Há um certo consenso entre os analistas políticos, os analistas em geral e os políticos também sobre a principal causa do impeachment de Dilma Rousseff (PT), levado a cabo mesmo sem que, de fato, ela tivesse cometido algum crime de responsabilidade, fosse por “pedaladas fiscais” ou por edição de decretos de créditos suplementares.

Na verdade, como sustentaram – embora muitos anos depois – gente do calibre de Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), ou o próprio beneficiário direto da deposição de Dilma, o ex-presidente Michel Temer (MDB), o que houve em 2016 foi uma queda por falta de sustentação política. Em outras palavras, a petista caiu por não ter uma base de apoio.

O detalhe é que o Brasil não tem um regime parlamentarista e não há previsão constitucional para que se retire um(a) presidente da República assim. Se não está na Constituição, o que é foi o impeachment? Um golpe. Não que fosse novidade na história da Nova República – há muitas fragilidades sobre o aspecto constitucional do crime de responsabilidade que Fernando Collor teria cometido para ter tido seu processo admitido na Câmara dos Deputados, renunciar ao cargo e, ainda assim, ver seu impedimento ser aprovado pelo Senado.

Desde que o “tchau querida!” dos deputados para Dilma ecoou em abril de 2016, o poder do Legislativo em Brasília só cresceu. O próprio Temer só não teve o mesmo destino que a antecessora a quem ajudou a derrubar porque sabia jogar o jogo pesado do pessoal do Congresso: basta dizer que o emedebista já havia sido presidente da Câmara em duas oportunidades – de 1997 a 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e de 2009 a 2010, quando Luiz Inácio Lula da Silva (PT) exercia seu segundo mandato à frente do Palácio do Planalto. Mesmo assim, se rendeu à situação.

Se a “raposa” Temer passou pelo que passou, o que se poderia esperar de Jair Bolsonaro (PL), o “aluno do fundão” do plenário? Nada menos do que um desastre no papel de um presidente que precisa se relacionar com o poder do Legislativo. E Jair não decepcionou, principalmente depois que Arthur Lira (pP-AL) chegou à presidência da Casa ao lado. Pelo orçamento secreto, o deputado alagoano tornou-se um primeiro-ministro de fato, dando em troca a garantia do término do mandato, com vistas grossas a cada um dos 158 pedidos de impeachment que a Câmara recebeu de mais de 1,5 mil pessoas e mais de 500 organizações.

Se a Bolsonaro bastava não acabar com o brinquedo que lhe garantia adulações de segunda a sexta e passeios de moto e jet ski aos fins de semana, era sabido que, com Lula de volta ao Palácio da Alvorada, a relação Executivo–Legislativo iria mudar. E o petista veio com sangue nos olhos para assumir o mandato. Nem a tentativa de golpe de 8 de janeiro serviu para pará-lo em sua determinação – muito pelo contrário. Aliás, o Lula do terceiro mandato tem se mostrado bem menos político, no sentido de conciliador, do que seu próprio passado no cargo.

Se o presidente do Executivo não é o mesmo – mesmo sendo o mesmo –, muito menos o presidente da Câmara. Lira quer continuar “primeiro-ministro” e, a cada semana, expõe uma crítica ou insatisfação diferente sobre o governo. Antes era a coordenação política, depois o PT, depois o conjunto de ministros. De passagem pela Globonews, na semana passada, não se sabia quem era entrevistado e quem era comentarista político. O deputado-mor disse que não se sentia pressionado pela operação da Polícia Federal contra um aliado próximo (o assessor parlamentar Luciano Cavalcante, que formalmente trabalhava na liderança do pP na Câmara, mas que todos sabiam ser o “homem” de Lira).

Ocorre que também o restante dos envolvidos não são os mesmos de sete, oito ou dez anos atrás, quando Dilma sofria seu calvário. Naquela época, quando surgia a Lava Jato, a operação era aprovada por maioria absoluta dos brasileiros e seu clamor escorria pelas páginas dos jornais e telas de TV; o Judiciário “convencional”, simbolizado então pelo Supremo Tribunal Federal (STF), se via acuado diante da opinião pública que agigantou aquele juiz de primeira instância de Curitiba chamado Sergio Moro. E os militares, ajuntados de novo na cabeça do poder por Temer, estavam também de prontidão para “tirar o PT”. Eduardo Cunha pode ter tranquilidade total, portanto, para imolar o mandato de Dilma.

Em 2023, a Lava Jato se reduziu a pó. Deltan Dallagnol, o procurador-chefe que virou deputado federal cassado em tempo recorde, agora pede pix com a ajuda dos céus. Moro, ex-juiz, ex-ministro de quem ajudou a eleger e um iminente ex-senador, se mostrou um Batman de papel. A grande mídia, ainda que não apoie o PT, apoia muito menos a baderna instalada em Brasília a partir de Bolsonaro e da qual a Câmara dos Deputados foi cúmplice. Os militares estão preocupados em salvar a própria pele após o desastre de avalizar o desgoverno passado. E o STF se revigorou como sustentáculo do Judiciário e das instituições ainda que de uma forma um tanto insólita, Alexandre de Moraes à frente.

Provavelmente o mais empoderado deputado de todos os tempos, Arthur Lira não vem tendo a prudência exigida pelas circunstâncias para ‘pressionar’ o presidente

Portanto, ao assumir seu segundo mandato, em 2015, Dilma estava fragilizada por uma eleição que foi vencida a muito custo: teve de ceder na economia, em processo de entrada em crise, indicando um ministro liberal para ocupar a Fazenda, Joaquim Levy, perdendo ali o apoio da própria base sem ganhar por isso créditos extras nem do mercado nem dos políticos. Em 2023, Lula colocou como o ministro, no mesmo cargo, Fernando Haddad, de sua mais alta confiança do presidente e a economia está em saída de crise, com sinais positivos do mercado interno e de agências de risco do exterior.

No governo, Lula não é sem jogo de cintura como Dilma. Tem o “couro grosso”, curtido inclusive em mais de meio milhar de noites de cela. Portanto, embora Arthur Lira seja provavelmente o mais empoderado deputado de todos os tempos, as circunstâncias pedem uma prudência que o parlamentar não vem tendo para “pressionar” o presidente.

Talvez a melhor definição para o papel que Lira passou a desempenhar tenha sido dada, veja só, por um petista ao colunista Chico Alves, do portal UOL. Mais do que um simples “companheiro”, o vice-presidente nacional do PT, o deputado federal fluminense Washington Quaquá:

— Precisa primeiro entender Lira como um fenômeno político brasileiro. Hoje, o presidente da Câmara é o presidente do sindicato dos parlamentares, ele representa os interesses dos parlamentares. Não tem mais um Ulysses Guimarães, que defendia teses. Hoje você tem um cara que defende o mandato dos deputados. Lira faz isso muito bem.

Lula, um dia, foi um “fenômeno brasileiro” saído do sindicalismo para a política. Lira, mais de 40 anos depois, é uma espécie de perversão da trajetória: fez com a política seu próprio sindicato. A ver, o que sairá do balcão de negócios que se tornou a Praça dos Três Poderes.