Aliado a Brizola, o político goiano foi decisivo para a posse de João Goulart. Depois, em 1964, ficou contra o presidente

Mauro Borges: um dos principais modernizadores da gestão pública em Goiás
Entrevista publicada entre agosto e setembro de 1998

As memórias do estrategista

A entrevista do ex-governador de Goiás Mauro Borges Teixeira foi publicada pelo Jornal Opção em três edições, entre agosto e setembro de 1998. Anos depois, ao ser republicada, o jornal voltou a ouvir Mauro Borges, que disse: “Como tenho a letra péssima, vou elaborar um roteiro e, em seguida, vou gravar minhas histórias. Quero relatar a minha infância em Rio Verde. Eu fui forjado lá, numa escola heroica, na qual não havia lugar para covardia”. Em seguida, disse: “A minha saúde, para um homem de 81 anos, está ótima. Faço caminhadas e minha memória é muito boa. Eu tomo Ginkgo Biloba”. Ele morreu em 29 de março de 2013, aos 93 anos.

Inquirido sobre o então presidente Fernando Henrique Cardoso, Mauro Borges não mostrou entusiasmo: “Não votaria nele de novo”. O ex-governador frisou que FHC é o tipo de líder que não decide, que é “empurrado” pelos fatos. Sobre João Goulart, o Jango: “Era um homem bom, mas despreparado para governar. Ele era muito fraco”.

Leitor inveterado de jornais, Mauro Borges diz que sua preferência está nas páginas de política, pois se mantém bem informado. “Leio o Jornal Opção e recomendo a meus filhos, parentes e amigos. É o jornal que faz a melhor reportagem política do Estado.”

Mauro Borges nasceu em 15 de fevereiro de 1920 — este ano comemora-se seu centenário — e morreu em 29 de março de 2013, aos 93 anos.

Mauro Borges e o presidente Juscelino Kubitschek | Foto: reprodução / Arquivo Pessoal

Depoimento histórico/Mauro Borges/primeira parte

O tempo é disfarce. Quando passa, é por dentro. E se o coração não sente o tempo, os olhos muito menos. Por isso é que os relógios pararam na manhã de terça-feira, 18, quando a equipe do Jornal Opção entrevistou o ex-governador Mauro Borges Teixeira. Em seu amplo apartamento, no Setor Oeste, a história repousa sobre o criado: é o jovem Mauro arrostando os aviões do Exército e, meio à multidão, ou Pedro Ludovico, com os olhos metidos num horizonte que só pode ser o da nova capital. Foram seis horas (das 10 às 16h30. Mauro, mesmo avisado pela diligente secretária Suzana, sequer almoçou. Ele que, aos 78 anos, tem horários bem definidos) de entrevista com o ex-governador de Goiás. E, mesmo brincando de esconder na conversa franca o que pretende revelar na palavra escrita, Mauro Borges acabou antecipando muito do que tem a dizer sobre a história recente de Goiás, da qual foi um protagonista.

Um exemplo é o que revela sobre sua infância: a coragem da mãe e da determinação do pai. E é com muito amor que Mauro Borges fala de si mesmo, relembrando o menino peralta que foi, no bravio mundo de Rio Verde, onde nasceu. “Lá, era um faroeste. Todo mundo andava armado”, afirma, com uma franqueza que muitas vezes falta aos biógrafos de seu pai. É ele próprio quem reconhece em Pedro Ludovico muito mais coragem do que experiência para fazer a Revolução de 30 em Goiás. E, talvez por isso mesmo, é que o admira como um herói.

Mauro Borges fez um governo que contribuiu para modernizar Goiás, mas, embora tenha apoiado o golpe de 1964, foi deposto porque o presidente Castello Branco não resistiu às pressões da linha dura das Forças Armadas

Nesta entrevista, que contou com a participação do jornalista e historiador José Asmar e da qual se publica a primeira parte nesta edição, Mauro Borges traça um vívido painel de momentos cruciais da história goiana. Seu relato não é o de observador, mas de protagonista. Mesmo assim é capaz de abstrair a emoção latente em seus atos para tentar extrair deles as razões de sua intenção ao praticá-los. Essa atitude não é fácil. Mas a imagem que Mauro Borges traça de si e dos seus não tem retoques. Apenas elegância.

Com o cabelo ralo e o sorriso constante que brinca em seus lábios, o ex-governador Mauro Borges é a equação inversa do que costuma dizer sobre o ex-presidente Castello Branco. Explica-se: para Mauro, Castello não conseguiu enfrentar o golpista Costa e Silva por ser um “netinho da vovó”, incapaz de partir para um embate físico com o adversário; mas ele, Mauro, agora que se aposentou da política, parece ter-se tornado uma espécie de “vovô dos netinhos”, a se considerar o carinho que dispensa ao filho Rodrigo. “Hoje, ele é o meu filho. Daqui uns tempos eu é que vou ser o pai dele”, diz com um sorriso largo e o braço descansando sobre o ombro de Rodrigo Borges, que herdou da família a paixão política.

Mas, por trás do bonachão Mauro Borges que se ocupa em escrever seu livro de memórias, há um homem enérgico que enfrentou situações adversas com muito pulso. Além da ousada resistência que ameaçou impor aos militares, quando resolveram depô-lo do governo de Goiás, Mauro Borges também revela que foi importante não apenas na posse de João Goulart, em 1961, mas também de Juscelino Kubitschek, em 1956. Ele conta que era um major do Exército e enfrentou seu comandante que era contrário à posse de Juscelino. “Creio que se não fosse minha atuação naquele episódio, a situação no sul teria sido diferente”, afirma. Nesse histórico depoimento, ele também detalha as suas desavenças com João Goulart e revela que Jango pensou em fechar o Congresso e implantar uma ditadura no país.

Leonel Brizola e Mauro Borges: os governadores do Rio Grande do Sul e de Goiás impediram o golpe em 1961 e garantiram a posse do presidente João Goulart | Foto: Reprodução

Helvécio Cardoso — Como foi a sua infância?

Muita gente sabe que nasci em Rio Verde. Meu pai era médico e clinicava lá. Casou-se cedo com minha mãe, que era uma mulher linda e muito prendada. Meu avô Borges era uma figura excepcional. Levava todas as filhas, cinco ou seis, para estudar em Franca, no interior de São Paulo. A viagem era a cavalo, até Uberaba, e de lá iam de trem. Em Franca tinha um colégio muito bom, de irmãs francesas. Nele as moças aprendiam aquilo que era considerado essencial na época: falar um pouco de francês, desenvolver uma boa caligrafia, ter um bom comportamento à mesa. Todas as minhas tias e minha mãe estudaram lá. Já Rio Verde era a cidade que começava a ser a alma da oposição em Goiás. Meu pai era médico jovem e sempre foi de temperamento muito positivo, franco, corajoso. Logo começou a fazer o jornal O Sudoeste, juntamente com Ricardo Campos e outros companheiros. Esse jornal teve uma tremenda importância. Foi ele que encorpou a oposição no Estado. A cidade de Goiás, naquele tempo, era uma cidade isolada, completamente perdida nesses sertões. Mas era uma Atenas sertaneja. Aliás, acho que fui eu quem a batizei com esse nome. Porque, lá, se estudava francês, grego, latim, no Lyceu de Goiás, onde estudei durante cinco anos. Tinha pessoas muito cultas.

José Asmar — Certa vez, li um artigo de Pedro Ludovico sustentando que Goiás já possuía uma classe agropecuária forte, que merecia uma associação.

Sem dúvida. Meu pai era um homem inteligente, com uma boa formação intelectual, e chegou à conclusão de que não havia espaço para uma oposição democrática, liberal, que era preciso seguir o caminho das armas. Goiás, sozinho, não tinha condições, era um Estado pobre. As esperanças estavam no Rio Grande do Sul. Como se sabe, as coisas se precipitaram, com a morte de João Pessoa, na Paraíba. E o Exército todo marchou do Sul para o Norte. Meu pai não admitia a hipótese de ficar de fora dessa luta. Queria realmente combater, apesar de não ser militar e não saber lidar bem com armas. Então, valeu-se dos garimpeiros da região de Baliza. O problema é que meu pai não era um profissional de luta armada, tinha poucas informações sobre o assunto. Seria muito difícil ele juntar aquele pessoal do garimpo na hora H. No dia 3 de outubro de 1930 arrebentou a Revolução. Ele teve que fugir para Uberlândia, porque estavam atrás dele. Abrigava-se na casa de Diógenes Magalhães. Com isso, ficou longe do seu pessoal e de suas armas. Ele tinha uns 130 fuzis de guerra, umas duas ou três metralhadoras e muita munição. Como não tinha mais acesso a esse equipamento, a solução foi armar uns revolucionários em Minas. Em Ituiutaba conseguiu 80 homens jovens. Não era tão bons de briga como os baianos do garimpo, mas estavam disposto a brigar. Quando entrou em Goiás, teve alguns confrontos, um deles em Quirinópolis, que naquele tempo se chamava Capelinha, e de lá rumaram para Rio Verde. Meu pai queria atacar ao amanhecer, mas, por falta de prática de lutas, apesar de corajoso, meu pai foi cair em cima da polícia. Era um campo limpo, e choveu tiro em cima deles. Não sobraria ninguém. Exausto, meu pai não controlava mais o sono e dormiu. No outro dia, pela manhã, por volta das oito horas, apareceram uns meninos procurando feridos, gente morta. Viram meu pai e avisaram a polícia. Eles o prenderam e o levaram para a cadeia, imediatamente. Ficou preso muitos dias em Rio Verde, até que resolveram levá-lo para Goiás. A intenção era desfilar, na capital, com meu pai preso na carroceria do caminhão, para mostrar que um importante revolucionário tinha sido preso.

Herbert de Moraes Ribeiro — Houve uma ordem para matar Pedro Ludovico?

Já ouvi essa conversa, mas não tenho informações seguras sobre o assunto. O que sei é que, quando meu pai estava a caminho de Rio Verde, sendo levado pelas forças do governo, houve a reviravolta. Eles tinham parado em Mossâmedes, para pernoitar. Na época, a cidade se chamava Aldeia, por ter existido ali uma aldeia de índios. Mas parece coisa de cinema: veio um carro e freou perto do caminhão. E alguém avisou ao Zaqueu que a Revolução tinha ganhado a luta, que meu pai era o novo chefe. O Zaqueu disse: “Doutor Pedro, a Revolução triunfou. O senhor está livre. Se o senhor quiser, acaba de chegar conosco em Goiás, com todo o apoio. Caso contrário, pode voltar para Rio Verde e eu lhe dou uma parte da escolta”. Meu pai pensou um pouco e resolveu seguir para Goiás. Estava pálido, magro, barbudo, com a roupa suja. Resolveu ir para a casa da minha avó. Tomou banho, fez a barba, pediu ao João, um sobrinho dele, para lhe comprar um revólver. Colocou a arma na cintura e subiu sozinho para o telégrafo. Contatou o comando de Minas Gerais e pediu reforços. Havia uma coluna revolucionária lá, comandada pelo irmão do Jaime Câmara, o Joaquim Câmara. Meu pai pediu que ela viesse reforçá-lo. Estava sozinho. Toda a polícia goiana era caiadista, depois de 20 anos de mando. Ele temia não poder resistir a um contra-ataque. Meu pai foi nomeado interventor pelo Oswaldo Aranha, que era encarregado disso. Meu pai era tímido e não foi procurá-lo, mas o João Alberto foi e disse ao Oswaldo: “Em Goiás, o único que lutou mesmo, deu tiro e tomou tiro, foi Pedro Ludovico”. O que foi decisivo para sua nomeação.

José Asmar — Cabe lembrar, também, de Mário Caiado. Ele foi um revolucionário de primeira hora, liderou uma campanha contra os parentes, e aparecia na lista submetida a Getúlio Vargas para que escolhesse o interventor. Era o preferido, mas, quando Oswaldo Aranha viu o sobrenome, argumentou: “Caiado com Caiado vai parecer coisa de família. Vamos escolher outro aqui. Então, seu pai foi o indicado.

Herbert de Moraes Ribeiro — A Revolução de 30 teve algum fundo ideológico?

Nada. O objetivo era acabar com o coronelismo, democratizar as eleições, modernizar o país. Um dos objetivos constantes do programa da Aliança Nacional Libertadora, naquele tempo, era o voto livre, secreto. O voto era a descoberto, o que facilitava a fraude. E não havia o voto feminino.

Mauro Borges é entrevistado por Herbert de Moraes Ribeiro, Euler de França Belém, José Maria e Silva, Helvécio Cardoso e José Asmar, em sua residência, no Setor Oeste

Helvécio Cardoso — Como o senhor acompanhava esses acontecimentos?

Esse é um dos pontos importantes do meu livro de memória. Minha infância foi muito interessante. Estou, inclusive, lendo Mark Twain [escritor norte-americano] e José Lins do Rego, para me inspirar. Já redigi a parte relativa à infância, mas ainda falta alguns retoques. Não sei se terá algum mérito literário, não sou um profissional da pena. Mas nossa vida era interessantíssima. O córrego ficava um pouco distante de casa, mas eu me lembro que as pacas se aproximavam muito, vinham dar cria debaixo da casa da gente. E eram pacas bravas. Meu pai me deu uma espingarda de nove milímetros e eu virei o executor de gatos. Andava com o estilingue no pescoço e a espingarda na mão. De vez em quando, dona Isaura aparecia: “Olha, Mauro, foi bom você aparecer. Eu queria que você matasse um gato para mim. Ele não deixa um pinto”. (Risos).

Herbert de Moraes Ribeiro — Quais eram seus amigos de infância?

Paulo Campos foi um grande amigo, mas sua mãe não deixava que brincasse conosco. Éramos muito levados. Para brincar com ele, só ficando na chácara, sob as vistas dela. A gente fazia barragem nos córregos, no Córrego Barrinha. Íamos também no Córrego das Abóboras, mas ele ficava mais distante. Nossas brincadeiras desenvolviam a agressividade, a liderança.

Herbert de Moraes Ribeiro — O senhor era o líder do grupo?

De certa forma, sim. Eu determinava o lugar de fazer a barragem no córrego. Quando um menino discordava da gente, era proibido de tomar banho no córrego. Se insistia, juntávamos dois ou três e dávamos uma surra nele. Outras vezes, tinha uma turma tomando banho e a gente se aproximava escondido. A roupa dos meninos ficava num lugar bem seco, para que os pais não desconfiassem que estavam tomando banho no córrego. Então, a gente se aproximava escondido, pegava a roupa deles, dava muitos nós e, depois, urinava em cada nó. (Risos) Era para eles não usarem a boca para desatar os nós.

Herbert de Moraes Ribeiro — E seus estudos, na época?

Não sei por que, mas eu não frequentava escola normal. Tinha professor particular. Quando cheguei na Cidade de Goiás, em 1931, com onze anos, é que fui para o Lyceu. Mas estava muito ruim. E o Lyceu tinha bons professores, eram rigorosos. Tive que tomar aulas particulares para me ajustar ao colégio.

José Maria e Silva — Como era a relação do senhor com Pedro Ludovico, em casa?

Ele era, pessoalmente, o meu herói. Eu era um menino ativo e via todos os riscos que ele corria nesses enfrentamentos. Não largava dele, acompanhava tudo. Meu pai andava sempre armado. Certa vez, um tenente se aproximou dele, na rua, e perguntou: “O senhor é o doutor Pedro?” Meu pai respondeu: “Sou sim. E o senhor, quem é?”. Ele disse que era militar, o novo delegado, que tinha “ordens negras” contra meu pai. Meu pai não titubeou: “Negras, por quê? Não sou um cidadão perturbador da ordem, sou um médico”. Então, ele perguntou se o meu pai estava armado e meu pai disse que não. O tenente refletiu um pouco e disse que ia dar uma busca no meu pai. Quando ouviu aquilo, meu pai foi duro: “Eu disse que não estava armado para evitar confusão. Mas tente encostar a mão em mim e vou encher o senhor de bala”. O tenente embranqueceu. Tremia todo, ficou desmoralizado. Muita gente viu a cena. Então, o tenente foi à venda e tomou um copão de cachaça. Foi à delegacia, reuniu um pelotão de uns 30 homens e veio subindo a rua, com o revólver na mão. Na porta da nossa casa, ele gritou “Alto!” e mandou a tropa virar para o nosso lado. Meu pai já tinha pegado suas coisas e saído de casa. Mas a mamãe (dona Gercina Borges Teixeira) não sabia e saiu na varanda. Quando o tenente disse que ia dar uma busca em nossa casa, ela disse para ele com muita firmeza: “O senhor só entra aqui passando por cima do meu cadáver”. O tenente ficou espantado e foi embora com a tropa. Assisti a tudo isso, pensando em enfrentar também o tenente. Fiquei pensando: “Se ele for entrando, pego minha espingarda e dou um tiro na cara dele. Ele vai ficar cego dos dois olhos”. Rio Verde era um faroeste. Tinha, no máximo, uns 5 mil habitantes. Todo mundo andava armado, até nós, os meninos, carregávamos faca, canivete, estilingue. Havia brigas de turma, os meninos da rua de baixo contra os da rua de cima. A juventude era completamente diferente da de hoje. Quando meu pai já era interventor, passávamos férias em Santa Helena. Andávamos a cavalo, caçávamos com carabina.

Helvécio Cardoso — O senhor estava estudando em Goiás, quando começou a construção de Goiânia. Quando o senhor veio morar na nova capital?

Continuamos estudando em Goiás. Só quando a capital foi mudada efetivamente, é que nossa família veio para cá, em 1937.

José Asmar — Exato. Foi em 23 de março de 1937 que Pedro Ludovico decretou a mudança da capital.

Antes disso, a novidade foi a revolução de São Paulo, a Revolução Constitucionalista de 32. Foi um espetáculo. Aquele era um ambiente que moldava nossa personalidade. Quando estourou a revolução em São Paulo, o doutor Mário Caiado, amigo nosso, fez uma reunião onde funcionava a Assembléia Legislativa, em Goiás, na Rua 13 de maio, bem em frente à casa da minha avó, dona Josefina Ludovico, mãe do meu pai. Na reunião, ele disse que São Paulo queria se separar do Brasil e que Goiás precisava mandar um batalhão para a fronteira com São Paulo. Conclamou os que quisessem ser voluntários a passarem para um lado da sala. A reunião estava cheia de gente, mas os que se apresentaram como voluntários foram muito poucos. Eu tinha 12 anos. Mas fiquei envergonhado com aquilo e fui para o lado dos que se apresentaram. Então, Mário Caiado nos mandou para o quartel, para recebermos o fardamento para a luta. Fui junto. Ninguém falou nada, ninguém pareceu estranhar minha atitude. No quartel, a botina, as fardas, tudo era grande para mim. Resolvi levar assim mesmo para a costureira arrumar. Juntei aquilo tudo e corri para casa, orgulhoso, doido para mostrar a meu pai. Quando ele me viu com o fardamento, ele perguntou o que significava aquilo. Expliquei que ia para a luta com São Paulo e disse que tinha condições, que atirava muito bem. Vi que, no fundo ele gostou da minha valentia. Ficava sensibilizado com essas coisas. Então, pensou, pensou, e depois disse: “Você é muito menino ainda. Vai devolver essas coisas. Não pode ir”. Fui chorando.

Herbert de Moraes Ribeiro — Em sua última entrevista, concedida ao Jornal Opção, Pedro Ludovico disse que dona Gercina teve grande influência na vida dele. Dona Lourdes também teve muita influência na vida do senhor? Ela teve participação efetiva em seu governo?

No plano administrativo, no governo, ela não interferia muito. Mas ela foi aquela presença forte em minha vida, o esteio. Quando eu estava estudando para o Estado Maior, tinha que me esforçar muito, estudar demais, e ela foi importantíssima, me ajudando sempre, sem nunca reclamar de nada. Eu tinha que estudar uns mapas enormes. Na época, o único Estado que tinha mapa numa escala de 1 por 100 mil parece que era São Paulo. Em relação aos demais, tínhamos que trabalhar com aquelas cartas de escalas grandes, unindo uma com a outra, colando tudo. Sou meio desajeitado para essas coisas, então, minha mulher, que era extremamente hábil, aprendeu a colar aquelas cartas e passou a fazer esse trabalho. Na casa, tinha cartas por todo lado. ficavam maiores do que a mesa e eram espalhadas no chão. Ela também marcava as cartas, passando um lápis azul nos rios, um lápis vermelho nas estradas. Nas curvas de nível, passava um marrom e ia escurecendo até obter aquela sensação muito nítida do relevo, dos rios, das alturas. Não era um trabalho científico, mas exigia método e muita paciência. Ela ficava horas e horas fazendo aquilo para mim. Depois, arranjava um jeito de ficar ao meu lado sempre, para que eu não dormisse. Minha mulher era muito decidida, corajosa. Só uma vez, durante aquela crise terrível, ela se mostrou abalada… (Nesse ponto da entrevista, Mauro Borges tem os olhos vermelhos, marejados. A crise a que se refere é a da sua cassação.) Fico muito emocionado ao falar dela. (Recompõe-se) Os aviões ameaçavam o palácio. Nessa hora minha mulher chorou. “Nossos filhos vão morrer também”, ela disse.

Herbert de Moraes Ribeiro — Qual foi a reação de dona Gercina no momento de sua cassação?

Ela deve ter herdado a enorme coragem do meu avô, o pai dela. No dia da intervenção, por volta das seis horas da manhã, vieram três oficiais ao palácio entregar o ato da intervenção. Às nove horas, o clima já estava horroroso. Então, minha mãe ligou e disse: “Meu filho, seu pai e eu vamos já para aí”. Eu disse a ela: “O que a senhora e meu pai vêm fazer aqui?” Ela não titubeou: “Meu filho, nós vamos para morrer com você aí”.

Euler de França Belém — Dona Gercina e Pedro Ludovico eram pais severos? Eles batiam muito no senhor?

Minha mãe batia, mas as surras de meu pai eram muito piores. Certa vez, apanhei tanto do meu pai, que fiquei com o corpo marcado. Então, fui à casa de um parente nosso, o senhor João Baiano, casado com uma prima da minha avó. Acho que ele viu uma mancha roxa no meu corpo e perguntou se meu pai tinha me batido. Eu disse que sim, mas ele não falou mais nada. Depois, apareceu lá em casa para conversar com meu pai. Meu pai o respeitava muito, era um homem muito bom, muito sério. Ele e meu pai conversaram um pouco, então meu pai perguntou se a ida dele lá em casa era apenas uma visita ou se ele precisava de uma consulta médica. Ele disse: “É só uma visita, um pedido que vim fazer ao senhor”. Meu pai disse: “O senhor pode fazer o pedido que eu atendo”. Então, ele disse: “Eu vim pedir para você não bater mais no Mauro desse jeito”. Meu pai ficou sem jeito: “O pedido do senhor é muito justo. Eu não bato habitualmente no Mauro, mas, quando perco o controle, bato com muita força. Mas prometo ao senhor que nunca mais vou bater no Mauro”. E, de fato, nunca mais meu pai me bateu. Eu tinha, na época, de oito para nove anos.

O aluno do presidente Castello Branco

José Asmar — O senhor é um bom atirador? Como surgiu sua vocação para o Exército?

Fui campeão de tiro do Exército. Acho que minha vocação surgiu ainda em Rio Verde. Meus pais nunca se opuseram a essa vontade. Em 1936, fui para o Rio de janeiro me preparar. Em Goiás, não havia ensino adequado para a escola militar, que era muito rígida, o pessoal quase todo era reprovado, o ensino era mais acadêmico, história antiga, essas coisas. No Rio, fui fazer um curso preparatório muito bom. Era setembro, e as provas seriam em janeiro. Ninguém sabia que eu era filho de governador. Sempre fui modesto nessas coisas. Fizemos um teste no próprio curso e fui reprovado, como a maioria. Eu não tinha condição de fazer o exame. Fiquei triste, mas não foi uma surpresa. Eu sabia que não estava bem em matemática. Então, tomei aulas com um velho almirante, reformado, que tinha sido professor. Era aula particular em tempo integral. Naquela época, a academia militar era até mais rígida do que hoje. Quando o tenente falava, o cadete tinha que acelerar. Era um pessoal de mentalidade francesa. Parece que os franceses são bonzinhos, mas não são nada, são muito rígidos. Eu me preparei bem, com o almirante, e consegui passar. Eram 1 mil e 500 candidatos para 300 vagas, cinco candidatos por vaga.

Herbert de Moraes Ribeiro — O senhor sentiu dificuldades para se adaptar ao quartel?

Senti. A disciplina era muito rígida, e eu tinha uma formação civil, embora, no campo, fosse até melhor do que muitos deles. A maior parte dos alunos tinha vindo de colégio militar. Eram acostumados a conviver com tenente, sargento, durante anos. Eu não, não tinha hábito com aquilo. A gente tinha aula e exercício o dia inteiro. À noite, ainda tinha que estudar até às dez. Eu gostava mais quando saía para o campo. Foi nessa época que conheci o Castello Branco. Ele era major, comandante do batalhão de infantaria dos alunos da escola militar. Um dia, quando eu era cadete do primeiro ano, em 1938, fazíamos um exercício de ataque, com o apoio da artilharia, atirando bala de canhão. Mas não tinha ninguém atirando na gente, era só simulação. Tinha um tenente observando se a gente estava seguindo as instruções corretamente. Por estarmos muito próximo da área de tiro, a partir de 300 metros, a gente estava a mercê dos tiros. Então, tínhamos que nos resguardar do fogo. Eu estava muito perto da posição do inimigo. Já não podia mais sair andando nem correndo, tinha que avançar em lances curtos, me abrigando de buraco em buraco. A exposição tinha que ser de poucos segundos, e não podia haver nenhuma relutância. Então, pulei dentro de um buraco e fiquei com o fuzil. O tenente gritou que eu estava apenas escondido, sem campo de tiro. Disse isso sem entrar no buraco. Eu protestei, disse que tinha campo de tiro. O Castello Branco ouviu a conversa e se aproximou. Olhou para o tenente, entrou no buraco em que eu estava e confirmou: “Tenente, ele tem campo de tiro”. O tenente ficou todo sem graça. Então, o Castello anotou meu nome. Nunca mais me esqueceu. Deve ter ficado sabendo que eu era filho do interventor Pedro Ludovico.

José Asmar — Além de Castello Branco, quais os outros militares desse tempo que se destacaram?

O marechal Henrique Teixeira Lott não foi diretamente meu instrutor, mas era dessa época também. Era um Caxias, um radical. Mas um homem muito digno, como o Castello Branco também era. O problema do Castello era o fato de ter sido o netinho da vovó. Se tivesse sido um menino criado solto, teria sabido enfrentar o Costa e Silva. Quando o Castello deparou com um homem violento, destemperado como o Costa e Silva, não soube enfrentá-lo homem a homem, pegá-lo pelo colarinho, derrubar no chão, meter o calcanhar. Castello, quando era menino, não brigava, não saía à rua. Era um homem fraco. Essas coisas se aprende na rua. O Costa e Silva o humilhou várias vezes, na frente de todo mundo. Costa e Silva era um sargentão, mas era o homem da tropa, muito inteligente.

Helvécio Cardoso — Por que, naquela época, os senhores não foram para a Segunda Guerra?

Eu saí da escola militar em 41 e fui para Santa Maria, no Rio Grande do Sul, com quatro amigos nossos. Era uma cidade de fronteira, com várias unidades militares baseadas lá. Eu era da infantaria, mas não sabia que, na fronteira, as unidades são geralmente unidades móveis, de cavalaria ou artilharia. Infantaria, por ser mais pesada, é de retaguarda, de resistência. Fiquei meio decepcionado e fui para Foz do Iguaçu. Fiquei dois anos lá. Aprendi a falar castelhano tão bem quanto os argentinos. E estudei muito a história, a geografia e a economia do Paraguai e da Argentina. Meus colegas ficavam admirados. Pensavam que eu fosse castelhano. Depois de dois anos, fui para Petrópolis. Servi como guarda da Presidência da República.

“Jango queria a ditadura”

Herbert de Moraes Ribeiro — Foi o Exército, como o senhor mesmo admite, quem lhe proporcionou uma excelente formação básica. E o senhor tinha pretensões de seguir carreira. Quando foi que decidiu dar o salto da caserna para a atividade política?

Quando fui ser diretor da estrada de ferro, em Araguari, no interior de Minas Gerais, é que começou a fermentar em mim a possibilidade de entrar na política. Consegui pôr a estrada de ferro para funcionar. Era um caos absoluto. Não tinha serviço noturno, não havia controle de tráfego. Quando o trem estragava, ninguém comunicava o fato à sede. Iam para o cerrado, colher frutos de munguba. O trem ficava parado durante horas. Então, aproveitando a rede do telégrafo, mandei instalar um sistema telefônico para controlar a chegada do trem em cada estação. Com isso, pus para rodarem oito trens por dia, quando antes só havia um fazendo a linha. Mas, para fazer essas mudanças, aumentei o frete, que era irrisório, não dava para nada. A diferença que era paga pelos usuários não ia para o burocrático orçamento da União, ficava sob meu comando. Com esse dinheiro mandei furar poço para fornecer água para o trem, trouxe um controlador de tráfego da Sorocabana, fiz uma série de melhorias. Mas as pessoas que eram beneficiárias do caos anterior, que passavam suas cargas na frente, por não haver nenhum controle, ficaram revoltadas com as mudanças. Acabei tendo muitos problemas. Um deles foi com um jornalista, que me atacava todo dia no seu jornal. Eram ataques infundados contra a minha honra, a minha lealdade, e não me davam direito de resposta. Um dia soube quem ele era, no campo de pouso de Araguari, e o agredi. Ele estava cercado por quatro homens. Ele tentou tirar a pistola, mas eu tirei a minha também e dei-lhe uma coronhada na cabeça. Os jagunços que estavam com ele saíram correndo. Mesmo assim, fomos juntos no mesmo avião. Eu estava indo para São Paulo e soube que ele havia denunciado o fato para o Adhemar de Barros, por intermédio do rádio. Pensei que a turma do Adhemar estaria me esperando no aeroporto, mas não aconteceu nada e embarquei para o Rio de Janeiro. Um jornal do rio deu na primeira página: “Capitão do Exército agride jornalista”. Isso foi em 1952. Fizeram uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar minha gestão como diretor da estrada de ferro. Foi um sofrimento desgraçado. Mas a comissão não deu em nada. Fui o primeiro a admitir que havia cometido ilegalidades. Mas não havia outro modo de administrar aquele caos. O presidente da comissão, que era da UDN do Rio, fez tudo para me proteger, porque sabia que eu estava coberto de razão.

Herbert de Moraes Ribeiro — O senhor acabou transferindo a sede da estrada de ferro de Araguari para Goiânia, o que foi muito importante para Goiás. Como se deu esse processo?

O que ocorreu foi que o clima ficou muito hostil para mim em Araguari. O dom Abel Ribeiro Carneiro teve que ir até lá pacificar os ânimos. Era um homem muito manso, muito bom. Mas quando viu os chefões de Araguari dizerem que eu tinha ido longe demais e que dariam um jeito em mim, ele ficou bravo: “Se vocês tocarem um dedo no Mauro, doutor Pedro vem aqui com 5 mil homens e bota fogo nessa cidade”. As coisas chegaram num ponto em que fiquei na iminência de ser atacado. Corria risco de vida até. Queriam fazer um comício e uma passeata contra mim. Com o comício não me importei, mas prometi receber à bala, granada, metralhadora, a passeata, caso ela avançasse no rumo da estrada de ferro ou da minha casa. Ficaram com medo, mas o clima piorou. Então, o José Américo de Almeida (autor do romance A Bagaceira), que era secretário de Viação e Obras Públicas, me mandou um telegrama que dizia: “Diante do clima de violência que ameaça sua vida, autorizo-o a transferir provisoriamente a sede da estrada de ferro dessa cidade para Goiânia”. Fiquei muito feliz. Era o que eu queria. Só não podia transferir por minha conta, porque seria imediatamente desautorizado pelo Zé Américo, um homem muito firme, autoritário. Saí de Araguari de dia, para não parecer que estava fugindo. Antes, resolvi dar uma volta de carro pela cidade, para não pensarem que eu estava acuado. Pedi ao meu motorista que me levasse na Praça Manoel Brito, no centro da cidade. Mas ele disse, referindo-se à minha mulher: “Dona Lourdes não vai me perdoar”. Então, eu disse: “Pare, que eu vou a pé”. Quando cheguei na praça, todo mundo foi saindo, parecia que eu era um leproso na Idade Média. Entrei num bar e pedi uma cerveja. Sentei-me de costas para a parede, lá no fundo. Se me atacassem eu poderia me defender. Parecia cena de filme de faroeste. De repente, chegou meu pessoal, muito preocupado.

Herbert de Moraes Ribeiro — Quando é que houve o salto do militar para a política?

Assim que deixei a estrada de ferro, voltei para o Exército. Fui para a terceira divisão de infantaria, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Mas percebi que era um corpo estranho no Exército. Os militares não gostam de oficiais que vão para a atividade civil e voltam. Então, quando foi para o Juscelino Kubitschek tomar posse como presidente, surgiu um problema com os militares. Alguns ficaram amargurados, porque achavam que o presidente deveria ser o Juarez Távora. Não eram maioria. Então, notei que o chefe do Estado Maior, muito violento, faccioso, era um dos descontentes. O III Exército fez uma manobra na região de Alegrete, quando veio a notícia de uma tentativa de golpe contra o Juscelino. O marechal Henrique Lott mandou desmontar a manobra e determinou que todos voltasse às suas unidades. Estávamos a cerca de 200 quilômetros de Santa Maria. Mas o comandante começou a incitar o golpe. Disse que não concordava com a posse do Juscelino e xingou o presidente: “O senhor Juscelino é um sibarita, é isso, é aquilo”. Quando acabou de falar, eu disse, dentro do formalismo militar: “Com licença, coronel, desejo usar da palavra. Os senhores acabaram de ouvir a palavra do chefe do Estado-Maior. Quero dizer aos senhores que sou subordinado a ele, mas não concordo com nada do que ele acabou de falar. Ele não tem razão, e está falando por conta dele. Não representa a mim, que sou seu subordinado, e tenho certeza que não representa o pensamento da maioria da divisão. Tenho muito contato com a tropa e sei que a tropa também não pensa como o coronel”. Ele ficou meio desnorteado, parecia que ia ter um troço. Foi para outra unidade, eu fui atrás. Ele repetiu o discurso, eu repeti o meu, condenando tudo o que havia dito. Com isso, desmobilizei tudo. Se não fosse a minha ação, o negócio no Sul ia ser muito diferente. Saímos de lá no mesmo veículo. Na cidade, fomos direto para o quartel-general. De repente, um sargento veio me avisar que o general estava me chamando no gabinete dele. Fiquei pensando se devia ou não contar para ele o episódio. Aí decidi não falar. Mas, quando entrei no seu gabinete, ele já sabia tudo e me disse: “Você assume a chefia do Estado-Maior. Prendi todos os oficiais. O senhor toma as providências”. Ele já tinha mandado um carro de combate ir para o campo de aviação de Canoas, em Porto Alegre, cercar a base aérea e impedir a decolagem e pouso de qualquer aeronave. E me mandou determinar que o 8º Regimento de Infantaria se deslocasse para Porto Alegre para cumprir a mesma missão. Fiquei naquela angústia. Mas deu tudo certo. Depois desse episódio, pedi transferência para o Rio de Janeiro. Queria trabalhar num lugar em que pudesse fazer trabalhos estratégicos, realmente de Estado-Maior. Poderia usar da influência de meu pai junto ao Juscelino, mas achei que seria deselegante com meus superiores. Então, procurei o general Nelson de Melo e disse a ele que tinha vontade de servir num órgão mais elevado, como o conselho de Segurança Nacional. Ele foi franco comigo: “Cada general tem um grupo de pessoas que o acompanha há muitos anos. Se eu for convidar gente que não é desse grupo, não vai ter lugar para os meus”. Entendi que ele tinha razão. Eu nunca tinha sido de nenhum grupo. Então, cheguei à conclusão de que deveria deixar o Exército para experimentar a política.

José Asmar — O senhor foi eleito deputado federal em 1958. Como foi sua atuação?

Fui o deputado federal mais votado, com muita facilidade. Tinha o apoio do meu pai. Exerci o mandato até 1960, quando fui eleito governador. No ano seguinte, assumi o governo. Como deputado, pertenci à última legislatura do Rio de Janeiro. Depois a capital federal foi transferida para Brasília. Como deputado federal, eu estava preparado para ver os problemas administrativos, mas confesso que não tive a mesma eficiência que tive em meu segundo mandato parlamentar.

José Asmar — Em 60, o senhor se candidatou ao governo, na mesma campanha de Jânio Quadros.

De fato. Aliás, Goiás foi o único Estado em que Jânio Quadros perdeu as eleições. Aqui, o marechal Lott ganhou. Depois da posse, todo mundo foi a Brasília para uma audiência com o Jânio. Fui o último a ir. Quando cheguei em seu gabinete, fiz questão de dizer que estava sendo o último a ir porque ele, Jânio, tinha sido derrotado em Goiás. Jânio quis saber o que eu desejava. Pedi a ele um pessoal do Banco do Brasil, que eu queria aproveitar em minha administração. Ele disse que não podia me atender, nesse caso, porque também pensava em aproveitar melhor aqueles quadros no próprio banco. Então, pedi a criação de uma escola agrícola em Rio Verde, porque a agricultura aqui era uma bagunça, não tinha escola, mecânico para consertar trator, nada. Ele ouviu o meu pedido, fez uma pausa e disse: “Isso eu faço com prazer”. O Jânio Quadros era completamente diferente do João Goulart — resolvia tudo na hora. O Jango não resolvia nada.

Herbert de Moraes Ribeiro — O senhor formou seu secretariado contrariando seu pai, Pedro Ludovico?

Sempre tomei as decisões que achava melhor. Só o consultava quando ia preencher um cargo essencialmente político. Ele era o chefe político. Acabei contrariando a alta direção do PSD. Os deputados do partido ficaram revoltados comigo e reclamaram para meu pai. Diziam que eu estava acabando com o PSD. Se não fosse meu pai, o meu grande escudo, eu teria sido cassado pela Assembléia. Meu pai conseguiu acalmá-los e ganhar tempo.

Helvécio Cardoso — Esse apoio que ele dava ao senhor não se devia ao fato de que talvez quisesse ter feito as reformas que o senhor estava fazendo?

Não. Acho que a diferença entre nós era uma questão de época. A construção de Goiânia foi sua grande revolução. Ela significou o começo da modernização de Goiás. Já no meu governo, como homem inteligente que era, ele sabia que eu estava apenas acabando com alguns privilégios. E não fora ele quem tinha inventado aqueles privilégios. Eles foram surgindo naturalmente, ao longo dos anos. Mas as reformas que fiz realmente deixaram o PSD em pé-de-guerra, tanto que meu pai disse que não sairia candidato a mais nada. Ele sabia das restrições à minha pessoa dentro do partido. Mas, quando resolveu ser candidato ao Senado, não fez campanha no interior. Mas foi eleito com uma grande votação, a maior de sua vida, o que para mim foi uma glória.

Herbert de Moraes Ribeiro — Seu governo foi considerado revolucionário em Goiás, pelo fato de ter sido um governo planejado, com forte intervenção do Estado na economia, que era o pensamento predominante na época, ao contrário de hoje. Entretanto, seu secretariado acabou servindo de pretexto para sua cassação. Havia, de fato, muitos comunistas em sua equipe?

Meu governo tinha gente de esquerda e de direita. O Jaci Campos, um médico de Catalão, foi um deles. Eu nem o conhecia. Ele tinha sido indicado pelo diretório de Catalão. Foi uma das únicas concessões políticas que fiz. Mas fiquei gostando muito dele. Nunca vi ninguém tão íntegro. O Jaci tinha uma energia impressionante. Outro dia, fui a Catalão e fiz questão de ir, sozinho, ao cemitério, pôr flores no túmulo dele. Quando veio a Revolução, eles o interrogaram: “O senhor é comunista?”. Ele respondeu: “Acho que ainda não estou tão preparado intelectualmente para ser comunista, mas estou fazendo muito esforço para isso”. Outro secretário excelente que tive foi o Rodolfo Costa e Silva, um homem muito capacitado, consultor de vários projetos de saneamento básico no país. Entre o pessoal de esquerda, um dos que se destacavam era o Tarzan de Castro. Ele, o Péricles José de Moura, irmão do escritor Antônio José de Moura, participaram ativamente da minha campanha. O Péricles, inclusive, morreu em campanha. No governo, eu dizia para esse pessoal de esquerda que a política é a arte do possível e que o impossível só Deus pode fazer.

Euler de França Belém — Quem era o responsável pelo planejamento de seu governo? O Plano MB teve a autoria de quem?

Sem querer ser vaidoso, mas todo o planejamento do meu governo fui eu mesmo quem fiz. Mas o meu secretário do Planejamento era o Irineu Borges do Nascimento, um parente meu longínquo, muito enérgico e devotado. Elaborei o plano equacionando as necessidades do Estado e as condições de empreendimento do governo. Contei, é claro, com a ajuda do Almeida, principalmente na parte financeira do plano, que eu dominava pouco. Criamos mais de 20 órgãos públicos novos. Todo o plano começava pela infra-estrutura, transporte e energia, basicamente. Criei uma escola de formação de operadores e mecânicos de maquinário, que foi construída em apenas 100 dias. E, como estudei muito mineralogia no Exército, uma das minhas principais preocupações foi com o setor mineral. Goiás tem grandes reservas de minérios nobres, não-ferrosos. Por isso criei a Metago.

Herbert de Moraes Ribeiro — O senhor armou a juventude de Goiânia para garantir a posse do João Goulart, que era o vice de Jânio Quadros, mas encontrava obstáculos, junto aos militares, para assumir o governo. João Goulart estava na China quando Jânio renunciou e os militares ameaçavam não deixá-lo voltar para o Brasil. O senhor mandou a polícia militar para o aeroporto e disse que garantia a descida dele aqui. O senhor armou jovens estudantes de 15, 16 anos, e dizia no rádio que não acreditava que o Exército fosse capaz de derramar o sangue de irmãos.

Defendi a posse do Jango, de fato, com toda a energia necessária. Era preciso defender a tese da legalidade. O Exército não é o árbitro da nação. Achava que general não tinha o direito de decidir quem seria ou deixaria de ser o presidente. Era uma vergonha, e me insurgi contra aquilo. Na época, não conhecia Brizola nem o João Goulart pessoalmente. Quando resolvi me juntar a Brizola e garantir a posse de Jango, só me restava armar a juventude. Caso contrário, seria preso dentro do palácio. O comandante do Exército em Goiás, Crispim Borges, não era a meu favor. Felizmente, quando o III Exército, no Rio Grande do Sul, tomou posição, evitando o derramamento de sangue, vi que não haveria mais golpe.

Euler de França Belém — O senhor gostava do Brizola? Continua gostando dele?

Gosto pessoalmente do Brizola. Tínhamos fundado a liga nacionalista. Ele era o presidente, o (Miguel) Arraes, o vice-presidente, e eu, secretário. O Brizola não era capaz de organizar nada. O Arraes foi uma decepção. Era omisso, eu custava a entender o que ele dizia. Eu contestava o Brizola. Porque o Brizola era afoito, queria arrasar, partir para a luta armada. Eu lhe dizia que aquilo não tinha cabimento. Então, eu saí da organização. E veio o Grupo dos Onze, que não deu um tiro neste país.

Euler de França Belém — Armando Falcão, em seu livro de memória, diz que o Juscelino não gostava de conversar com o Brizola. Toda vez que o Brizola ia a Brasília, ele pedia a um assessor para arranjar uma viagem para ele, para que não tivesse que se encontrar com Brizola, a quem achava muito chato. É verdade que Brizola fala muito e não deixa os interlocutores falarem?

Brizola é um homem muito inteligente, mas essencialmente de ação. Sempre admirei sua coragem, sua capacidade de trabalho. Mas confesso que o achava um pouco atrasado, com algumas limitações culturais em relação à realidade brasileira. Isso na época em que convivi com ele na Câmara dos Deputados. Quando ele voltou do exílio, veio mudado. Quando conversávamos, ele até me corrigia, estava muito bem informado, melhor que antes. Aprendi muitas coisas com ele nessa época.

Euler de França Belém — Numa entrevista que concedeu ao jornalista Hélio Rocha, o senhor disse que perguntou ao Brizola o que o Jango tinha feito por ele, já que por Goiás não tinha feito nada. O Brizola ficou admirado, e o senhor foi cobrar de Jango um tratamento melhor. Como foi essa conversa?

É verdade. O João Goulart não fez nada por nós, apesar da importância de Goiás como garantia de sua posse. Como demonstração de nossa força, eu quis nomear um goiano para governador de Brasília, e escolhemos o Venerando de Freitas. Mas Jango não deu a menor importância ao nosso pleito. O Brizola ficou até chateado por Goiás não ter recebido a ajuda que merecia do presidente. Quando procurei o Jango, lembrando a ele que os gaúchos tinham sido ajudados e os goianos, não, ele me falou: “Você não pode querer o mesmo que o Rio Grande do Sul, que é um Estado muito maior”. Concordei, claro, mas reiterei que não podia ficar sem nada, tinha um grande plano de governo e precisava de dinheiro para executá-lo. O Jango me mandou falar com o Walter Moreira Sales (dono do Unibanco), que era o ministro da Fazenda, mas ele ficou me tapeando e tive que colocá-lo na parede. Disse ao Moreira Sales que ele era agente do capital estrangeiro infiltrado no ministério. Ele ficou tão apavorado que pediu um copo de leite. Disse que eu estava sendo injusto com ele, que seu salário de ministro era todo doado para uma instituição de caridade. Retruquei: “Claro, uma caridade dessas não custa nada para um milionário como o senhor”. E ameacei denunciá-lo ao Jango. Ele resolveu liberar o dinheiro.

Euler de França Belém — O senhor teve outro encontro com João Goulart e fez críticas que ele não gostou. Nessa entrevista a Hélio Rocha, o senhor afirma que Jango realmente pensou em fechar o Congresso e estabelecer um governo autoritário. Como foi isso?

Esse é um episódio que não está bem esclarecido historicamente. Só sei que havia um plano para fechar o Congresso. Eu não podia concordar com aquilo e disse isso ao general Assis Brasil, chefe da Casa Militar do Jango, na casa de um amigo comum. Falei para o Assis Brasil: “Pensar num governo discricionário agora é errado, general. É preciso governar direito, dentro da lei”. Foi a partir daí que comecei a ser maltratado pelo governo Jango. Provavelmente, o Assis Brasil contou a ele a conversa que tivemos.

Euler de França Belém — Quer dizer que a direita estava certa e que João Goulart, de fato, pretendia implantar um governo ditatorial?

Não era só a direita que pensava assim. Todos os que estavam relativamente bem informados percebiam essa preparação.

Walder de Góes — Sabemos que sua deposição, em 1964, obedeceu a interesses maiores da política nacional. Mas havia uma conspiração local, udenista, que foi decisiva, pois alimentou os conspiradores federais. Quem da UDN local, da época, se salva nessa história e quem não se salva?

Isso eu não posso falar. Não estava muito por dentro dessas ações. A única coisa que sei, uma coisa muito séria, aliás, que chega a ser cômica, é que tramaram o assassinato de um udenista de projeção para culpar meu governo. Fizeram uma reunião para escolher quem deveria morrer. O primeiro a ser cogitado foi o coronel Arnaldo, mas acharam que sua morte não teria repercussão. Pensaram em outros nomes, como o Dante Ungarelli. Aí lembraram-se que ele era pai de família, com sete filhos. Por fim, escolheram o Eli Mesquita. Mas realmente não sei quem conspirou em Goiás, por parte da UDN, para me derrubar. Daquele lado, há muita sombra.

Walder de Góes — Quanto à conspiração nacional, quando ela começou e quais os seus autores?

Nacionalmente, quem conspirou contra mim foi o Costa e Silva. Fiquei muito conhecido no país. O Costa e Silva queria ser presidente da República e ficou receoso que eu pudesse atrapalhar seus planos. Então, começou a me agredir. Já o Castello Branco gostava de mim. Mas o Costa e Silva era de um atrevimento fora do comum com o Castello. Numa reunião da alta direção, o Costa e Silva chegou a dizer: “Olha, Castello, não tem mais jeito. Você tem que escolher: ou é você ou o Mauro”. então, o Castello jogou o papel na mesa e disse: “Se vocês querem…”

Herbert de Moraes Ribeiro — O senhor chegou a negociar com os militares para ser o presidente da República?

Não, nunca.

Herbert de Moraes Ribeiro — Qual foi a última vez em que esteve com o marechal Castello Branco e o que conversaram?

Não me lembro. O que é mais significativo é que o Castello me conhecia e não tinha medo de mim. O Costa e Silva não me conhecia e tinha medo de que eu fosse candidato a presidente e atrapalhasse seus planos.

Euler de França Belém — O senhor participou da conspiração de 1964 para derrubar o Jango?

Jamais. Meu problema com o Jango remonta a um episódio mais antigo. Quando o Jânio Quadros era presidente, ele nos concedeu uma audiência reservada em Cuiabá, para que pudéssemos dizer com franqueza tudo aquilo que não era possível dizer em público. Então, reclamei da questão do minério. Uma jazida importante, descoberta em Goiás, tinha sido entregue ao Grupo Votorantim há 12 anos, mas nunca tinha entrado em operação, sendo que o prazo era de cerca de dois anos. Pedi ao Jânio que tomasse uma providência. Ou o José Ermírio de Moraes (pai dos empresários José Ermírio de Moraes e Antônio Ermírio de Moraes) tocava a usina ou perdia a concessão. O Jânio foi franco: “O senhor sabe o que está me pedindo? O José Ermírio de Moraes foi o maior financiador da minha campanha”. Mas acrescentou: “Entretanto, cumpro o meu dever”. E mandou um memorando, para o ministro das Minas e Energia, determinando que a usina entrasse em operação em 90 dias, sob pena de ser cassada a concessão do Grupo Votorantim. Aquela atitude firme do Jânio me conquistou. Mais tarde, já no governo do Jango, foram descobertas as jazidas de amianto, em Minaçu, uma das maiores do mundo, mas Jango não deu a concessão a Goiás. Preferiu entregar as jazidas para um grupo francês, que paga uma ninharia para a Metago. Isso me chateou. Para completar, o José Ermírio de Moraes ficou forte no governo. Era senador, pelo mesmo partido do presidente, o PTB. Certo dia, recebi um chamado urgente do presidente João Goulart, dizendo que queria falar comigo. Compareci ao seu gabinete, ele me recebeu, pôs a mão no meu ombro e disse: “Gostaria de te pedir um favor, Mauro”. Pensei que se tratava de alguma coisa relacionada à fazenda dele e me dispus a servi-lo. Mas ele completou: “Eu queria que tu deixasses o Ermírio em paz”. Fiquei indignado e disse na cara dele: “Presidente, o senhor tem coragem de me fazer um pedido dessa natureza?” Ele ficou tão envergonhado que abaixou a cabeça. Saí de lá desanimado, rompi com ele, demiti todo o pessoal do PTB, inclusive amigos meus, para deixar bem caracterizado o rompimento. Isso foi nove meses antes de março de 1964. Entretanto, jamais conspirei contra ele, em nenhum momento. Só que, quando estourou a Revolução, fiquei do lado dos militares, porque sabia que o Jango estava completamente errado, não tinha capacidade para governar. Muita gente me dizia: “Você ficou contra o Jango, que era seu aliado”. E eu respondia: “Não fiquei contra o Jango. Ele foi quem ficou contra os interesses de Goiás”.

Walder de Góes — Não havia por parte dos governadores civis que apoiaram o golpe uma sensação, desde logo, que se tornariam vítimas dele? As primeiras conversas de Castello Branco, no Rio, com Magalhães Pinto e Carlos Lacerda, antes de assumir, não foram boas. Por que os governadores não se uniram para produzir um movimento de resistência mais forte?

Essa é uma questão muito complexa. O Lacerda nos procurou, no Rio de Janeiro, para tomar parte na conspiração. Mas eu me neguei a participar porque não tinha simpatia pelo Lacerda. Fizemos várias reuniões. A primeira delas, com o Costa e Silva. Participaram, entre outros, o Lacerda e o Magalhães Pinto. O Costa e Silva estava uma onça, porque sabia que preferíamos o Castello, muito querido no Exército. O Carlos Lacerda, pensando que estava em casa, começou a discursar, como quem toma conta do negócio. Mal começou a falar, foi interrompido pelo Costa e Silva, que o chamou de aproveitador, o humilhou, faltou chamá-lo de vagabundo, deu coice nele. Fiquei admirado, porque o Lacerda não reagiu. Abaixou a cabeça e ficou calado. Foi uma vergonha. Se fosse comigo, eu reagia. Então, depois que acabou o banho do Costa e Silva no Lacerda, o Magalhães Pinto tomou a palavra: “Eu, como chefe civil da Revolução…” Não pôde continuar. O Costa e Silva o escoiceou com palavras, como fizera com o Lacerda: “Chefe civil coisa nenhuma. Aqui não tem chefe civil, não”. O Costa e Silva era muito bravo. Por isso, o Castello não o suportou. Acho que tinha medo físico dele.

Walder de Góes — Quando o senhor decidiu resistir militarmante à intervenção em Goiás, que solidariedade recebeu de Lacerda e Magalhães Pinto?

O Magalhães Pinto viu com simpatia o movimento, só que não prometeu apoio. Entretanto, foi muito correto comigo. Quando eu estava aqui sem emprego, sem nada, e queria um financiamento agrícola, mas não tinha como fazê-lo no Banco do Brasil, por ter sido cassado, ele resolveu meu problema. E emprestou o dinheiro imediatamente. Ele disse ao gerente para não limitar meu crédito.

Walder de Góes — Alguma ala do Exército o apoiava quando o senhor pensou em resistir à intervenção em Goiás? Qual? O que o levou a pensar em resistir e quais as forças e promessas de que dispunha para encorajá-lo?

Dignidade foi o que me levou a pensar em resistir. Eu não queria ser posto para fora a pontapé, como fizeram com todos os governadores. Jornalistas do país inteiro e até do exterior me perguntavam: “O senhor entrega o governo?”. Eu dizia: “Posso entregar. Desde que dentro da lei e com dignidade”. Eles retrucavam: “E se não for assim?” Eu me limitava a dizer: “Vocês vão ver na hora”. Eu não tinha recursos nenhum para resistir. Mas inventaram tantas mentiras a meu respeito que acabaram acreditando nelas. Achavam que eu tinha armamentos moderníssimos, vindos da Polônia, que exportava minério nuclear para a China fazer a bomba atômica, que tinha comprado 1 milhão de tiros no Paraguai. De fato, mandei o coronel Clementino Gomes, que era o chefe da Casa Militar no meu governo, comprar munição, porque só havia cinco tiros para cada soldado. Ele foi, com dinheiro vivo, à Companhia Brasileira de Cartuchos. Eles venderam a munição, mas, na hora de fazer o carregamento, perguntaram pela autorização do Exército. Evidentemente, não tínhamos. E ficamos sem a munição.

Herbert de Moraes Ribeiro — As forças armadas utilizaram quantos homens e que armamentos na operação contra o senhor?

Acho que havia uns cinco batalhões e a brigada de paraquedistas em Brasília, pronta para agir. A força aérea tinha os caças a jato. Um deles tinham o napalm, uma gasolina gelatinosa que pegava fogo em todo mundo, uma coisa horrível.

Euler de França Belém — O historiador Jacob Gorender, em seu livro “Combate nas Trevas”, diz que o coronel Clementino Gomes assistia às aulas de marxismo que ele, Gorender, ministrou em Goiás, em 1964. O que o coronel Clementino fazia nessas aulas de marxismo?

Talvez por curiosidade. Ele era muito independente. Ou talvez estivesse fazendo um servicinho para mim. [Risos] O Clementino era um homem muito íntegro e leal. Quando meu pai foi eleito governador pela primeira vez, na primeira reunião com o comando da PM, o Clementino tomou a palavra sem ninguém autorizar, passou por cima do comandante e disse que esperava do novo governo um melhor tratamento aos policiais. Meu pai ficou pálido. E, assim que ele acabou de falar, determinou ao comandante que ele fosse preso por 30 dias. Fiquei surpreso, quando fui eleito governador, e meu pai, que procurou não interferir no meu governo, fez um de seus raros pedidos: “Meu filho, gostaria que você nomeasse o Clementino para comandar a Casa Militar”. Eu o nomeei, com prazer, e não me arrependi.

Euler de França Belém — O senhor tinha um serviço secreto? Era o coronel Clementino quem o comandava?

Não chegava a ser um serviço secreto. Era apenas um instrumento para saber se o sujeito não estava gastando dinheiro demais, se não tinha algum problema muito sério. O Tarzan de Castro, por exemplo, era meu oficial de gabinete, com a condição de não fazer militância enquanto estivesse no cargo. Não me importava que fosse comunista, só não queria que fizesse militância. Mas fiquei sabendo, por intermédio do coronel Clementino, que ele tinha feito uma preleção totalmente comunista. Então, eu o chamei, e ele confirmou que estava militando. Como gostava e gosto muito dele, propus que, se quisesse, poderia ficar no meu governo, desde que abandonasse a militância. Ele preferiu sair.

Euler de França Belém — Quem eram seus interlocutores em nível nacional, civis e militares?

Nunca tive muitos interlocutores. Sempre fui um sujeito muito solitário. Não gosto de conversa vazia, como perder tempo discutindo futebol. Eu conversava muito com o pessoal aposentado do Itamarati. Valia a pena conversar com eles, eram muito instruídos. Eu costumava conversar com o Ary Demóstenes, um homem muito inteligente. Outra pessoa com quem conversei muito tempo foi o San Tiago Dantas, que foi ministro do João Goulart. Eu ia muito à casa dele. Era extraordinário. Eu nem falava nada. Só o ouvia falar. Ele me dizia que a Trindade dele era saber, ter e poder.

Walder de Góes — O senhor faria tudo o que fez se visse as coisas com a clareza de hoje? Refiro-me ao tipo de governo que fez em Goiás, suas alianças políticas, nacionais, regionais, sua adesão ao golpe militar, sua tendência a resistir a uma intervenção no Estado, seu comportamento frente à oposição local.

Eu faria o mesmo tipo de governo que fiz. Só que precisaria de um Pedro Ludovico para me sustentar. E, politicamente, talvez fosse necessário ser mais hábil. Não precisaria, por exemplo, ter sido franco com o Assis Brasil quando ele me relatou as manobras continuístas do Jango. Como ele era leal ao Jango, deve ter contado tudo a ele. Foi aí que meus problemas com o governo federal começaram.

Mauro Borges foi chefe da guarda de Vargas

Euler de França Belém — Pedro Ludovico foi o homem de Getúlio Vargas em Goiás, na época da Revolução de 30. Como o senhor via a figura de Vargas?

Conheci, pessoalmente, Vargas quando ainda era militar, em Petrópolis. Nos meses de novembro ou dezembro, ele costumava ir para lá e ficava até março, despachando. Nessa época, Getúlio foi atacado pelos integralistas, que invadiram o Palácio da Guanabara, disfarçados com o uniforme do Exército. Ele quase morreu. E os integralistas responsáveis pelo atentado foram todos fuzilados. A partir daí, passou-se a ter muito cuidado com a guarda presidencial. Assim que assumi a chefia da sua guarda, fui pessoalmente apresentado ao Getúlio, para que ele pudesse nos conhecer, como medida de segurança. Eu disse: “Com licença, Excelência”. Militarmente, sem conversa fiada. “Sou o tenente Mauro Borges Teixeira, comandante da guarda. À disposição de Vossa Excelência.” Ele perguntou, com aquele sotaque gaúcho: “Tenente, de onde tu és?” Respondi: “Sou de Goiás”. Ele fez uma pausa e disse: “Conheces, lá, os Ludovico?” E eu, muito sério: “Conheço muito, Excelência. Sou filho de Pedro Ludovico”. Ele mudou completamente o semblante, sorriu e puxou assunto. Só ele é que podia puxar assunto, fazia parte das normas protocolares. Provavelmente, já tinha recebido alguma informação sobre mim, porque brincou: “Foste tu que roubaste uma gauchinha?” Ele se referia à Lourdes, minha mulher, que era de São Borja, onde o avô dela tinha fazenda, perto da fronteira. A partir daí, vi que havia me tornado uma pessoa grata a ele. (Lourdes, parente de Vargas, tinha Dornelles no sobrenome).

José Asmar — O senhor conviveu com o Gregório Fortunato, guarda-costas de Getúlio?

O Gregório era uma espécie de sombra do presidente. Uma vez me perguntou: “Então, tenente, como vai o velho Ludovico? Homem bravo aquele, hein?” O que contaminou o Gregório foi o assédio das pessoas que queriam favores do Getúlio e viam nele um caminho para isso. Até ministro pedia a interferência do Gregório para falar com o presidente. Ele não tinha essa influência toda com o presidente, mas conseguia uma coisa ou outra com auxiliares diretos de Getúlio.

Euler de França Belém — Qual foi a posição de Pedro Ludovico em relação às ideias fascistas e nazistas que empolgavam a Europa? Getúlio, num dado momento, ficou empolgado com essas ideias. Pedro Ludovico também teve esse entusiasmo?

Não. O que ocorreu é que o Brasil, um país enorme, mas frágil, não podia ter muitas convicções em termos de política externa. Tinha que se posicionar conforme as circunstâncias. Num primeiro momento, Getúlio procurou manter a neutralidade na guerra, mas quando viu que não era possível, tomou o partido dos aliados. Já meu pai não dava opinião nesses assuntos de política internacional. Sua relação com Getúlio Vargas se limitava a outros assuntos.