Em 1977, o quarto presidente da ditadura militar, general Ernesto Geisel, encarava já três anos de mandato carregando nas costas a ressaca do chamado “milagre econômico” – período de 1968 a 1973 em que o Brasil teve um crescimento econômico muito acima de sua média histórica – e uma série de dificuldades econômicas e políticas. A oposição estava cada vez mais fortalecida e militares temiam pelo destino do governo e, com sua derrocada, de si mesmos.

Já seria complicado se o país vivesse uma democracia. Em um regime de exceção, o cenário era ainda mais desolador. A conjuntura, por si, já restabelecia a força dos movimentos sociais, especialmente o estudantil e o sindicalista. Crescia, naqueles anos, no meio dos metalúrgicos do ABC paulista, a liderança do torneiro mecânico Luiz Inácio da Silva, que ainda não havia incorporado o “Lula” a seu nome. O Brasil claramente ansiava por outros rumos.

A saída foi entregar os anéis para não perder os dedos. E, então, Geisel iniciou o processo de abertura política “lenta, gradual e segura”. Para garantir força política, naquele ano o general decidiu fechar temporariamente o Congresso Nacional e editar um conjunto de medidas eleitorais, que ficaram conhecidas como “Pacote de Abril”. Foi um último endurecimento do regime autoritário, mas que aos poucos sentia que tinha de ceder.

Diante do pressentimento de crise econômica e sem direito a votar para escolher seus governantes havia quase duas décadas, a sociedade civil se encorajava. Foi nessa atmosfera que, no dia 8 de agosto de 1977, o professor e jurista Goffredo da Silva Telles Jr. protagonizou um ato que marcou aquele período da história nacional: na secular Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), ele leu um documento diante de milhares de estudantes, professores e populares em geral, o qual mostrava a mais forte posição contrária à ditadura militar até então. Era a “Carta aos Brasileiros”, como ficou conhecida, que pedia o reestabelecimento do Estado democrático de direito e uma Assembleia Nacional Constituinte.

Goffredo utilizou como pano de fundo para a defesa da democracia o sesquicentenário (outra forma de dizer “150 anos”) do advento dos cursos jurídicos no Brasil. Para a mesma data agora, 45 anos depois, o mesmo Largo do São Francisco, da mesma Faculdade de Direito da USP, vai ser palco da leitura de outro documento, inspirado naquele momento decisivo para os rumos da Nação.

Infelizmente, a “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!” coloca o mesmo tema em tela. Isso, mais infelizmente ainda, dentro de uma democracia que deveria estar transcorrendo de forma plena após 34 anos desde a promulgação da Constituição pela qual lutaram Goffredo e os presentes aquele ato de 77. A questão é que, diante do discurso golpista de quem diz desconfiar das urnas que sempre o elegeram, a defesa das instituições e da democracia precisou voltar à pauta – mesmo vivendo, pelo menos em tese, em uma democracia.

O texto do documento é contundente em vários pontos, mas o trecho a seguir é bastante direto:

“Nos próximos dias, em meio a estes desafios, teremos o início da campanha eleitoral para a renovação dos mandatos dos legislativos e executivos estaduais e federais. Neste momento, deveríamos ter o ápice da democracia com a disputa entre os vários projetos políticos visando convencer o eleitorado da melhor proposta para os rumos do país nos próximos anos. Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições. Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o estado democrático de direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional. Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.”

O documento poderia ser visto como mais uma carta de repúdio entre tantas desde o início do governo de Jair Bolsonaro (PL), mas não: ela tem a assinatura de autoridades que vão muito além do espectro que costuma protestar rotineiramente contra o presidente e suas arbitrariedades. Desta vez, há subscrevendo o texto com trechos como o acima transcrito muitos dos nomes que fabricam o PIB nacional. Gente que, há quatro anos, estava totalmente fechada com a candidatura antipetista do capitão da reserva.

A gota d’água para que grupos dos mais influentes na economia nacional, como as maiores entidades de banqueiros e empresários, tomassem o discurso da estabilidade democrática para si foi a tétrica exibição de fraudes inexistentes no sistema eleitoral para embaixadores, em reunião convocada por Bolsonaro.

Diante do documento e vendo quem o subscreve, Jair Bolsonaro mostrou um tom irônico. Chamou-o de “cartinha”, fazendo-se de surpreso ao ser apresentado, por meio de seu discurso com mentiras sobre as urnas, como uma ameaça à democracia. Nos bastidores, no entanto, a adesão de algumas das personalidades e entidades mais poderosas do País fez a trupe palaciana sentir o baque.

Bolsonaro nunca contou com jornalistas, professores, artistas e celebridades do tipo para encampar sua política. Pelo contrário, sempre fez questão de colocá-los como alvos de seus ataques, aqueles para quem “a mamata acabou” e, por isso, sempre o criticaram. Mas contava que ainda tivesse o apoio da elite, que sempre viu no PT uma muralha para a implantação de sua agenda de reformas liberais. Pois, para ficar com os dedos, mesmo entregando os anéis, à semelhança de Geisel e dos militares de 77, o PIB nacional deu sua sentença ao atual presidente.

A questão que nos impõe, como sociedade brasileira, é ter de haver tal movimentação para salvar o País de um golpe com dada marcada para o dia do bicentenário da Independência – no caso, um autogolpe. O retrocesso que os últimos anos nos trouxeram se materializa na espécie de reedição de um documento feito para desafiar a ditadura. A iniciativa, claro, é bem-vinda e necessária. Triste é ter de ser colocada no papel, literalmente, em plena democracia.