Os botos e as florestas alagadas do Araguaia

10 maio 2025 às 21h00

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Por Cristiane Gonçalves de Moraes, Eduarda Stefany dos Santos,
Priscila Souza Rodrigues de Lima, Clara Gomes Martins e Nathan Clovis Silva Vaz*
Especial para o Jornal Opção
Golfinhos que habitam os rios se diferenciaram de seus parentes marinhos há cerca de 18 milhões de anos e, atualmente, possuem distribuição geográfica restrita ao sul do continente asiático e aos rios das bacias do Amazonas, Orinoco e Tocantins-Araguaia, na América do Sul. Com base em evidências moleculares, em 2014 foi proposta a classificação das populações que vivem nos rios Araguaia e Tocantins como uma nova espécie: Inia araguaiaensis, conhecida popularmente como “boto do Araguaia”. Esta hipótese fundamentou-se na descoberta de que esses animais pertencem a uma linhagem que se separou há aproximadamente dois milhões de anos daquela que habita os rios amazônicos, sendo reconhecida assim como a única espécie de golfinho fluvial exclusivamente brasileira (ICMBio, 2019).
Assim como seus parentes amazônicos, os botos do Araguaia seguem os ritmos naturais dos rios, ocupando diferentes habitats ao longo do ciclo hidrológico. Eles vivem preferencialmente em áreas inundadas no período de cheia, reconhecidas pela diversidade e abundância de peixes, e no canal principal dos rios, durante a estação seca. Para explorar estes ambientes específicos, os botos adquiriram, ao longo da sua evolução, adaptações anatômicas, como o alongamento do rostro (parte frontal da face) e a flexibilidade do corpo, que auxiliam na movimentação e captura de peixes entre galhos e troncos de florestas alagadas. Por outro lado, durante a seca, os animais utilizam da sua agilidade para encurralar cardumes próximos aos bancos de areia, em um comportamento conhecido como “estouro do boto”.
Lacunas no conhecimento e ameaças aos guardiões dos ecossistemas fluviais
Como predadores de topo da cadeia alimentar, os botos desempenham a função de regular diferentes níveis tróficos, contribuindo para a biodiversidade nos ecossistemas fluviais. Além disso, são importantes indicadores da qualidade ambiental, pois sua presença reflete a saúde dos rios e a integridade dos habitats aquáticos. No entanto, apesar de sua importância, ainda conhecemos muito pouco sobre a ecologia das populações de botos que vivem no rio Araguaia. Lacunas no conhecimento básico sobre essa espécie, classificada como vulnerável à extinção (ICMBio, 2022), são preocupantes porque os animais estão expostos a diversas ações humanas, como a degradação de seus habitats, a redução dos estoques pesqueiros e a fragmentação de suas populações causada pela construção de barragens hidrelétricas. O barramento dos rios para geração de energia elétrica contribui para o empobrecimento genético dos botos, porque impede o fluxo gênico entre as populações. No rio Araguaia, ainda não existe nenhuma usina hidrelétrica em operação, embora tenha sido proposto, para os próximos anos, a construção de sete barragens ao longo dos 2.115 km de sua extensão. No rio Tocantins, as populações de botos estão fragmentadas em pelo menos oito subpopulações e existe uma previsão de que, com a construção de novas barragens, em breve esta fragmentação resulte na formação de pelo menos 12 populações completamente isoladas, em uma extensão aproximada de 2.400 km de rio.
Aprimorando a ciência para fortalecer estratégias de conservação
Durante a estação seca de 2021, com o apoio do WWF/ Brasil e da SEMAD-GO, nos realizamos a primeira contagem de botos em toda a extensão do Rio Araguaia, desde as proximidades da nascente (Mato Grosso) até sua confluência com o Tocantins, no Pará. Foram cerca de 1.700 km percorridos, em 28 dias de atividades, resultando no encontro de aproximadamente 830 botos. A maioria dos animais (766) foi visualizada na planície de inundação do médio Araguaia, onde fatores geográficos, como a confluência com grandes rios, favorecem a disponibilidade de nutrientes e peixes. Já no alto e baixo Araguaia, onde a drenagem é menor e o relevo geomorfologico mais acidentado, os encontros foram mais escassos.
Todavia, no período de estiagem, a formação de ilhas e bancos de areia atrai turistas e intensifica o tráfego de embarcações, sobrepondo-se ao habitat dos botos. Durante a pesquisa, nós ouvimos relatos dos pescadores sobre o comportamento do boto de capturar os peixes presos nos anzois; este cenário pode estar refletindo a redução da quantidade de peixes na região e reforça a necessidade de estratégias eficazes para minimizar conflitos e garantir a conservação da espécie.
Para conhecer mais sobre os botos do Araguaia, acesse o material educativo produzido através da colaboração do WWF – Brasil, da SEMAD – Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Goiás e da Universidade Evangélica de Goiás – UniEVANGÉLICA.
A Expedição do “Araguaia Vivo” em 2025
Em parceria com o programa “Araguaia Vivo 2030” (@araguaiavivo) e alinhado aos objetivos gerais do “PPBio Araguaia” (@ppbio.araguaia), nós participamos, em fevereiro de 2025, da maior expedição científica já realizada no Araguaia, com o intuito de inventariar a sua biodiversidade. Nossa meta é aprimorar o conhecimento sobre o tamanho da população de botos e analisar a influência de características ambientais e ecologicas, como profundidade do rio e disponibilidade de peixes, nos padrões de distribuição e comportamento destes animais.
Para contagem de botos, nós utilizamos uma metodologia padronizada cientificamente, que consiste na realização de transectos (deslocamentos) em áreas pré-definidas, mantendo uma velocidade constante de aproximadamente 10 km/h. Durante o percurso, pesquisadores posicionam-se na proa e na popa do barco para garantir que nenhum animal deixe de ser contabilizado. Um outro observador fica em posição central anotando informações importantes em relação aos avistamentos, como a quantidade de animais, as coordenadas geográficas e a profundidade do rio. Após a coleta dos dados, aplicamos métodos estatísticos para estimar a densidade dos botos. Esta abordagem combina observação direta com análises quantitativas e ambientais, gerando resultados que refletem, de maneira mais precisa, a população de botos da região. Adicionalmente, nós utilizamos um aparelho específico (F-POD) para detectar sinais de ondas sonoras dos botos. Esta tecnologia é importante porque expõe informações sobre o comportamento submerso dos animais, que não podem ser observadas visualmente.
Os dados coletados durante a expedição ainda estão sendo analisados. Entretanto, até o momento, foram contabilizados cerca de 460 botos em 120 lagos inundados e nos principais afluentes do Araguaia, abrangendo os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará (aproximadamente 1.600 km de rio). Ao final das analises, esperamos obter resultados que possam ser utilizados para desenvolver estratégias de conservação mais eficazes, como o planejamento de áreas protegidas. Diante das crescentes pressões antrópicas sobre os rios, entender a distribuição dos botos e a riqueza de peixes da região torna-se essencial para a preservação da biodiversidade aquática da região.
Cristiane Gonçalves de Moraes: Professora da Universidade Evangélica de Goiás – UniEVANGÉLICA. Pesquisadora TWRA, PPBio Araguaia (CNPq) e SARDI/WWF (South American River Dolphin Initiative).
Eduarda Stefany dos Santos: bióloga, formada pela UniEVANGÉLICA e mestranda em Recursos Naturais do Cerrado / Universidade Estadual de Goiás.
Priscila de Souza Rodrigues de Lima: bióloga, formada pela UniEVANGÉLICA e mestranda em Recursos Naturais do Cerrado / Universidade Estadual de Goiás
Clara Gomes Martins: graduanda em Ciências Biológica na Universidade Evangélica de Goiás – UniEVANGÉLICA e pesquisadora bolsista do PPBio Araguaia (CNPq)
Nathan Clovis Silva Vaz: médico veterinário, formado pela UniEVANGÉLICA e mestrando em Recursos Naturais do Cerrado / Universidade Estadual de Goiás.