A face ignorada da delação premiada
09 abril 2015 às 15h00
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Daniel Zaclis
Era inevitável. Por mais contundentes que fossem as críticas relativas à natureza moral da delação premiada, parecia ser apenas questão de tempo até que esse meio de prova se tornasse o grande protagonista das investigações criminais de maior complexidade. Afinal, nada mais valioso – e, certamente, menos trabalhoso – do que a colaboração de quem “esteve lá” e se mostra disposto a dizer tudo que sabe em troca de uma redução ou perdão de sua pena final.
É preciso, no entanto, ter cautela. Em meio ao atual frenesi de sucessivos escândalos, com notícias diárias de novos investigados dispostos a entregar antigos comparsas, algumas reflexões se mostram necessárias.
Como primeiro ponto, cumpre destacar as hipóteses, cada vez mais frequentes, de acordos de delação que utilizam a liberdade do indivíduo como genuína moeda de troca. De modo simplificado: se o delator decidir contribuir, a prisão cautelar (aquelas impostas sem pena definitiva) é revogada; se não auxiliar nas investigações, permanecerá encarcerado.
Trata-se de prática manifestamente ilegal e as razões são inúmeras. Talvez a mais óbvia resida no fato de que a prisão cautelar, a não ser que queiramos retornar a épocas nada saudosas, jamais pode servir de instrumento para obtenção de confissões ou informações. Como medida excepcionalíssima, ou bem estão presentes os requisitos para manter a custódia antes de encerrado o processo, ou então que se coloque o indivíduo em liberdade. Uma pessoa não está mais ou menos apta a responder um processo em liberdade apenas porque decidiu delatar.
A própria voluntariedade (exigida por lei) do delator pode ser questionada nesses casos. Como bem descreve Dostoiévski, em “Memórias do Subsolo”, na cabeça de um homem preso há somente um pensamento: “Quantos milhares de dias iguais a este tenho pela frente, imutáveis”. Na esperança de diminuir alguns desses imutáveis dias, o indivíduo se torna absolutamente vulnerável, sendo que o acordo de colaboração, nessas circunstâncias, é fruto muito mais de uma atuação coativa do Estado do que um desejo próprio do delator.
De forma semelhante, discutíveis também são os acordos cujos termos exigem do delator a renúncia a determinadas garantias fundamentais. Nesse cenário, o instrumento de colaboração somente teria validade na medida em que o delator abrisse mão de questionar eventuais arbitrariedades cometidas ao longo da persecução penal.
A hipótese, uma vez mais, demonstra claro abuso no uso do instituto da delação. Quando o indivíduo aceita tornar-se um colaborador, parece razoável sustentar que abdicará necessariamente de um só direito constitucional: o de permanecer em silêncio. As demais garantias permanecem intocadas.
Ressalte-se que, nesses casos, de nada importa o aspecto consensual do acordo. Determinados direitos, por maior que seja a vontade de alguns, são irrenunciáveis. Até porque, amanhã ou depois nos depararíamos com acordos em que o delator, em troca de uma redução de pena, deseja abrir mão da sua sagrada garantia de não ser torturado, aceitando ser açoitado em praça pública. Ora, diriam alguns, se for consensual…
Não menos problemática tem sido a divulgação reiterada do conteúdo das delações premiadas. Já nos acostumamos a ligarmos a televisão e nos deparamos com filmagens de sala de audiências em que delatores, sem sinais de enrubescimento (como se eles próprios não tivessem sua parcela de culpa), descrevem detalhadamente as peripécias de terceiros. E ansiosamente aguardamos o dia seguinte, torcendo para que mais uma empresa seja citada, mais um político seja incluído no “rolo”, enfim, que possamos ver saciados nossos mais primitivos desejos de ver a “Justiça” sendo feita.
Esquecemo-nos, contudo, que o delator é um sujeito com interesse. É movido por uma possibilidade de decréscimo de sua pena, sendo que somente alcançará esse objetivo se fornecer informações eficazes para identificação dos coautores da empreitada criminosa. Ao depor, pode se restringir ao que sabe. Porém, pode também, como qualquer pessoa interessada, falar menos do que sabe; falar mais do que sabe; incluir supostos inimigos ou mesmo proteger amigos. Nessas circunstâncias, parece temerário não assegurar o devido sigilo, para pessoas que não guardam relação com o processo, do depoimento de delatores enquanto não advier uma sentença sobre o mérito da causa.
Por fim, reitere: a delação premiada pode, sim, ser meio de prova de extrema utilidade para apuração de delitos. Imprescindível, contudo, evitar que ela se torne, ainda que a pretexto de combater a impunidade, em mero instrumento arbitrário à disposição do Estado. Certamente haverá quem diga que essas “formalidades” apontadas acima são desimportantes. Tais vozes normalmente bradam que, em nome de um “bem” maior – a tal da “verdade” -, há de se relevar certas coisas. Parafraseando Agostinho Marques Neto, pergunto normalmente a essas pessoas: e quem nos salvará da bondade dos bons?
Daniel Zaclis é sócio do escritório Costa, Coelho Araújo e Zaclis Advogados e mestrando em Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da USP.