Se o “mito” for pragmático uma vez na vida, com a habilidade de apenas não atrapalhar, forma uma boa base de apoio e volta a ser competitivo para 2022

Se existe uma falácia que entra como música nos ouvidos de, quem sabe, 95% da população é a disparada de críticas ao Centrão e aos políticos que o compõem. Na tentativa de ganhar votos do eleitorado em geral, mas principalmente da classe média – essa sempre mais moralista que a média dos brasileiros –, jogar pedra nas genis do Parlamento é uma tática boa para ganhar a Presidência e com resultados comprovados. Foi assim com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2002 e com Jair Bolsonaro (então no PLS, hoje sem partido) em 2018.

Para as eleições de 2002, o PT veio como o partido que não roubava e não deixava roubar. Menos de três anos depois, já tinha o mensalão nas costas no governo. Candidato, Bolsonaro assumiu o compromisso de ter um ministério técnico e expelir o Centrão do controle dos postos de nomeação – “acabou a mamata, talquei?”. Obviamente, estamos comparando os discursos, não as práticas: Lula, com todas as críticas que se possam fazer, mostrou um rumo de gestão; o “mito” é puro desgoverno desde que se sentou na cadeira principal do Planalto.

Ciro Nogueira com seu novo chefe, Jair Bolsonaro: a chance de dar rumo pragmático ao desgoverno atual | Foto: Isac Nóbrega / PR

Os outros supostos 5% – porcentagem nada estatística e totalmente aleatória, registre-se, a título de exemplificação – são os que acompanham a política em seu dia a dia, a ponto de saberem em que ritmo vai a (des)toada da democracia brasileira. Sabem que o Centrão não é causa, mas consequência. Partidos fracos e múltiplos no Legislativo e base sempre minoritária do mandatário da vez geram a necessidade de negociação com pequenos grupos e, a partir daí, vem a imposição do que foi rotulado de presidencialismo de coalizão. Ou política do “toma lá dá cá”, em uma linguagem mais popular.

Ser antissistema é ser contra tudo isso que está aí, no parágrafo acima. Era o que Bolsonaro prometia em 2018, embora durante 28 anos no baixo clero – a metade deles no PP – tenha também ele se beneficiado pelo nada franciscano “é dando que se recebe” da política tradicional.

É a democracia que temos. Os deputados que compõem o Centrão foram, desde sempre, eleitos e reeleitos pelas urnas, de pano ou eletrônicas. Veem a política não por viés ideológico, mas com muito pragmatismo: fizeram dela seu negócio e estão interessados em assim continuar, de forma profissional – é bom grifar essas palavras sempre ao tocar nesse tema –, resolvendo um problema localizado para o prefeito de um município aqui, levando uma emenda para outro ali, fazendo caixa eleitoral e assim renovando o mandato a cada quatro anos.

Posto isso, é preciso lembrar que, ao contrário do que Bolsonaro alegou semanas atrás – em sua capacidade única de falar meia verdade ou faltar com ela na íntegra –, o Centrão não foi criado para tentar eleger o tucano Geraldo Alckmin nas eleições presidenciais de 2006. Já havia então quase duas décadas de história do bloco, que surgiu em 1987, nas discussões da Assembleia Constituinte, com a união de parlamentares de centro-direita para enfrentarem os progressistas – basicamente o que seria a “esquerda” do PMDB, a ala dissidente que originaria o PSDB. Mas nada de embate ideológico: o negócio, desde o início, era servir a interesses do governo ou de grupos lobistas em troca de cargos comissionados em todos os escalões e benesses variadas.

Além de deter como puderam os avanços progressistas da Constituinte, o primeiro feito do bloco suprapartidário foi aprovar cinco anos para José Sarney (PMDB), o vice que tinha virado presidente. Desde então, é sempre assim: para aprovar algo estratégico, o governo vai ao balcão do Centrão. Em alguns casos, como a reforma da Previdência em 2019, a negociação corre a despeito da participação do Executivo, por grupos financeiros ou empresariais interessados que bancam mandatos.

Centrão e o impeachment
Foi o Centrão que, não atendido ou insatisfeito com o atendimento, levou a cabo o impeachment de Fernando Collor (PRN), em 1992, e de Dilma Rousseff (PT), em 2016. Foi o Centrão que, depois de ver “abrir novas portas” – traduzindo, receber vultosas emendas parlamentares –, salvou Michel Temer (MDB) por duas vezes, ambas em 2017, de ser processado no Supremo Tribunal Federal (STF) após denúncias da Procuradoria-Geral da República (PGR). Em 1992, em 2016 e em 2017, Jair Bolsonaro era deputado e votou. Ajudou a condenar Collor e Dilma e quis o prosseguimento das denúncias contra Temer.

Apesar de se dizer “outsider”, ele sabe bem que o futuro de qualquer presidente está nas mãos dos deputados e senadores. Mais especificamente, do Centrão, sem o qual nada anda, nem processo de impeachment.

Sendo assim, a opção de trocar o amigo militar pelo senador Ciro Nogueira (PP-PI) no comando da Casa Civil tem muito a ver com tudo o que presenciou naquela outra Casa ali do lado, a qual frequentou de 1991 a 2018. Sem exagerar, o general Luiz Eduardo Ramos era um amador negociando com políticos; já Ciro Nogueira é um CEO na mesma missão. E nem se pode dizer que isso seja apenas figura de linguagem: o senador é presidente nacional do PP, onde está a nata do Centrão.

Com previsão de alta receita para o ano que vem, por causa da melhora da economia e também à custa da inflação que tangencia a elite e flagela os mais pobres, Bolsonaro tem o caixa cheio para satisfazer os deputados a ponto de evitar com tranquilidade que se coloque em pauta, literalmente, a discussão do impeachment.

Mas esse é só o futuro imediato. Dizem os sábios de Brasília que o Centrão não se vende nunca, apenas se coloca em aluguel. Com direito a rescisão do contrato a qualquer momento em que o locador se mostrar insolvente. Mas Bolsonaro, se uma vez na vida for realmente pragmático e tiver a habilidade de apenas não atrapalhar – o que já seria um feito –, pode ir além: ganhar a confiança do Centrão, formar com ele uma boa base de apoio eleitoral e voltar a ser competitivo para o ano que vem.

Afinal, a máquina pública tem o condão de fazer milagres nas urnas: em três vezes, nenhum dos candidatos à reeleição foi derrotado. É bem verdade que do outro lado tem Lula, para quem brilham os olhos de imensa parcela dos eleitores – e também de parte dos mesmos deputados do Centrão alugados ao bolsonarismo, mas que com conviveram muito bem com o petista.

Está nas mãos de Jair Bolsonaro a chance de deixar sua turba ideológica falando sozinha e, enfim, começar a governar. Não para os brasileiros, que isso dele não se espera; mas para si próprio, por mais quatro anos disso que está aí, aprovados pelo exercício do voto soberano.

O grande drama para a Nação é que exalar golpismo por todos os poros é a razão de respirar do “mito”. Muito antes de ele sonhar ser presidente. Spoiler? Bolsonaro não suportaria viver sem suas bravatas antidemocráticas. E o primeiro curto-circuito com o Centrão virá com a derrota do projeto do voto impresso.