É complicado ligar um caso como o massacre das crianças da creche de Blumenau ao que acontece nas casas legislativas do Brasil inteiro? Talvez não seja “complicado”, mas “complexo”. Vejamos.

Como representante do povo, cada deputado tem a responsabilidade de levar às câmaras e assembleias, mais até do que as reivindicações, a voz de seus representados. É uma das funções de vereadores e deputados: ser intérprete do discurso da parcela da população que nele votou.

O que não poderia fazer, mas infelizmente (e cada vez mais), é se portar como se fosse apenas um eleitor comum, que fala o que lhe der na telha para os amigos numa mesa de boteco.

O exercício do poder exige um rito e é exatamente para quando ele é desconsiderado que se cunhou a expressão “falta de decoro”. No microfone da tribuna, pode-se falar “de tudo”, o que é garantido pela imunidade parlamentar; o que não se pode é falar “tudo”.

O que diferencia a primeira da segunda expressão? A primeira diz respeito ao conteúdo: nenhum tema é proibido ao político quando discursa. A questão está na forma – o “como” ocorre essa fala.

E, do Oiapoque ao Chuí (para insistir em uma expressão em desuso), há exemplos de eleitos que reproduzem – seja no microfone das casas políticas, seja em entrevistas ou podcasts, seja nas redes sociais – discursos de ódio e comportamentos raivosos.

Muitas pessoas os tomam como “autênticos” e “corajosos”, porque repetem em público aquilo que elas próprias fazem (ou gostariam de fazer) em sua escala familiar ou social. Elas então se sentem, mais do que representadas, projetadas nesse “estilo”. E isso, sim, rende votos e reeleições.

Ocorre que o efeito rebote dessa cadeia é exatamente o encorajamento de terceiras pessoas que, por alguma crise ou desconexão com a realidade – acentuada por problemas psíquicos e influência de comunidades nas redes sociais –, resolvem aplicar na prática o que na boca do político era só uma “liberdade de expressão” de polemizar contra minorias, contra grupos sociais, contra comunidades religiosas e contra categorias de trabalhadores (como professores e jornalistas, hoje vistos como “doutrinadores”).

E assim, às vezes sob o teto de uma casa que precisa guardar o âmago da democracia, surgem discursos agressivos que estimulam, nas ruas, atentados propriamente ditos contra instituições e pessoas físicas.

Obviamente, a retórica radical ou extremista não é exclusividade do Legislativo nos círculos de poder. Mas parlamentares são muito mais números do que prefeitos e governadores, além do que estes tendem a ser mais comedidos em seus pronunciamentos. Também geralmente repercutem mais do que falas de desembargadores, juízes, procuradores, promotores e delegados, cuja maioria, pelo exercício do cargo, às vezes nem costuma abrir a boca.

Obviamente, também, vereadores e deputados podem se debruçar sobre políticas públicas que busquem solucionar ou minorar dramas terríveis como a onda de ataques a estabelecimentos de educação por criminosos e maníacos. É uma forma necessária e obrigatória de combate a esse fenômeno de violência. Mas a vigilância do próprio discurso é algo que não precisa de plenário nem de sanção.

Voltando à questão inicial: é complicado ligar um caso como o massacre das crianças da creche de Blumenau ao que acontece nas casas legislativas do Brasil inteiro? Não, é complexo, mas existes parâmetros para tanto. E é preciso que cada parlamentar reflita sobre o quanto da intolerância que vira sangue não tem origem em coisas aparentemente desconexas e que estão a seu alcance de mudar o curso.