Vamos começar o texto desta coluna falando de dois fatos aparentemente desconexos. A partir daí, vamos concatená-los entre si e com um terceiro tópico, que é a altíssima possibilidade do petista Luiz Inácio Lula da Silva se tornar o primeiro brasileiro eleito por três vezes presidente da República e, com isso, fazer retornar as forças de esquerda ao poder. Isso ocorreria após menos de sete anos desde a deposição de Dilma Rousseff (PT) em um impeachment bastante contestável.

Na quinta-feira, 1º, a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner – maior nome da esquerda de seu país –, não morreu porque não era o dia dela, para usar uma expressão tipicamente brasileira. Um extremista de direita (no padrão “lobo solitário”, ao que tudo indica, talvez apenas com ajuda da namorada) atirou contra a cabeça da líder peronista com a pistola a cerca de duas dezenas de centímetros. O tiro lhe estouraria os miolos – se a arma não tivesse falhado.

No domingo, 4, depois de um processo de construção política de um texto que exigiu muita discussão, o eleitorado do Chile rejeitou veementemente a proposta apresentado pela Assembleia Constituinte empossada em julho de 2021. Aproximadamente dois terços da população disseram “não” à nova Constituição, que substituiria a do regime ditatorial de Augusto Pinochet. Foi uma duríssima derrota para o jovem presidente Gabriel Boric, com um governo de esquerda ainda no nascedouro.

No Brasil, a três semanas da eleição presidencial mais polarizada da história, Lula encontra-se em uma situação de possível vitória já no primeiro turno. Todas as pesquisas dão a soma dos votos de seus adversários dentro da margem de erro – para cima ou para baixo – em relação a sua própria intenção de votos. Para vencer já no dia 2, bastará a ele conseguir metade mais um dos votos válidos.

Entretanto, vencer a eleição é apenas o primeiro desafio – e talvez menos complicado. Tomar posse será outro, porque o período de transição prometerá muitas emoções, por razões óbvias. No entanto, esses terão sido apenas os dois trabalhos hercúleos iniciais do cada vez mais provável terceiro governo do petista. Dois dos outros estão postos nas ocorrências exemplares que trouxeram os países vizinhos nas últimas semanas.

Da Argentina, no episódio de atentado contra a vida da vice-presidente, vem a lição sobre o cuidado com a segurança e o extremismo. O fato de o acusado ser brasileiro é o de menos importância na história – afinal, ele se mudou para lá quando ainda tinha 6 anos. Em um Brasil com radicais armados até os dentes pelos decretos expedidos por Jair Bolsonaro (PL) – ilegais, diga-se, por ferirem a lei em que deveriam se basear, o Estatuto do Desarmamento –, Lula será um iminente alvo de ataques semelhantes. É preciso entender que essa espécie de “espada de Dâmocles” sobre a integridade física dele não acabará com a vitória no processo eleitoral. Mais do que entender, se adequar ao “novo normal” em viagens, visitas e demais eventos.

Do Chile, a questão é uma segurança não de ordem pessoal, mas de governança: a desaprovação do texto da nova Constituição teve muito a ver com a introdução, nele, de uma grande quantidade de pautas progressistas e/ou identitárias em um país que, apesar dos avanços, ainda é muito conservador – como de resto é, também, toda a América Latina. Num cenário em que se planta tão fortemente uma fake news sobre um suposto fechamento de igrejas caso Lula e o PT voltarem ao poder, qualquer sinal de enfrentamento na área de costumes vai ser extremamente vigiado com lupa pela oposição radical.

Isso acontece porque o bolsonarismo é anterior a Bolsonaro. Como movimento, apenas não tinha o nome daquele que conseguiria capitalizar com o sentimento reacionário que já pairava no ar e havia ficado bastante evidente na ressaca das jornadas de junho de 2013 e nas eleições do ano seguinte.

Será um cenário muito diferente do que Lula encontrou em 2003, depois de derrotar o tucano José Serra e receber a faixa presidencial do presidente – e correligionário de Serra – Fernando Henrique Cardoso. Desta vez, caso eleito, o petista não vai ter a companhia de seu antecessor na cerimônia. A plateia de militância petista também não terá a mesma liberdade nem a tranquilidade com que ocupou a Praça dos Três Poderes há quase 20 anos. Novamente, é preciso usar neste texto a palavra segurança.

De positivo, para Lula, estará o fato de carregar nos ombros a experiência de oito anos sentado na cadeira principal do Palácio do Planalto. Político que sempre se valeu de seu lado instintivo, o petista sabe que está praticamente obrigado a fazer um governo de transição. Se não houve nada de tão revolucionário em sua primeira passagem, muito menos algo nesse sentido deverá ocorrer nessa sua eventual segunda temporada no epicentro do poder em Brasília.

Outro fator contrário é que, independentemente do resultado, as ruas foram dominadas pela direita e, depois, pela extrema-direita nos últimos anos. Os movimentos sociais – ligados à educação, à saúde, à reforma agrária etc. –, que constituem a base forte da esquerda, poucas vezes viram seus atos se notabilizarem pelo volume desde que o PT subiu ao poder. Já na derrocada do governo Dilma era visível que o apoio popular de massa estava enfraquecido.

Sendo assim, é de se esperar que uma oposição ferrenha exerça pressão desde o primeiro dia de governo. A propósito, não seria nada exagerado dizer que essa força contrária já vai atuar em alta rotação assim que o resultado oficial registre, conforme todos os indícios apontam, a vitória de Lula, seja no primeiro turno, seja em um duelo final.

Do alto de seus quase 50 anos de negociações com o poder, como sindicalista ou político, o ex-presidente já fez um “hedge” – expressão em inglês usada pelo mercado financeiro para designar uma proteção contra riscos – ao colocar o ex-tucano Geraldo Alckmin (PSB) como seu vice. Se não há um cenário que mostre a extrema-direita parando de ocupar as ruas contra um futuro governo petista, a tendência é que o mesmo não ocorra nas cadeiras do Legislativo federal: não deverão restar muitos bolsonaristas “raiz”, até porque boa parte deles, sem seu líder, vai ter de se adequar ao sistema para sobreviver na política, cedo ou tarde.

Alckmin é a prova de que Lula não quer ver repetir no Brasil a instabilidade que atinge outros países latino-americanos. A esquerda tradicional vai lutar por suas pautas, mas a fila das demandas certamente terá outras prioridades.

Político “instintivo”, o ex-presidente não quer ver repetir no Brasil, em seu eventual governo, a instabilidade que atinge outros países latino-americanos