As marretadas do Estado: uma crucificação social

21 junho 2022 às 11h47

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“Veja, escute e lute por aqueles que se encontram em situação de rua! Saia de sua ignorância e sua ‘cegueira branca’”
Allana Beatriz Soares de Sousa, Bianca Ribeiro Soares, Lucas Diórgenes Carvalho Freitas e Wanessa do Nascimento Souza
@padrejulio.lancellotti. Abra o Instagram, agora! Pesquise essa arroba. Não se aconchegue. Prepare-se para pisar (virtualmente, pelo menos) no território dos excluídos. Território esse que é sinônimo de controle — produto da força de um projeto higienista e historicamente adotado por você sabe quem. Ora, não sabe? É aquela mesma autoridade que em 1988 — com um brado retumbante e Constitucional — prometeu que o acesso à moradia seria um direito social garantido a todos os cidadãos. É, também, a mesma soberania que, em agosto de 2004, nas escadarias da Praça da Sé, deixou secar o sangue inocente do Massacre. E, pasme! De mesmo modo, é aquele que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua pelo Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009.

Se ainda está confuso, neste plano tão nítido, alguém pode te ajudar… Munido de uma máscara bem reforçada, um velho sacerdote troca a batina pelo avental. O ostensório, o cálice e o altar reconfiguram-se em revolucionárias formas de marmitas, absorventes e, às vezes, uma marreta. Na última Sexta-Feira Santa, conduzindo a peregrinação pela tradicional Via-Sacra do Povo, a resposta do Estado não foi diferente. Em entrevista ao portal de notícias do jornal “Correio Braziliense”, o padre Júlio Lancellotti relata o percurso da manifestação religiosa onde, frente à crueldade e à truculência policial, “nós devolvemos com flores”. Numa megacidade, um homem religioso e a comunidade (mais de 1 milhão de seguidores) de seu perfil — nada esteticamente “instagramável” — são porta-voz e rede de ajuda da barbárie social, definitivamente, de ordem genocida, enfrentada pela população em situação de rua. O problema, contudo, é que sozinhos, visto o tamanho continental do país verde e amarelo, não conseguirão assistir o fenômeno sociodemográfico, cultural e político da população em situação de rua no Brasil. É debochado, satírico e bruto. O calvário, para a população em situação de rua, continua sendo a crucificação social.
Agora, depois desse mergulho no mar dos excluídos, te faço um convite: pense comigo… Possivelmente, vivendo no Brasil, você já desejou se juntar à massa de indiferentes ao assunto; afinal, está difícil para todos, não é?! Gente indiferente deve, no mínimo, ter uma preocupação a menos. Eu já quis. Já desejei acordar, tomar um banho e caminhar para o trabalho ignorando todos aqueles que clamam, diariamente, por ajuda. É assim que parte significativa da população age abraçada por discursos que colocam o morar na rua como uma opção. É assim que se fundamenta a arquitetura hostil e o seu discurso horripilante: coloque parapeitos nesta janela aqui, parafusos naquele degrau lá, algumas grades na porta da loja – de preferência pontiagudas – e, para finalizar com chave de ouro, vamos dividir o banco da praça… Ninguém merece não ter onde sentar para tomar água de coco depois de fazer a caminhada matinal; onde já se viu alguém usar um banco público como cama?

E foi assim, encarando esse discurso com benevolência àqueles que têm seus direitos básicos negados, que se tornou breve, para mim, o desejar a indiferença. Não dá! Isso, definitivamente, não é — assim como o segregar — humano. Gente indiferente não é gente e, em um país marcado pelas diferenças de seu povo, ser indiferente deveria ser crime, tal como a aporofobia. Triste é saber que, por vezes, nem mesmo grandes delitos causam a comoção que deveriam causar. Você acredita, por exemplo, que todos aqueles com quem convive se lembram ou, ao menos, ouviram falar de massacres como o que há pouco mencionei (o Massacre da Sé)? Aquela chacina está prestes a completar 18 anos e nos leva a dois outros questionamentos: “há realmente uma punição?” “De que lado estão as autoridades?” A resposta para a primeira pergunta é não; para a segunda, com toda a certeza, não estão do lado do povo – ainda que isso afirmem.
A realidade dos centros urbanos nos mostra, ainda, que os princípios e as diretrizes da Política Nacional, apesar de donosos, parecem não sair do papel. Nos obrigando a estabelecer movimentos independentes que auxiliem no resgate dos direitos básicos como moradia e trabalho dignos, um salário suficiente para o sustento e, também, ao acesso à saúde para aqueles que se encontram nas ruas do país. Que Brasil é esse que normaliza o viver na rua e culpabiliza aqueles que assim vivem? Alguém optaria por viver no desconforto, escolheria passar necessidades, ser maltratado e injuriado?

Encobertos pelo frio e perfumados pelo esgoto, acomodados pelo concreto; a casa deles é em todo lugar, mas nem por isso chamam de lar. Não há um retorno para o lar porque não há para onde ir. É uma “invisibilidade vista”: O quê? Como podem ser vistos e não vistos? Eles estão ali, presentes no ir e vir, nas labutas do dia-a-dia. É visto pelos olhos de todos, mas não enxergado pelos prismas constitutivos.
Eles não são humanos, para a Política Nacional, são espetáculos que afrontam a dignidade. As diretrizes são como palavras ideais, mas esvoaçam pelo palpável entregando a verdadeira complexidade; na vida real, no encontro com a realidade, impera a contrariedade em forma de arquitetura hostil. Vivemos em uma Política de morte? Agora, o Estado pode escolher, em micro ou macro escala, quem deve viver ou morrer? E quem optaria, no momento mais lúcido, escolher viver na morte? A verdade é que as calçadas representam o purgatório, e lá encontra-se, pelos menos simbolicamente, a morte em vida.
Ironicamente, o Enem de 2021 teve o tema invisibilidade social; enquanto isso, o número da população que se encontra na rua só aumenta. Esse governo e essa necropolítica não são de hoje mas, claramente, se tornam cada vez mais estarrecedores. Tem-se que defender o cidadão de bem e seu direito à propriedade da arma — que se encontra, segura, embaixo de sua cama —, mas é dever do estado esquecer daqueles que mais precisam de sua ajuda? E o que fica, ao final de toda essa exposição, a se fazer? Primeiro, precisamos delimitar o trabalho do Estado: a tarefa que o deixamos não é algo impossível, pedimos apenas que se faça o que já está estabelecido em lei, na própria Constituição Federal: a garantia, pelo Estado, a moradia. Uma tarefa que já está embebida aos executivos federais, estaduais e municipais, mas infelizmente uma tarefa esquecida.
Deixamos também uma tarefa à população em geral: veja, escute e lute por aqueles que se encontram em situação de rua! Saia de sua ignorância e sua “cegueira branca”, como nos mostrou uma vez Saramago. É tarefa a todos lembrar que aquele monte de roupas não é uma peça arquitetônica de decoração da cidade, mas, sim, uma pessoa completamente diminuída de sua humanidade.
Allana Beatriz Soares de Sousa (FE/UFG), Bianca Ribeiro Soares (FE/UFG), Lucas Diórgenes Carvalho Freitas (FE/UFG) e Wanessa do Nascimento Souza (FE/UFG) são estudantes do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás, orientadas(os) pela professora-doutora Gardenia de Souza Furtado Lemos, na disciplina de Psicologia e Políticas Públicas Sociais: Famílias e Comunidades em 2021/2. Contato: [email protected]