Distorce-se o sentido de laicidade do Estado quando se promove oficialmente (leia-se: estatalmente) determinadas culturas ou instituições religiosas

Thiago Cazarim

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Em matéria do dia 1 de novembro de 2016, a “Revista Fórum” traz a público o projeto de lei do deputado estadual Rodrigo Moraes (DEM-SP) que prevê a distribuição obrigatória de exemplares da Bíblia a estudantes de escolas municipais e estaduais de São Paulo (http://www.revistaforum.com.br/2016/11/01/deputado-apresenta-projeto-de-lei-que-preve-distribuicao-de-biblias-contra-o-fim-dos-tempos/). Segundo a matéria da Fórum, o autor da proposição afirma que sua lei não traria ônus aos cofres públicos, já que os exemplares seriam distribuídos gratuitamente às escolas que os solicitassem e “que a distribuição de bíblias no âmbito escolar poderia auxiliar os alunos a retomarem ‘condutas antigas’, uma vez que “os alunos não aceitam orientação dos professores. São filhos contra pais e professores’”.

Além de questões básicas sobre a logística requerida pelo projeto (qual versão da Bíblia seria distribuída, a católica ou a protestante?; por que e como caberia ao Estado realizar o levantamento da demanda por Bíblias?), o projeto de Rodrigo Moraes ainda joga com a opinião pública por meio de uma falácia elementar. Ao dizer que a lei não afetaria a laicidade do Estado, o deputado utiliza como exemplo a possibilidade de as religiões de matriz africana também distribuírem seus livros sagrados nas escolas públicas. O problema é que tais religiões têm cultura fundamentalmente oral e não possuem livros religiosos oficias — fato que, creio, está longe de ser desconhecido pelo ilustre deputado.

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Projeto de poder

À parte com estas questões jurídicas, sobre as quais impera a falta de comprometimento real, é preciso entender qual projeto de poder pode estar em jogo neste tipo de proposição legislativa. Em tempos de denúncias da utilização de igrejas e off-shores como a Jesus.com para lavagem de dinheiro (http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/eduardo-cunha-tem-porsche-em-nome-de-jesus-com/), a benevolência da distribuição de Bíblias gratuitas pode ter relação com um projeto político e econômico amplo, que poderia ser resumido em três pontos:

1) a distorção do sentido de laicidade do Estado como forma de assegurar legalmente o direito de se apropriar da escola como braço institucional para promover oficialmente (leia-se: estatalmente) determinadas culturas ou instituições religiosas. Aqui seria importante retomar a Lei Federal 13.246, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff em 12 de janeiro de 2016, que declara o dia 31 de outubro como Dia Nacional da Proclamação do Evangelho (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13246.htm). Tal lei não coloca simplesmente como tarefa do Estado o papel de promotor do livro sagrado cristão, mas explicita como setores da esquerda brasileira tiveram participação ativa no fortalecimento de projeto político de grandes grupos religiosos evangélicos;

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2) o aumento na economia editorial e cultural das igrejas que imprimem bíblias que, dando uma amostra grátis de um livro sobre o qual não incide a cobrança de certos direitos autorais, torna atraente a aquisição de outros livros, ingressos para shows, CDs, DVDs, camisetas etc. Existe um mercado cultural, inclusive cinematográfico e televisivo, cada vez mais voltado à cultura religiosa, que é também uma cultura de mercado;

3) a possibilidade de mascarar ainda mais transações financeiras sob a rubrica de doações. Se o nome de Cristo é usado para esconder uma frota de carros de luxo, como no caso do ex-deputado Eduardo Cunha, o que garantiria que empresas do ramo editorial não poderiam ser usadas para práticas como caixa 2 e lavagem de dinheiro?

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Seria importante questionar se, por meio da alegada preocupação com a recuperação de uma idílica relação familiar em que os filhos e pais não entram em conflito, não estaríamos realizando a apropriação indevida do Estado para o propósito de instituições financeiras e culturais privadas. Isso porque fica patente que as mega-igrejas, que há cerca de quatro décadas ocupam os vácuos de diversas instituições, em especial do Estado, não querem mais se limitar a uma ação social de caráter suplementar. Se o Estado muitas vezes se mostra ineficaz (não por natureza, mas por mau uso ou abuso), a poderosa inserção do pentecostalismo e do neopentecostalismo se deve aos méritos próprios de instituições que cada vez mais assumem e exigem seu protagonismo em nossa sociedade.

O projeto que se perfila por trás dessa generosidade editorial evangelística, portanto, parece obedecer a um cálculo preciso. Não se trata simplesmente de dominar o indivíduo em sua intimidade, em sua alma ou nos seus gestos, roupas, aparência, formas de dizer e fazer e pensar. Esta é uma visão muito parcial do problema, que de toda forma escamoteia o fato de que a base política e social dos parlamentares evangélicos possui critérios bastante sólidos para eleger seus representantes muito além da agenda moral que eles postulam. Quem é que ainda acredita que se elegeria um Messias incapaz de responder aos problemas da solidão e da violência nas grandes cidades ou da desagregação familiar num mundo em que o compartilhamento de valores se mostra cada vez mais difícil? Fora do esquematismo do fiscal da vida íntima, deveríamos levar a sério a tentativa de apropriação das estruturas estatais para a ampliação de um projeto político e econômico que se vale de isenções tributárias gigantescas para se consolidar.

Ignorar o flanco econômico e político destes setores, com alta capilaridade social, é reproduzir na crítica aquilo que ela pretende combater: o moralismo (sobretudo de esquerda). Para realmente escapar deste terreno pantanoso, seria importante situar o projeto da free Bíblia on-demand nas escolas públicas em relação ao tipo de capitalismo de Estado que setores fortes do Brasil evangélico querem efetuar. Para aqueles que defendem a neutralidade política nas escolas públicas e que veem Marx e as teorias sobre gênero como instrumentos de captura da juventude, nada mais ideológico e pragmático do que associar atividades políticas, religiosas e econômicas ao espaço escolar.

Se é papel da escola incorporar os debates que ocorrem na vida de sua comunidade — inclusive o debate sobre os valores religiosos dos estudantes —, é de se questionar se isso equivale a equiparar a distribuição de livros didáticos à de livros religiosos. Afinal, num país que possui diversas universidades produzindo gratuitamente conhecimentos formais (científicos, filosóficos e artísticos), qual a lógica de se tornar obrigatória a presença da Bíblia? Como priorizar, no espaço que seria dedicado à formalização dos saberes, justamente aqueles que historicamente contestaram e continuam contestando a ciência? Como colocar em pé de igualdade Darwin e Moisés-Cristo? Esta contradição, porém, só não é maior do que aquela que ocorre quando acusam docentes de usurpar a função da família ao mesmo tempo em que esperam da escola que recupere aquilo que a própria família não consegue: controlar as inquietações e o espírito contestador da juventude. Se em casa a Bíblia não surte efeito, será que a culpa é da escola?

Thiago Cazarim é professor do Instituto Federal de Goiás.