Procure entre os signatários dos manifestos “contra o golpe” firmados por intelectuais e artistas uma única pessoa que não tenha aprovado um projeto, conseguido um apoio ou levantado uma graninha no governo federal

Caro amigo Roberto Freire,

Quando você aceitou o convite para assumir o Ministério da Cultura do governo Temer, fiquei feliz. Pensei que a pressão “das esquerdas” sobre a pasta iria, finalmente, arrefecer. Afinal, o que teriam a dizer contra você os “companheiros” que nos 13 anos anteriores à sua posse se habituaram a tratar a casa como uma extensão dos botecos que frequentam? Como essa gente poderia chamar de “golpista” um homem com um passado e uma coragem que, muitas vezes nos anos de chumbo, foram postas em defesa de pessoas que não pensavam exatamente como você? Como essa gente, que se habituara a ver no Ministério da Cultura uma espécie de caixa pagador onde era possível sacar a grana pelos aplausos aos companheiros no poder, iria achincalhar alguém que muito antes de Lula pisar pela primeira vez num sindicato já lutava contra a ditadura? Como essa gente ia vaiar alguém que, muito antes de Dilma pensar em “pegar em armas” contra o regime, já sabia que o caminho da luta armada não levaria a lugar algum e que a única resistência eficaz à ditadura estava no embate politico?

Sim, Roberto. Sua luta contra a ditadura foi autêntica. E você sempre esteve na linha de frente, ao contrário de uns e outros que — enquanto as pessoas que ousavam divergir eram perseguidas e, às vezes, mortas — achavam que criar coelhos e estudar o alcorão eram gestos revolucionários. Nada contra os criadores de coelhos nem contra quem estuda sem fanatismo o livro sagrado do islã. A questão é que você, Roberto, teve a coragem de expor suas ideias numa época em que isso era, de fato, perigoso. Você teve a coragem de confrontar autoridades furiosas num momento em que (ali, sim!) isso poderia lhe custar a liberdade — e não atrair aplausos calorosos.

Seu caminho, sua militância e suas opções políticas sempre foram claras. Em 1989, lá estava você, o primeiro dos candidatos à Presidência da República derrotados no primeiro turno a declarar o apoio a Lula na disputa contra Fernando Collor. Me lembro de um voo de Belo Horizonte para Brasília, quase às vésperas do segundo turno daquela eleição, quando eu (na época repórter da revista Veja) cometi a ousadia de ocupar uma poltrona ao lado do professor Darcy Ribeiro e do ex-ministro Waldir Pires. Você ficou na fileira em frente à nossa. No debate travado durante o voo, você foi o único que não demonstrou desconforto com a obrigação de, naquele momento, apoiar o operário que havia deixado para trás tantos políticos tradicionais.

As pessoas se esquecem, caro Roberto, que a verdadeira luta pela democracia, que a luta contra governos verdadeiramente ilegítimos, foi árdua e deixou muitos pelo caminho. Você permaneceu na estrada com força e dignidade. Se opôs a Collor desde o primeiro momento e, aprovado o impeachment, foi líder de Itamar Franco na Câmara. Foi eleito senador por Pernambuco. Apoiou Lula no primeiro mandato e ao perceber que a situação do governo era tenebrosa não entrou na fila para pegar o seu quinhão: passou para a oposição. Nas idas e vindas da política, tornou-se ministro da Cultura do presidente que substituiu aquela que (acima e além das razões legais que sustentaram seu impeachment) comandou o governo mais incompetente, rasteiro, chinfrim e um dos mais corruptos da história. (No quesito corrupção, somos obrigados a reconhecer, o governo Dilma parece amador diante do que se viu nos oito anos anteriores).

Sabemos das circunstâncias que o levaram ao Ministério da Cultura — talvez a pasta mais aparelhada de toda a Esplanada. Nos últimos anos, o MinC patrocinou programas que funcionaram como uma espécie de Minha Casa, Minha Vida para os profissionais da Literatura, do cinema, da música e de outras artes. Uma espécie de Bolsa Família que acabou deixando a turma mal acostumada. Uma esmola a um homem que é são, já ensinava seu conterrâneo Luís Gonzaga, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão. E essa gente ficou viciada.

Desafio você, com o acesso que tem aos arquivos de tudo o que foi financiado nos últimos anos, a encontrar entre os beneficiados por ações do ministério nos 13 anos e alguns meses anteriores a Temer um “intelectual” que nunca tenha assinado um manifesto a favor de Lula ou de seu partido. Uma única pessoa que ousasse seguir uma linha de pensamento diversa daquela que é dominante entre os antigos donos do poder. Um único artista que não tenha se disposto a engrossar a cortina de fumaça do autointitulado “governo da inclusão social” enquanto os cofres da Petrobras e o Tesouro Nacional sangravam e se exauriam com a roubalheira mais voraz e organizada já vista neste país!

Sim! Eles se queixam do tal “golpe” e continuarão a se queixar! Vão dizer em Cannes e em Berlim que a liberdade no Brasil está correndo riscos. Vão protestar contra aquilo que consideram “golpe” quando, na verdade, o protesto é pelo fato de não terem mais acesso livre e desimpedido ao dinheiro do contribuinte. Dinheiro que, nos últimos anos, fez com que fingissem para eles mesmos que a classe operária havia finalmente chegado ao paraíso e, assim sendo, não havia mal algum em se lambuzar com os restos da festança. Procure, caro Roberto, entre os signatários dos manifestos “contra o golpe” firmados por intelectuais e artistas uma única pessoa que não tenha aprovado um projeto, conseguido um apoio ou levantado uma graninha na pasta que hoje você comanda. Ou que não faça parte da turma que, de um jeito ou de outro, se fartou do melado e se lambuzou com o dinheiro do povo. Se encontrar um, apenas um beneficiado que não pense como eles, assumo publicamente o compromisso de votar em Lula nas próximas eleições.

Sua obra pela democracia vai muito além de dois ou três livros lidos por meia dúzia de pessoas (entre as quais, devo confessar, me incluo). Não quero tirar o valor de ninguém. Só quero pedir que você não ceda às pressões. Por trás de cada “fora Temer” gritado por essa gente está o desejo de manter as coisas exatamente como eram. Está a pressão para que o dinheiro do contribuinte continue a alimentar a boa vida dos que tiveram acesso liberado aos programas e projetos da pasta. Está a frustração de gente que, certamente por vergonha de reconhecer em público que a mamata acabou, fica por aí gritando (ou escrevendo no facebook) palavras de ordem em favor do que eles consideram democracia. Democracia que, para eles, é o governo dos amigos, pelos amigos, para os amigos.

Não preciso pedir que você levante a cabeça porque você nunca a baixou. Nem para os militares, nem para a dilmocracia corrupta nem diante da grosseria dos que consideram a falta de educação um gesto revolucionário. Essa turma, meu caro Roberto, não sabe o que é ditadura. Mas sabe muito bem o que é uma boquinha e não quer perde-la de jeito nenhum!

Receba meu abraço,

Ricardo Galuppo

jornalista