“Braskem, me diz quanto vale o sal de nossas lágrimas”

(frase no muro de uma casa condenada do bairro Pinheiro, em Maceió)

Sal-gema é, basicamente, um tipo de cloreto de sódio não utilizável como sal de cozinha, mas que serve como componente à indústria petroquímica para fazer artefatos plásticos e sintéticos em geral, como o PVC, um dos mais conhecidos polímeros.

Em 1943, quando na verdade se fazia uma prospecção em busca de petróleo, descobriu-se uma jazida de sal-gema próxima à orla de Maceió, em profundidades superiores a 850 metros. A riqueza mineral ficou intacta até 1970, quando o regime ditatorial militar, por um decreto presidencial – mandava no País o general Emílio Garrastazu Médici –, liberou o início da extração.

A empresa que iniciou o trabalho, então, atendia pelo nada criativo nome de Salgema. Em 1996, depois que a administração mudou, foi rebatizada como Trikem. Uma fusão em 2002 criou a Braskem, que manteve a operação em Alagoas e se tornaria tristemente famosa na cidade a partir de 3 de março de 2018.

Naquela data, após chuvas torrenciais na região do Pinheiro, bairro da capital alagoana, houve ali um tremor de terra. Na escala Richter, que mede abalos sísmicos, o fenômeno chegou a alcançar 2,5 graus. Houve imensas rachaduras em incontáveis imóveis de várias quadras e também crateras se abriram no asfalto, atingindo, inclusive outros bairros nas vizinhanças.

O motivo não era nenhuma placa tectônica batendo contra outra – algo, aliás, impossível no Brasil, que fica no centro de uma, portanto bem distante das áreas suscetíveis a ocorrências do tipo. O buraco era, literalmente, mais embaixo: estudos descobriram que a causa do transtorno que se revelaria uma grande tragédia era a exploração, então por quase cinco décadas, daquele sal-gema do solo da região.

O fim da extração só foi anunciado em 2019, depois do primeiro afundamento, no ano anterior. Já era tarde demais para evitar um desastre na vida de milhares de famílias: uma desocupação de imóveis teve de ser iniciada nas áreas com risco de desabamento, que, além do Pinheiro, chegava também aos bairros Mutange, Bebedouro e Bom Parto. Ao todo, mais de 14 mil casas e estabelecimentos foram desocupados e 60 mil pessoas abandonaram compulsoriamente seus lares nas áreas onde ficam as minas na capital alagoana.

De Salgema a Braskem, foram perfuradas 35 minas de sal em Maceió, na região próxima à Lagoa Mundaú, de acordo com a própria concessionária, que envia relatórios de atividades à Agência Nacional de Mineração (ANM), como previsto por lei, e tem assim licenças operacionais dos seus poços. Até 2018, a fiscalização era de responsabilidade do extinto Departamento Nacional de Pesquisa Mineral (DNPM).

O que acontece agora em Maceió não é diferente do que houve em Mariana em 2015, nem do que ocorreu na também mineira Brumadinho

Nas últimas semanas, houve um agravamento do afundamento do solo – o sal-gema chegava a ser retirado de uma profundidade de 1,2 mil metros, altura de um prédio de cerca de 40 andares –, o que gerou temor não só em Alagoas, mas em todo o País. Calcula-se que a lambança da Salgema/Braskem poderia abrir uma cratera do tamanho do estádio do Maracanã. Nos últimos dias, o alerta foi rebaixado, embora o monitoramento continue em tempo real.

O que acontece agora em Maceió não é diferente do que houve em Mariana em 2015, nem do que ocorreu na também mineira Brumadinho. A primeira das tragédias foi o rompimento da barragem conhecida como Fundão, no distrito de Bento Rodrigues, a 35 quilômetros do centro da cidade de Mariana. O desastre de responsabilidade da Samarco – empreendimento conjunto de duas megaempresas, a brasileira Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton – causou 18 mortes, teve como resultado uma pessoa desaparecida e um rastro de destruição ambiental na Bacia do Rio Doce que vai deixar sequelas pelo menos nos próximos cem anos.

Em Brumadinho, o estouro da barragem em janeiro de 2019 foi bem mais trágico em termos de vidas humanas: 270 pessoas morreram, três delas seguindo ainda desaparecidas – o corpo da 267ª vítima foi encontrado apenas em dezembro do ano passado, quase quatro anos após o rompimento da represa, que é considerado o maior acidente de trabalho da história nacional. A barragem do Córrego do Feijão também era controlada pela Vale.

No caso de Maceió, felizmente não houve mortes até o momento. Lá, em vez de represas e seus dejetos, o que se deu foi uma “cupinização” do terreno abaixo de onde moravam dezenas de milhares de seres humanos. Em todos os casos, o que há é a exploração do solo em prol do máximo lucro sem o mínimo gasto e cuidado com o meio, seja ambiental, seja social.

Altamente predatória, a atividade de extração mineral parece ter uma legislação bastante condescendente não apenas no Brasil. No mundo inteiro, quem detém o controle da exploração são gigantes multinacionais com fortíssimos lobbies para pressionar e dominar governos e parlamentos.

Em meio ao drama do aquecimento global e das mudanças climáticas, os setores primários da economia são os grandes responsáveis pela maior parte dos problemas enfrentados pelo planeta – até porque, obviamente, as indústrias se abastecem da matéria-prima produzida, seja carne, soja, ferro, petróleo, sal-gema ou tantos outros itens de origem mineral, vegetal ou animal.

Como brecar tudo isso? Como deter a sanha humana de avançar indefinidamente em busca de acumular riquezas, não obstante as consequências terríveis da exploração indiscriminada e sem qualquer sustentabilidade, como nos três casos apontados? O encaixe das peças parece trazer sempre um resultado negativo, não se direcionando a outro ponto que não a postergação de uma solução para o problema. Cupins e micróbios também não costumam notar que destroem o que lhes sustenta.

A tragédia de Maceió, na verdade, é um recorte bem adequado para ser apresentado em qualquer edição de COP ou outra cúpula em que se pretenda alertar sobre a realidade limite das condições de habitabilidade do planeta. Em meio a colossos construídos com as fortunas de quem a explora, nossa “casa” está carcomida por terra, céu e mar. Nunca o ditado “por fora bela viola; por dentro, pão bolorento” fez tanto sentido global.

Poderia ser como Caetano Veloso escreveu e cantou sobre São Paulo e a beleza contestável de sua Avenida Paulista apagando a plástica das matas nativas e dos córregos e rios. Mas as tragédias das mineradoras que expõem o Brasil aos olhos do mundo invertem a letra de Sampa: elas são o resultado da força da grana que “cava” e destrói coisas belas.