extrema direita.

E se um mau jornalista segue sendo útil para a causa que ele, diante do racional, teria prejudicado com seu engano, então temos aí um movimento que não precisa da verdade propriamente dita, mas apenas do próprio “desejo de verdade”.

Exatamente por isso o bolsonarismo, como qualquer movimento que tem o negacionismo como uma de suas bases, não será vencido com os fatos – o que, de certo modo, torna irônico o slogan de campanha de Bolsonaro. Dessa forma, o que o governo conseguirá ao fim da CPMI, com o estabelecimento da transparência dos fatos e com a apuração mais detalhes sobre como se deu a elaboração e a execução da tentativa de golpe, só poderá convencer os não bolsonaristas.

Chegamos aos tempos em que será inútil até mesmo a missão de um físico que, porventura, levasse um terraplanista ao espaço em um foguete espacial e o fizesse observar a curvatura da Terra enquanto entravam em órbita. Provavelmente, o terraplanista apenas responderia: “Prefiro ficar com a minha opinião”. Não é uma negação do fato, apenas: é o desprezo por ele. Assim se explica muito – ou tudo – do fenômeno que estamos vivenciando.