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A lembrança é o que perpetua nossa existência enquanto agentes no mundo e é contra isso que nosso velho Logan luta no novo e último filme sobre o "imortal" Wolverine
[caption id="attachment_87443" align="alignleft" width="620"] A falta de perspectiva do velho Wolverine é o grande vilão do novo longa sobre o mutante[/caption]
Milan Kundera, em seu livro "A imortalidade", declara a certa altura que o homem pode pôr fim à sua vida, mas não pode fazê-lo com sua imortalidade. Escapa dos homens o controle do tempo — tanto o biológico, quanto ainda mais o psicológico. E se a fugacidade da vida biológica é a única certeza que carregamos, por outro lado a idade mental permanece relativamente estável no decorrer do tempo. Distraído, todo ser humano é um sem-idade — constatação também de Kundera.
Quando assistimos ao novo longa de James Mangold, vemos o velho e imortal Wolverine trabalhando como chofer de limousine em algum lugar na fronteira dos Estados Unidos com o México. Abatido, dá evidentes mostras de cansaço. As inúmeras lutas e perdas da vida o consomem. De maneira paradoxal, é como se a imortalidade o matasse lentamente, dia após dia. Mas é o velho Logan que os fãs gostariam de ter visto nas telas desde o início.
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Wolverine é um personagem concebido em 1974 por Len Wein e John Romita, como membro do grupo de mutantes "X-Men", da Marvel Comics. Eventualmente também participou de outras equipes de super-herói, como a Tropa Alfa ou os Novos Vingadores. Um sucesso tão grande que terminou por alçar voo solo, ganhando uma revista própria.
A imortalidade do mal humorado James Howllet (nome "civil" do herói) é garantida por um poder de cura (conhecido nos quadrinhos como "fator de cura") e por um esqueleto revestido artificialmente de Adamantium, uma liga metálica fictícia indestrutível. É tudo o que você precisa saber para assistir a esse novo filme da Fox em parceria com a Marvel Entertainment.
Inserido no mesmo universo dos filmes anteriores dos X-Men e dos filmes solo de Wolverine (sempre interpretado por Hugh Jackman), esta obra de Mangold (que também dirigiu o controverso "Wolverine: Imortal") consegue se sustentar sozinha. Aliás, Wolverine é um personagem tão complexo — e exatamente por isso, tão rico — que pode ser considerado com o único sobrevivente de todos os nove filmes já produzidos para os mutantes (botando na lista também "Deadpool", de Tim Miller, com todas as tiradas hilárias sobre o velho Wolvie e seu alter ego da vida real, Jackman). Dentre obras promissoras como "X-Men - Primeira Classe" (2011, Matthew Vaughn) a fiascos como "X2" (2003, Bryan Singer), a franquia tem se renovado paulatinamente, mantendo apenas uma constante por 17 anos: Logan.
Nos quadrinhos, Wolverine é um cara extremamente violento, anti social e beberrão. Até o último filme lançado, muito pouco desse lado havia sido convincentemente apresentado ao público, mas isso mudou. A obra recebeu classificação indicativa "Rated R" nos Estados Unidos — o que equivale a algo como "indicado para maiores de 18 anos". No Brasil, pegou "16 anos", o que tem levantado as orelhas dos fãs.
Além da questão da classificação indicativa, a obra usa como propaganda o fato de contar, provavelmente, com a última atuação de Hugh Jackman como Wolverine.
Mas vamos logo ao cerne da questão: "Logan" é um filme de ação que cumpre muito bem seu papel. Acostumados que estamos com o visual excessivamente claro e didático de "Vingadores", talvez esse Wolvie desagrade alguns. Ostenta uma fotografia melancólica e árida, imiscuída à paisagem desértica do interior do sul americano, traduzindo o estado de espírito do velho Logan (o que orna, também, com a despedida de Jackman).
Em termos de adaptação, talvez esteja tão bom quanto os filmes de "Sin City", o Batman de Nolan, a saga "Kick-Ass" ou o último "Justiceiro". Sem dúvida alguma é um filme mais sombrio, com uma carga dramática pouco comum a filmes baseados em HQs. Depois da exibição, fica até mais fácil colocar o personagem na mesma estante de Max Rockatansky (de Mad Max), ou do Han Solo de Harrison Ford — figuras controversas, solitárias, com sua própria lógica de vida, mas sem dúvida alguma, heróis. Prepare-se, porque tem muita pinga, sangue e boca suja (as cenas de ação são fantásticas).
A jornada de Logan é completamente sem sentido, inicialmente. Porque assim tem sido a sua vida, afinal de contas. A imortalidade é uma maldição. Wolverine não sabe mais o que esperar do mundo, e se limita a cuidar devotadamente do nonagenário professor Charles Xavier — o sempre ótimo Patrick Stewart, numa interpretação bem mais livre e descomprometida do que nos últimos filmes. Logan vive num mundo em que seus conhecidos já se foram. Poucos ainda restam. Aparentemente pelo isolamento reprodutivo, os mutantes deixaram de se espalhar pelo mundo. Não há notícias de novos "mutunas" há muito tempo, o que limita as perspectivas dos vivos e envenena e envelhece quem ainda tenta se sustentar sobre as pernas. É essa falta de perspectiva o grande vilão da trama. O tempo como algoz, essa borracha implacável.
As coisas começam a mudar de tom quando bate à porta de Logan a pequena Laura (a atriz espanhola Dafne Keen), uma garota extremamente violenta (lembra-se da Hit-Girl, de "Kick-Ass"? Uma versão mexicana arisca dela — se cuida, Trump!) e que anda aos tapas com uma poderosa corporação que tem interesse em desvendar — e, muito provavelmente, exterminar — seu DNA.
No romance “Rimas de vida e de morte”, Amós Oz, proclamando uma sentença de morte muito mais óbvia e cruel do que a que estamos acostumados, diz que estaremos no mundo só até o dia em que morrer a última pessoa a se lembrar de nós. A lembrança é o que perpetua nossa existência enquanto agentes no mundo. É contra isso que nosso velho Logan luta. E é nisso que, agora com Laura, talvez encontre também sua redenção.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG