Rodapé para um golpista da língua, o linguista Marcos Bagno
24 novembro 2016 às 12h07
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Marcos Bagno tornou-se uma Marilena Chauí de calças — faz, em letras, o mesmo sucesso que ela faz em filosofia. Os dois têm em comum a eloquência, o confusionismo e uma indisfarçável vocação para a charlatanice intelectual
José Maria e Silva
Se houvesse um Código de Ética do Magistério, o sociolinguista Marcos Bagno, autor do famigerado Preconceito Linguístico, deveria ter sua licença de professor cassada em caráter de urgência. Ele mesmo confessa que engana seus alunos e discípulos: “Peço simplesmente aos leitores e leitoras que meditem sobre essa situação que tanto me angustia: homenagear com um livro pessoas que jamais poderão lê-lo. Isso explica, decerto, a grande dose de indignação que em certos momentos passa à frente da reflexão científica serena e me faz assumir o tom apaixonado de quem não tolera nenhum tipo de intolerância”
Os mitos da cabeça de Bagno
Mito nº 1: “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”.
Mito nº 2: “Brasileiro não sabe português. Só em Portugal se fala bem português”.
Mito nº 3: “Português é muito difícil”.
Mito nº 4: “As pessoas sem instrução falam tudo errado”.
Mito nº 5: “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão.”
Mito nº 6: “O certo é falar assim porque se escreve assim.”
Mito nº 7: “É preciso saber gramática para falar e escrever bem.”
Mito nº 8: “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social.”
Por vezes, gostaria que minhas palavras fossem punhos e que delas saíssem socos. Mas peço simplesmente aos leitores que meditem sobre essa situação que tanto me angustia: usar a deferência dos argumentos contra pessoas que jamais poderão compreendê-los. Uns, porque lhes falta inteligência. Outros, porque parece lhes faltar caráter. Isso explica, decerto, a minha enorme, incendida, angustiada fúria, que, entretanto, jamais passa à frente da reflexão – apenas se deixa cavalgar por ela, em respeito às rédeas da inteligência. Essa fúria volta e meia é desencadeada pelo excesso de tolices que leio nos jornais a respeito de temas relativos à educação.
Há pouco tempo, matéria de um jornal local (O Popular) trazia o título “Melhora nível de redações nos vestibulares”. Já no segundo parágrafo da referida matéria, percebi que ela não merecia nenhum crédito. Uma das professoras entrevistadas, depois de dizer que “tem havido uma melhora impressionante na produção textual” dos alunos, completava: “Embora ainda exista muito clichê e casos em que o candidato se prende demasiadamente à fórmula – apresentação, desenvolvimento e conclusão –, em detrimento do conteúdo”. Ora, o que se pode esperar de um aluno que não se prende a essa fórmula eficaz e comum de exposição de idéias? Que ele seja um paradigmático Guimarães Rosa? É óbvio que se um aluno normal recusa o sintagmático princípio-meio-e-fim de um texto, ele deve ter a raríssima genialidade de reinventá-lo, caso contrário irá incorrer no misto de puerilidade e esquizofrenia da literatura que lhe é apresentada por modelo – como o livro A Friagem, de Augusta Faro, elogiado pelo jornalista, pelo brilhante Roberto Pompeu de Toledo, mas paradigma da subliteratura local que infesta os vestibulares goianos.
Entretanto, o absurdo da pedagogia moderna escancarado na reportagem não se limita a essas sandices. Vai muito além. Outra professora ouvida na matéria afirmou: “A exigência do domínio da língua culta é preconceituosa. Afinal, nem todos têm acesso a ela”. É espantosa essa capacidade pueril que, hoje em dia, qualquer pessoa – não só professores primários mas até seus alunos – tem de duvidar da civilização a que pertence, julgando-se maior do que ela com um simples dar de ombros mental. Que obra-prima da humanidade aquela professora escreveu para ter a ousadia de deitar por terra uma língua que ultrapassa em séculos sua efêmera insignificância intelectual? Não sei se é o seu caso, mas muitos professores que estampam a mesma arrogância em face do saber milenarmente acumulado, mal conseguem escrever um bilhete para os pais de seus alunos. De onde vem essa ignorância infinita que, de tão alijada do conhecimento, chega a imaginar que ele não existe?
Infelizmente, não vem da pequena cabecinha dessas honradas professoras de escola pública, dignas do respeito de todos nós, mas da doutrinação que recebem no ensino inframental das faculdades de letras. Nessas usinas de diplomar analfabetos, a norma é: língua portuguesa cada qual tem a sua e Deus que se vire para entender a babel de todos. Essa rebeldia sem causa, fruto da adolescência intelectual de nossos acadêmicos, que só descobrem o caminho das bibliotecas quando ingressam na pós-graduação, já se tornou uma seita, com apóstolos, discípulos e até profetas. Entre os profetas, está Marcos Bagno, doutor em língua portuguesa pela USP, mestre em linguística, poeta, contista e tradutor. Bagno é autor do livro Preconceito Linguístico: O Que É, Como se Faz, lançado pela Editora Loyola em 1999 e já com quatro edições em menos de um ano. É essa Bíblia dos sociolinguístas que se vai analisar agora.
A sociolinguística é um ramo da linguística que estuda Marx. Muitos alunos de letras, por deficiência cognitiva, aderem a ela. Incapazes de alcançar o rigor da ciência, contentam-se em macaqueá-la. Daí o enorme sucesso que qualquer autor minimamente alfabetizado faz entre essa gente da pseudolinguística – que não é outra coisa a marxolinguística praticada pela nova geração de professores das faculdades de letras. (…) o jovem Marcos Bagno tornou-se uma Marilena Chauí de calças – faz, em letras, o mesmo sucesso que ela faz em filosofia. Os dois têm em comum a eloquência, o confusionismo e uma indisfarçável vocação para a charlatanice intelectual.
Preconceito Linguístico, o pop-livro de Marcos Bagno, é falso em todas as suas premissas, mesmo assim, ou por isso mesmo, o autor quer fazer dele o Manifesto Comunista do idioma, enxergando em cada colocação de pronomes uma mais-valia intelectual a extorquir de todo falante o direito de permanecer iletrado. Incapaz de derrubar o sistema e mudar o governo, Bagno incorporou o marxismo desviante que grassa na educação do país e fez-se cavaleiro andante da linguagem a brandir sua espada sociolinguística contra os moinhos de vento da norma culta. Seu fervor pseudolinguístico, que acaba de dar outro manifesto ao mundo, a Dramática da Língua Portuguesa, parece acreditar que a instauração do Reino de Marx na Terra vai depender de se enforcar o último capitalista nas tripas do último gramático.
Bíblico, Marcos Bagno inventou até um decálogo para sua religião, criativamente chamado de “Dez Cisões”, e sustenta sua fé sociolinguística no combate a oito pecados capitais – os preconceitos Linguísticos, isto é, os baraços e cutelos com que a norma culta do idioma tiraniza os falantes da língua portuguesa e contribui para a injusta divisão do mundo entre milionários e miseráveis. Entre os oito mitos sobre a língua portuguesa que Marcos Bagno combate, pelo menos três, o 2º, o 6º e o 7º, só existem na sua cabeça; outros dois, o 3º e o 4º, existem de fato, mas não pelas razões que ele imagina; e um deles, o 5º, é absolutamente inócuo, sendo de admirar que alguém perca tempo em lhe dar combate. Restam dois “mitos”, o 1º e o 8º, que não são mitos, mas constatações a respeito do português, por sinal, benéficas para seus falantes.
Como se vê, Marcos Bagno, que se apresenta arrogantemente como cientista da língua, não alcança sequer o nível da falácia, porque a falácia é apenas a contraface da lógica, não a sua negação absoluta, como o obscurantismo e a irracionalidade que alicerçam o livro Preconceito Linguístico o são. A capa deste livro de Marcos Bagno traz uma fotografia de seus sogros pobres, lavradores analfabetos a quem ele dedica a obra. É a partir deles que Bagno justifica sua “grande dose de indignação” contra todas as formas de preconceito. E, assumidamente de esquerda, começa por denunciar (citando Maurizzio Gnerre) um dos mais graves “preconceitos” derivados do “mito da unidade linguística do Brasil”– o de que a Constituição é redigida na língua-padrão, “que só uma parcela pequena de brasileiros consegue entender”. Taxativamente furioso, Bagno denuncia: “A discriminação social começa, portanto, já no texto da Constituição”.
Segundo o próprio Bagno confessara na introdução do livro, a razão de sua vida intelectual é a luta apaixonada contra as discriminações. Logo, a única coerência possível de sua parte seria a exigência de que a Constituição do país abandonasse a língua-padrão e se multiplicasse em tantas versões quantas fossem as necessidades particulares dos falantes da língua portuguesa no Brasil. Entretanto, Bagno faz o contrário e, em vez de manter a coerência, sai pela tangente: “É claro que Gnerre não está querendo dizer que a Constituição deveria ser escrita em língua não-padrão”. Ora, de duas uma: ou Bagno, contrariando o que dissera linhas antes, aceita que a Constituição deve continuar sendo preconceituosa, discriminadora, excludente, ou, então, ele resolveu trair, um parágrafo depois, a causa maior da sua vida declarada um parágrafo antes, deixando que a lei continue discriminando.
À primeira vista, parece apenas um caso de inconsistência intelectual do “cientista”. Mas o que se lê a seguir faz desconfiar de uma distorção proposital do militante. Intuitivamente, Marcos Bagno sabe que romper com a objetividade necessária à lei para cingi-la à subjetividade inevitável dos falantes seria soterrar a Justiça num tribunal de babel. Por isso, ele escreve como quem desconversa, chegando a pensar que o leitor atento vai aceitar sua ressalva frouxa como negação de uma afirmação taxativa. O sujeito é tão insidioso que, ao dizer que ninguém está advogando que “a Constituição deveria ser escrita em língua não-padrão”, começa essa ressalva com a expressão “é claro”, para desarmar de imediato o leitor, levando-o pensar que o que se diz adiante é tão óbvio que sequer merece exame, quando, na verdade, trata-se de um pensamento incompleto, que contradiz completamente um pensamento anterior mas não apresenta suas razões, enquanto o outro apresentava as dele. Com essa desconversa, típica de todo o livro, Bagno fica isento de explicar a grave contradição em que incorre.
Apesar disso, Marcos Bagno se julga uma grande autoridade científica, tanto que não se peja de citar-se a si mesmo: “Como costumo dizer, o que habitualmente chamamos de português é um grande balaio de gatos, onde há gatos dos mais diversos tipos: machos, fêmeas, brancos, pretos, malhados, grandes, pequenos, adultos, idosos, recém-nascidos, gordos, magros, bem-nutridos, famintos etc. Cada um desses gatos é uma variedade do português brasileiro, com sua gramática específica, coerente, lógica, funcional”. Bagno acaba de nos descrever o primeiro caso, na história da humanidade, de “recém-nascidos” com “gramática específica, coerente, lógica e funcional”, falando igual ao Aurélio tão logo responde à palmada do médico com um articulado “ai!”.
Depois dessa licenciosidade poética, inadmissível num sujeito que consumiu verbas públicas na graduação, no mestrado e no doutorado, o contribuinte que sustentou Bagno por esse tempo mínimo de oito anos ainda tem que aturar seu preconceito contra os pobres. Segundo ele, são as “graves diferenças de status social que explicam a existência, em nosso país, de um verdadeiro abismo Linguístico entre os falantes das variedades não-padrão do português brasileiro, que são a maioria de nossa população, e os falantes da (suposta) variedade culta, em geral mal definida, que é a língua ensinada na escola”.
Ora, como é que Marcos Bagno explica a caudalosa tradição de pobres bem falantes (e bem escreventes) no Brasil, que vai de Machado de Assis a Patativa do Açaré, ambos sem passar pela escola formal? Será que Bagno nunca foi capaz de perceber que os nordestinos, apesar da sua fome atávica, nunca tiveram problemas com a língua e é de lá que têm saído muitos dos nossos maiores escritores? Não é entre os nordestinos famintos que viceja uma literatura de cordel altamente sofisticada, com um padrão Linguístico muito mais elevado do que o da maioria dos professores da UFG e da USP juntos? Os profetas bíblicos (homens que precisavam da palavra como ninguém e a manejavam melhor que todos) não vinham sempre das classes mais pobres do mundo hebraico, como vaqueiros, pastores, trabalhadores rurais?
Cumpre ressaltar que o cordel nordestino, literatura de excluídos, sempre foi altamente valorizado tanto pelos próprios nordestinos, que viam em seus repentistas os verdadeiros sábios da tribo, quanto pela gente das grandes cidades, inclusive os políticos, desejosos de ver seu nome na boca dos cantadores. Essa gente esfomeada do Nordeste, grande parte analfabeta, tendo que decorar seus decassílabos heróicos, à moda de Camões, são a prova de que não existe abismo Linguístico determinado pelas diferenças de classe. E se por acaso a miséria oprime a fala, abastardar a fala não erradica a miséria – radica a desigualdade.
O Mito nº 2 atacado por Marcos Bagno, o de que “brasileiro não sabe português e que só se fala bem português em Portugal”, é uma cantilena de Preconceito Linguístico: O Que É, Como se Faz. Bagno diz que a norma culta no Brasil “é presa a um ideal Linguístico inspirado no português de Portugal, nas opções estilísticas do passado, nas regras sintáticas que mais se aproximem dos modelos da gramática latina”. Deslavada mentira! Como demonstrou Osman Lins, no insuperável Problemas Inculturais Brasileiros, desde a década de 60 que clássicos como Machado de Assis já tinham desaparecido dos livros escolares, dando lugar a autores estilisticamente simplistas, como Orígenes Lessa. E, na década de 70, esse desaparecimento dos clássicos do século passado se acentua e eles passam a ser substituídos pela quadrinização dos livros didáticos, magistralmente ridicularizada por Osman Lins, quando ironiza as “Vírgulas Falantes”.
Há quem, obtusamente, possa não ver relação entre uma coisa e outra, alegando que Bagno não é contra os clássicos, tanto que escreveu um Machado de Assis para Principiantes; mas a relação é óbvia e só não a percebe quem é incapaz de um silogismo simples. Ora, se houvesse mesmo os mitos de que só se fala português em Portugal, que os legítimos representantes da norma culta são os escritores e que só se pode falar como eles escrevem, é evidente que a escola não seria a primeira a abandonar os clássicos já nas décadas de 60 e 70, como fez, influenciada pelo advento da televisão. E a escola tem mudado para pior. Substituindo a quadrinização denunciada por Osman Lins pelo compartimentalismo inspirado na linguagem do CD-Rom, os livros didáticos aboliram de vez os clássicos e a norma culta como padrões de linguagem, substituindo-os pelos piores textos modernistas (como os de Oswald de Andrade) e por matérias de jornal. O Machado de Assis que ainda se lê na escola não é o da linguagem castiça, mas o dos triângulos amorosos. Os livros didáticos de maior sucesso na escola pública só costumam chamar a atenção do aluno para a linguagem de uma obra literária quando ela segue o paradigma modernista da subversão gramatical.
É no combate ao Mito nº 4 (“As pessoas sem instrução falam tudo errado”), que Marcos Bagno começa a revelar, a partir de sua própria cabeça, os preconceitos Linguísticos que projeta na sociedade. Depois de afirmar que a troca do “l” pelo “r” nos encontros consonantais, como em Craudia, chicrete, praca, broco, pranta, é “tremendamente estigmatizada”, o que o deixa possesso, o sociolingüísta tenta provar, “cientificamente”, inclusive com Camões, que essa pronúncia deve ser aceita pela escola, como uma variante linguística dos “brasileiros falantes das variedades não-padrão”, a “classe social desprestigiada, marginalizada, que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais da elite”, para quem a fonética da norma culta é “estrangeira”.
Além do absurdo de achar que todo pobre ou analfabeto troca o l pelo r, o que é absolutamente falso, Marcos Bagno ainda tem a desfaçatez de afirmar que, no caso dos “falantes da norma culta urbana”, das “pessoas escolarizadas”, que enfrentam o mesmo problema, “trata-se realmente de uma dificuldade física que pode ser resolvida com uma terapia fonoaudiológica”. Quer dizer, se o filho do lavrador entra na escola e fala pranta, a professora não deve corrigi-lo nem mandá-lo para a fonoaudióloga, caso não consiga superar essa pronúncia – ele deve continuar prantado na própria insuficiência linguística. Agora, se for o filho do Bagno ou outro privilegiado falante da elite que faça essa troca, aí, sim, o governo deve pagar-lhe, correndo, um tratamento fonoaudiológico. Se as massas tivessem a autonomia que os sociolingüístas lhes atribuem, mandariam Bagno prantar fava com essa sua estranha igualdade.
Não é de estranhar que Marcos Bagno veja em todo pobre um limitado falante do idioma. O Projeto Censo, uma das grandes pesquisas sociolinguísticas que ele julga referenciais, “investiga o uso da língua no Rio de Janeiro nas classes sociais não-cultas (isto é, pessoas que não cursaram uma universidade)”, segundo palavras textuais do próprio Bagno. Por esse critério, o jornalista Paulo Francis, se fosse vivo, seria entrevistado para a pesquisa, classificado como “não-culto” por só ter o 2º grau completo.
O explícito preconceito de Bagno contra a inteligência dos pobres se completa no seu Mito nº 6 (“O certo é falar assim porque se escreve assim”). Diz Bagno que as escolas querem “obrigar o aluno a pronunciar do jeito que se escreve” e ressalva: “Seria mais justo e democrático dizer ao aluno que ele pode dizer bunito ou bonito, mas que só se pode escrever bonito, porque é necessária uma ortografia única para toda a língua, para que todos possam ler e compreender o que está escrito”. Por analogia, será também “justo e democrático” que o professor diga ao menino da roça que ele pode dizer prantar, se quiser, mas só pode escrever plantar devido à necessidade de que outros compreendam o que escreveu. Com isso, mais uma letra passa a ter dois sons na língua, aumentando a esquizofrenia fonética, que tanto preocupa Bagno.
Mas esse sexto “mito” de Bagno, a exemplo do quinto, sequer mereceria comentário – é absolutamente falso e só existe em sua cabeça. Nenhum professor cobra do aluno uma pronúncia idêntica à escrita, contrariando a fala corrente em seu meio. Uma professorinha goiana, mesmo se tiver a felicidade de nada saber de sociolinguística, jamais exigirá de um aluno seu que fale ou leia “A casa dê Maria” em lugar de “A casa di Maria”; pelo contrário, enquanto o aluno continuar lendo o de fechado, ela saberá que ele ainda não adquiriu fluência na leitura, porque não se despregou das letras e as soletra em vez de lê-las.
Abundam no livro Preconceito Linguístico falsidades do gênero. Ainda durante o combate ao suposto Mito nº 6, Marcos Bagno afirma que “a gramática tradicional despreza totalmente os fenômenos da língua oral, e quer impor a ferro e fogo a língua literária como a única forma legítima de falar e escrever, como a única manifestação linguística que merece ser estudada”. E cita como exemplo a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, um clássico do gênero, que abona seus tópicos gramaticais com frases retiradas das obras literárias.
Para Marcos Bagno, essa obra de Celso Cunha “só pode ser consultada por quem tiver dúvidas no momento de escrever um texto literário”, uma vez que, segundo seu tosco julgamento, ela não aborda “fenômenos característicos de outras normas escritas, como a jornalística ou a da produção científica, muito menos os fenômenos típicos da língua falada”. Ora, se tiveres essa gramática em casa, leitor ou leitora, experimenta abri-la em qualquer página. Verás que as frases retiradas dos livros literários para análise gramatical não podem, em sua maioria, ser consideradas literárias.
O livro está cheio de frases como a que se segue: “Aqui não passa ninguém”. Trata-se de uma frase do escritor português Fernando Namora, ilustrando uma lição sobre advérbio. Mas o que ela tem em si de literária, de tão especificamente estética, que não possa ser útil a quem queira escrever um recado para afixar numa porta em Goiânia, Lisboa ou Luanda? Não é o fato de usar texto literário que fará uma gramática ser exclusiva de escritores. Se fosse assim, deveria haver uma gramática específica para cada segmento social: uma para advogados, outra para médicos, esta para engenheiros, aquela para historiadores.
Não há um fosso entre a língua dos escritores e a dos demais segmentos da elite intelectual, muito menos entre a fala deles e a fala comum. Marcos Bagno comete mais uma mentira deslavada quando diz que Celso Cunha não trabalha “outras normas escritas” nem com “fenômenos típicos da língua falada”. Será cinismo ou idiotice o que impede esse pseudolinguísta de ver que as obras literárias – mais do que qualquer outra manifestação linguística – são as mais representativas dos vários registros de fala da sociedade? Por exemplo: o estro de Euclides da Cunha dialoga de igual para igual com a tese científica; a secante de Rubem Fonseca é um recorte do mais puro jornalismo; já a crônica de Carlos Drummond tem o vívido sabor da língua falada.
Além disso, nos textos literários aproveitados por Celso Cunha há diálogos, e esses diálogos reproduzem fenômenos típicos da linguagem oral. E são textos que vão de clássicos do romantismo português e brasileiro a autores contemporâneos como Adonias Filho ou Lins do Rego. Sem contar que o “tradicional” Celso Cunha é infinitamente mais progressista do que o “revolucionário” Marcos Bagno – em sua gramática, Cunha fez questão de se utilizar de textos literários portugueses, brasileiros e africanos. Ora, se dependesse do quixotesco marxolinguísta da USP, os povos africanos, que muito precisam do português como língua de cultura, seriam completamente abandonados por nós. Os falantes lusófonos da África não cabem no brasileirês da sociolinguística, porque, numérica e economicamente insignificantes, são desprezíveis para a cartografia linguística de Marcos Bagno.
O Mito nº 7 também não mereceria comentários se não fosse pelo fato de que é o próprio Bagno quem o desmente, sem perceber. Depois de afirmar que “é difícil encontrar alguém que não concorde” com a idéia de que é “preciso saber gramática para falar e escrever bem”, ele mesmo aponta três escritores de grande sucesso que não concordam com ela – Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade e o próprio Machado de Assis. Aliás, o próprio Bagno reconhece que “os escritores são os primeiros a dizer que gramática não é com eles!”. Será que todos os escritores juntos, do passado e do presente, foram incapazes de convencer uma só pessoa de que não é preciso saber gramática para falar e escrever bem a ponto de deixarem surgir esse preconceito? É claro que não. Eis, aí, mais uma confusão da cabeça de Bagno.
O que todo mundo de fato acha – e trata-se de fato, não de mito – é que para falar e, sobretudo, para escrever bem é preciso ler muito. A gramática como verdade já não existe na maioria das escolas. Quando muito, o aluno é instado (mas não obrigado) a decorar algumas inócuas regras gramaticais, que depois lhe são cobradas acriticamente, em provas de marcar com X. Aprende-se o português nas escolas públicas de duas maneiras: ou escrevendo-se como se quer, sem regra alguma, salvo a do umbigo; ou mediante a reprodução de fórmulas esclerosadas, mas adredemente facilitadas para que o aluno não seja reprovado depois. O primeiro modo, especialmente nos ciclos básicos da escola pública, é o mais corrente, por força do construtivismo. O aluno é levado a produzir seus próprios textos (e estudar segundo eles), mesmo quando não é capaz de assinar o nome, porque se considera autoritarismo colocá-lo em contato com os bons autores do idioma.
Mas é no combate a um fato que toma por mito, o Mito nº 8 (“O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”), que o marxolingüísta Marcos Bagno se revela por inteiro. Bagno chega a ironizar essa verdade: “Se o domínio da norma culta fosse realmente um instrumento de ascensão na sociedade, os professores de português ocupariam o topo da pirâmide social, econômica e política do país, não é mesmo?” Pronto! Marcos Bagno parece ter sido capaz de um silogismo: o domínio da norma culta é instrumento de ascensão social; o professor de português domina a norma culta; logo, é ele quem deveria mandar na sociedade.
Eis um primor da lógica construtivista, haurida na pedagogia-parangolé de uma Ester Grossi, na filosofia charlatã de um Ernildo Stein ou na historiografia oligofrênica de uma Ledonias Franco – uma premissa rota e uma conclusão torta, ambas depondo contra o labirinto mental da cabeça de Bagno. Porque qualquer pessoa sabe que professor de português da escola pública não domina a norma culta satisfatoriamente. Basta examinar o desempenho dos vestibulandos de letras e pedagogia para se constatar que eles obtém as piores notas, inclusive nas provas de redação e português. Por que será que Marcos Bagno não foi capaz de perceber coisa tão óbvia quanto o sol num meio-dia sem nuvens? Talvez por uma distorção do ambiente em que vive. Na carreira do magistério público, os silogismos se escrevem por premissas tortas: se um professor de português é excelente, vai preparar alunos para o vestibular de medicina; se é sofrível, vira doutor e vai formar professores na graduação de letras.
Apesar de ter-se tornado um ídolo em muitas faculdades de humanas do país, inclusive na Faculdade de Letras UFG, onde os alunos estão fazendo trabalho sobre o livro Preconceito Linguístico, Marcos Bagno é o avesso do que se pode esperar de um cientista, credencial com que ele gosta de se apresentar ao leitor em suas obras. Recorrendo a um de seus marxolinguístas preferidos, ele afirma taxativamente: “A propaganda da suposta dificuldade da língua é, como diz Gnerre no livro já citado, o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”.
Notastes, leitor e leitora, a importância extrema que ele, corroborando Gnerre, concede à língua? Ela – sustenta Marcos Bagno – é o mais poderoso bloqueio de acesso ao poder. Entretanto, é o mesmo Marcos Bagno quem diz: “O domínio da norma culta de nada vai adiantar a uma pessoa que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto”. E Bagno, como se estivesse num palanque do MST, continua por um parágrafo inteiro falando que não adianta a norma culta para quem não tem emprego, é cidadão pela metade ou vive acossado por senhores feudais que lhe tiram a terra para morar. Ora, se “não dominar a norma culta é o mais poderoso instrumento de exclusão do poder”, dominá-la tem que ser – necessariamente – o mais poderoso instrumento de ascensão social.
Por outro lado, Bagno concebe “ascensão social” de um modo muito peculiar: para ele, ascender é dominar – só ascende aquele que alcança o topo. Ora, se uma mulher trabalha como auxiliar de enfermagem num hospital e, com muito esforço, se forma em medicina, é claro que ela ascendeu socialmente, mesmo que não tenha se tornado dona de hospital, coisa que ciência alguma lhe vai garantir se ela não vier de um berço rico. Com a língua é a mesma coisa. Eu, por exemplo, que passei de cozinheiro de hospital a editor de jornal, não tenho dúvida de que ascendi socialmente. Mas, de acordo com Bagno, estou enganado. Eu só poderia dizer que tive uma ascensão social se fosse o dono da Organização Jaime Câmara (a maior empresa de comunicação do Centro-Oeste) e se o Júnior Câmara (seu proprietário) fosse meu empregado, uma vez que creio escrever melhor do que ele.
É possível se conceber uma mente mais tacanha, mais abjeta, mais materialista, mais obcecada em poder e dinheiro do que essa de Marcos Bagno? E pensar que é gente dessa laia que dita a ética nas escolas públicas. Mas nem era preciso contra-argumentar tanto. Basta examinar o mito que desespera Bagno: “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social” (grifo meu). Como ele próprio afirma, ela é um instrumento, não o instrumento. Se as pessoas acreditassem que a norma culta é o instrumento de ascensão social, aí, sim, seria o caso de Bagno combater o mito. E eu lhe daria razão.
Por fim, Marcos Bagno se desmascara de vez. É ele quem escreve, textualmente, na página 72 de Preconceito Linguístico: “Valerá mesmo a pena promover a ascensão social para que alguém se enquadre dentro desta sociedade em que vivemos, tal como ela se apresenta hoje?” (grifos dele próprio).
Por favor, leitores e leitoras, relede esta frase. Percebeis a extrema gravidade dela? Se houvesse um Código de Ética do Magistério, o pseudolingüísta Marcos Bagno (agora ele se revela como tal) teria que ter a sua licença de professor sumariamente cassada. É o próprio Bagno quem assume explicitamente – e por escrito – que, como professor, não está interessado em ensinar nada a seus alunos, mesmo ganhando para isso, porque não é sua intenção emancipá-los para que participem da sociedade que aí está. Ou seja, Bagno quer vê-los na miséria, porque precisa da miséria para manter seu discurso contra o sistema. Já pensaram se os médicos de esquerda, ferozes combatentes da indústria farmacêutica, fossem adotar a ética da cabeça de Bagno? Deixariam morrer seus pacientes infartados para não vê-los dependentes de medicamentos. Só nas ciências humanas se concede título de doutor a um sujeito tão mal resolvido como intelectual e cidadão.
Marcos Bagno é tão confuso que chega a depor contra si mesmo. Eis o que ele diz sobre o seu objeto de conhecimento: “Existe um mito ingênuo de que a linguagem humana tem a finalidade de comunicar, de transmitir idéias, mito que as modernas correntes da linguística vem tratando de demolir, provando que a linguagem é muitas vezes um poderoso instrumento de ocultação da verdade, de manipulação do outro, de controle, de intimidação, de opressão, de endurecimento”.
Só um doutorzinho da USP, aquele antro de cúmplices que arrastam até hoje um cadáver insepulto com a cara de inocentes, é que tem o despudor, a presunção, a desfaçatez, de chamar de “mito ingênuo” a idéia de que a linguagem humana tem a finalidade de comunicar, de transmitir idéias. Tem cabimento Bagno não perceber que, até para transmitir esse seu arremedo de idéia, esse lodaçal Linguístico que lhe vai pelo cérebro, ele não teve outro recurso senão recorrer à linguagem? Se a tese de Marcos Bagno for estendida a outras instâncias da realidade, será preciso considerar que é um mito ingênuo supor que a água foi feita para saciar a sede, porque ela também afoga; que o alimento foi feito para matar a fome, porque ele também dá indigestão; enfim, que o ânus foi feito para defecar, porque dele também saem “idéias”. Aliás, chego a desconfiar da epígrafe que abre este artigo. Será que Preconceito Linguístico saiu mesmo da cabeça de Bagno?
– Concordo, leitores e leitoras. Acabo de cometer um grave desrespeito contra Marcos Bagno. No próximo artigo, quando vou demonstrar porque Bagno é um golpista da língua, se tiver de usar os vocábulos ânus e defecar novamente, pedirei licença para substituí-los por seus equivalentes populares. Não pretendo destratar ainda mais o lingüísta Bagno, obrigando-o a aturar essa ofensiva norma culta, que ele tanto detesta.
Parte II
Quando a língua se faz regougo
Disfarçando-se de vanguarda da ciência, a sociolinguística de Marcos Bagno não passa de um panfleto pedagógico, que tenciona fazer da língua portuguesa um instrumento de doutrinação política
Enganam-se os cristãos de língua portuguesa – a Bíblia foi psicografada. Ao contrário do que comumente se imagina, a versão portuguesa das Escrituras não foi traduzida pelo protestante João Ferreira de Almeida, mas ditada por seu espírito, muito depois de sua morte. Essa informação bombástica, que pode subverter todos os alicerces da cultura ocidental, é revelada no livro Preconceito Linguístico: O Que É, Como se Faz (Editora Loyola), do sóciolinguista Marcos Bagno, parcialmente analisado em artigo anterior. Ficcionista, poeta, tradutor e doutor em linguística pela USP, Marcos Bagno, quase de passagem, sem perceber o profundo impacto de sua revelação, afirma, na página 134 do livro: “A primeira tradução da Bíblia para o português, por exemplo, só aconteceu em 1719, por obra de um protestante, João Ferreira de Almeida”.
O espírito do médium Chico Xavier ainda nem sonhava com sua encarnação atual e faltavam quase dois séculos para que o positivista francês Hipólite Leon Denizart Rivail sistematizasse o espiritismo, com o nome de Alan Kardec. Talvez por isso, o trabalho mediúnico de tradução da Bíblia para o português tenha passado despercebido. Mas não há dúvida: só pode ter sido o espírito de João Ferreira de Almeida quem ditou essa tradução para um médium em 1719. Porque João Ferreira de Almeida “desencarnara” 28 anos antes: ele morreu em 1691, aos 63 anos. Como poderia traduzir a Bíblia – fisicamente – em 1719?
Em si, esse canhestro erro de Marcos Bagno não compromete a essência de Preconceito Linguístico, uma vez que o livro não trata de religiões, mas de línguas. Entretanto, ele é um sintoma do labirinto mental da cabeça de Bagno. Se essa informação, em seu todo, é lateral no contexto de Preconceito Linguístico, o mesmo não se pode dizer da data, “1719”, em relação à informação em si. Uma vez que Bagno tencionava realçar o quanto foi tardia a tradução da Bíblia para o português, precisar uma data sem consultar quaisquer enciclopédias, ou consultá-las de modo apressado, revela um certo despreparo didático-pedagógico para separar o essencial do supérfluo; deficiência que fica evidente quanto ele encrespa com Dad Squarisi, responsável por uma coluna sobre o idioma que é reproduzida em vários jornais do país.
Squarisi utiliza-se de um truque muito usado por todos os professores de português quando querem explicar a voz passiva. Mostra que há duas formas de construir a voz passiva: com o verbo ser (passiva analí¬tica) e com o pronome se (passiva sintética). E, na dúvida entre vende-se casas ou vendem-se casas, ela sugere que se recorra à voz passiva analítica, com o verbo ser (“casas são vendidas”), para se descobrir que, na voz passiva sintética, o correto é vendem-se casas.
Quando vai contestá-la, Marcos Bagno confunde superfícies com profundezas e chama esse recurso de “esfarrapado truque”, desvirtuando completamente o que sugere Squarisi. Ela e as gramáticas normativas jamais disseram que vende-se pode ou deve ser substituído por é vendido que, no fim, o emissor da mensagem terá o mesmo efeito – algo que Marcos Bagno as acusa de fazer. Pelo contrário, é exatamente por saberem do efeito muito maior da voz sintética (vende-se… ou vendem-se…) que as gramáticas se valem do “truque” para explicar como é que se deve escrever a frase. Ou seja, mandam o aluno pensar em “casas são vendidas” apenas para que ele perceba porque deve escrever “vendem-se casas” e não “vende-se casas”.
Para Bagno, essa exigência dos gramáticos é mais um preconceito Linguístico. Porém, que mal existe em levar um falante do idioma a refletir sobre a referida construção, uma vez que ela vai além do aspecto meramente formal do português? Preconceito não é pedir que o aluno o faça, mas imaginá-lo incapaz de refletir sobre isso, deixando que continue escrevendo como aprendeu nas tabuletas do comércio de seu bairro. Preconceito é impedi-lo de estabelecer essas relações importantes entre a ação e seu objeto, algo que lhe vai servir pela vida afora, quando for pensar sobre qualquer fenômeno mais abstrato.
É ainda nessa crítica a Dad Squarisi que o cientista da USP se deixa perder pelo militante de esquerda. Marcos Bagno tenta aprofundar-se numa análise verdadeiramente linguística e não panfletária do idioma, mas acaba vítima de seu próprio veneno. Ele demonstra que a posição dos elementos num enunciado muda a interpretação de seu significado e, numa argumentação em crescendo, procura provar que, quando se quer dizer que “muitos operários foram demitidos da Ford”, o correto é dizer – na voz sintética – “demitiu-se muitos operários da Ford” e não “demitiram-se muitos operários da Ford”, como preconiza a gramática normativa. Marcos Bagno sustenta que, se o verbo estiver no plural, como no segundo caso, a frase perderá completamente seu impacto e não vai deixar claro que os operários foram demitidos a contragosto – parecerá que pediram demissão, o que esconderia a crueldade de seus patrões.
Aparentemente, Marcos Bagno está coberto de razão. Entretanto, não é ele próprio quem defende o critério pragmático como uma dimensão essencial da análise de um enunciado Linguístico? Pois, sejamos pragmáticos: analisemos esse enunciado não de acordo com esclerosadas normas gramaticais, como diria Bagno, mas segundo os efeitos que ela suscita em seu contexto. Mesmo na linguagem culta de jornais ou universidades, jamais se fala ou se escreve uma frase do gênero começando com o verbo. A ordem normal é sempre a direta: “Muitos operários foram demitidos da Ford”. Se alguém inicia com verbo uma frase assim é porque fala a partir da norma culta, para falantes da norma culta e, ainda por cima, por escrito, muito provavelmente de forma literária e rebuscada. Ora, num contexto desses, escrever demitiu-se em lugar de demitiram-se como quer Marcos Bagno, é matar completamente qualquer efeito da frase. Para ouvintes muito cultos e numa situação formal (como esse público a quem obviamente se destina uma frase do gênero), o desvio gramatical será um ruído na mensagem, o que reduzirá sensivelmente seus efeitos. A não ser que Marcos Bagno, ao propor a extinção total dessa diferença, queira fazer o mesmo com todo falante capaz de apreciá-la.
O autor de Preconceito Linguístico também implica com o acadêmico Arnaldo Niskier por conta de uma observação perfeitamente compreensível. Niskier escreveu: “O sujeito que usa um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na minha opinião, um idiota”. Marcos Bagno comenta: “Ora, se ele mesmo reconhece que o uso de estrangeirismos é a face mais irritante de um país colonizado culturalmente como o nosso, é injusto chamar de idiota a pessoa que é, de fato, uma vítima dessa colonização cultural. Se nosso comércio está repleto de nomes em inglês é porque os comerciantes e os industriais sabem que isso atrai mais o público, que qualquer produto com aparência de estrangeiro tem maior aceitação por parte do consumidor”.
É difícil ler uma coisa dessas sem um frêmito de indignação. O mesmo Bagno que submete a língua ao determinismo econômico, agora submete a economia ao determinismo Linguístico. Qualquer pessoa sabe que – a despeito de outros fatores – o que mais atrai o consumidor é o preço baixo. Até o Carrefour, que tem um público de poder aquisitivo alto, sabe muito bem disso e se um produto de marca não baixa a um preço que ele considera satisfatório, esse produto fica fora das prateleiras. Isso já aconteceu lá com o arroz Cristal e acontece freqüentemente com o Nescafé, uma marca tradicional de café solúvel. As papelarias estão cheias de canetas importadas, com nomes em inglês, mesmo assim a velha Bic continua sendo uma campeã de vendas, a despeito da Lei de Bagno. É que ela reúne baixo preço e qualidade razoável. Das canetas de seu nível é a de mais resistência.
Entretanto, o problema mais grave é o “ético” Marcos Bagno distorcer, mais uma vez, a fala alheia. Bagno sabe muito bem que Arnaldo Niskier não está se referindo aos comerciantes quando diz que usar termo em inglês no lugar do português é ser idiota. Obviamente, Niskier refere-se a jornalistas, economistas, professores universitários, técnicos do governo e outras pessoas do mesmo nível social. Mas Bagno escamoteia esse fato e faz de conta que Niskier está chamando de idiota uma Carolina qualquer da Vila Finsocial que resolve botar na sua confecção o nome de Karollyne. Ora, isso é inglês? Não. É língua bárbara, balbucio do escravo ante o senhor. Logicamente não é disso que trata Arnaldo Niskier.
Essa Carolina da Vila Finsocial pode ser – mas não necessariamente – uma vítima da colonização, passível de pena e não de crítica. Mas o que dizer daquele sujeitinho filho de papai, que vai estudar economia em Chicago e volta de lá esnobando inglês com os colegas, enquanto saqueia o Brasil descaradamente? Pode-se chamar de vítima da colonização aquela gente do BNDES que ficava fazendo piadinhas em inglês enquanto leiloava o país? Podem ser chamados de vítimas da colonização os doutores da UFMG, que, recentemente, queriam proibir o uso do português num congresso realizado na própria universidade, infringindo as leis do país? Pode-se chamar vítima da colonização o velho escritor e professor universitário goiano Heleno Godoy, tardio doutorando da USP, que, ao traduzir contos do inglês, exige que as aspas fiquem depois das vírgulas nas citações e diálogos, como se essa forma de colocação das aspas fosse peculiar ao escritor traduzido e ele precisasse evidenciar isso na tradução? Nada disso. Essa gente não é vítima de nada. Nós, brasileiros, é que somos suas vítimas, uma vez que lhes pagamos as bolsas com que estudam fora do país e nada ganhamos em retribuição. Serviçais, eles estão sempre de costas para o Brasil, encarando de frente os Estados Unidos – não como quem o enfrenta, mas como quem se submete a uma espécie de felação cultural.
Um exemplo dessa submissão pode ser encontrado na revista Signótica (ano 7, 1985), do curso de letras da Universidade Federal de Goiás. Nela há um artigo todo escrito em inglês do professor Pedro Fonseca, doutor em literatura portuguesa pela Universidade do Novo México e professor do curso de letras da UFG. O artigo examina textos da literatura colonial em busca da representação da imagem feminina. E até mesmo um dos textos estudados, Diálogo das Grandezas do Brasil, atribuído a Ambrósio Fernandes Brandão, o Brandônio, é citado em inglês – oito linhas de citação em inglês. Os autores franceses citados, como Beauvoir e Derrida, também o são em inglês. Qual o sentido disso se esses professores são os primeiros a dizer para o aluno que, de preferência, toda citação em texto científico deve dar prioridade à língua de origem do autor citado? Logo, Beauvoir teria que ser citada em francês e Brandônio em português.
Não por acaso Marcos Bagno é um ferrenho adversário do projeto de valorização da língua portuguesa, apresentado pelo deputado Aldo Rebelo, e, em Preconceito Linguístico, afirma, taxativamente, que “não adianta bradar contra a invasão de palavras [estrangeiras] na língua portuguesa” sem analisar a dependência socioeconômica do país. Segundo ele, “é querer eliminar os efeitos sem atacar as verdadeiras causas”. Entretanto, em todo o seu livro, Marcos Bagno não faz outra coisa senão atacar o efeito (a dificuldade da norma culta) em detrimento das causas dessa referida norma não ser bem aprendida nas escolas (entre elas, as péssimas condições do ensino no país). Bagno usa dois pesos e duas medidas: em relação a seu próprio idioma, prega a guerra contra os efeitos; em relação à invasão do inglês, preconiza que se deixe como está até que o Brasil se liberte do jugo norte-americano.
Mais grave é que o mesmo Bagno que impreca contra a norma culta do português, sob o pretexto de que ela é “elitista”‚“branca” e “heterossexual”, louva descaradamente a hegemonia cultural do inglês. Por acaso, o inglês que se impõe ao mundo não o faz por intermédio de sua norma culta – “branca”, “heterossexual” e “ultra-elitista”, porquanto movida a dólar? Só a vesguice materialista explica essa verdadeira unção que Marcos Bagno devota ao poder e ao dinheiro. Pouco depois de não conseguir disfarçar que julga o inglês norte-americano melhor do que os outros porque os Estados Unidos são mais poderosos, Bagno também julga que o português falado no Brasil é o melhor, porque o Brasil é maior e mais forte economicamente do que Portugal. Segundo ele, “quando se trata de língua se deve levar em conta a quantidade”. Ora, se em língua o que conta é a quantidade, por que Bagno não sugere ao MEC que acabe com os programas voltados para a pesquisa e o ensino das línguas indígenas, essas ilhotas perdidas no oceano do português?
Ao ver-se engasgado pela própria incoerência, talvez ocorra a Marcos Bagno desculpar-se com a seguinte afirmação que faz em Preconceito Linguístico: “Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou respirar. Só se erra naquilo que é aprendido, naquilo que constitui um saber secundário, obtido por meio de treinamento, prática e memorização: erra-se ao tocar piano, erra-se ao dar um comando num computador, erra-se ao falar/escrever uma língua estrangeira. A língua materna não é um saber desse tipo: ela é adquirida pela criança desde o útero, é absorvida junto com o leite materno”. Sob esse prisma, estaria explicada a ojeriza que devota à norma culta de sua língua, enquanto aceita passivamente a do estrangeiro. Mas será que Marcos Bagno está certo ao dizer que “ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna”? Se, como afirma Bagno, falar e escrever é como respirar e andar, então, o que faz no currículo escolar a disciplina língua portuguesa se nunca foi necessário introduzir nas escolas as disciplinas andamento e respiração?
Mas também nessa comparação Bagno erra. Até o respirar e o andar podem ser aperfeiçoados, mediante exercícios; aliás, é para isso que existem a ioga e a educação física. Se isso vale para atividades tão pouco modificáveis, como andar e correr (por mais que uma pessoa seja elegante ela não anda de modo muito diferente de outra que não o é), o que dizer da linguagem, que é muito mais artificial do que aqueles dois outros atos, tanto que aparecem muito depois deles na história da espécie? Quando a língua é comparada à respiração na cabeça de Bagno, processa-se, ali, uma redução do estatuto humano – a linguagem falada se torna uma característica animal e o homem volta à condição de símio. E se a fala já á um elemento da cultura, o que dizer da escrita, completamente artificial? Entretanto, Marcos Bagno sustenta que nenhum falante erra em sua língua materna, nem mesmo ao escrever.
Nota
O texto de José Maria e Silva é foi publicado no Jornal Opção em 14 de novembro de 2002. O artigo é considerado uma das críticas mais consistentes à obra de Marcos Bagno.
Na edição de 14 a 20 de julho de 2015, o linguista Marcos Bagno concedeu uma entrevista ao Jornal Opção:
“O português brasileiro precisa ser reconhecido como uma nova língua. E isso é uma decisão política”