Resultados do marcador: Série "Quatro Estações"

O Jornal Opção publica, nesta edição, o último conto da série literária “Quatro Estações”. Trata-se de quatro contos em que dois autores escrevem, a quatro mãos, uma breve narrativa inspirada em uma estação do ano. Anteriormente foram publicados “Primavera”, de Luisa Geisler e Débora Ferraz; “Verão”, de Anderson Fonseca e Mariel Reis; e “Outono”, de Mauricio de Almeida e Rafael Gallo.
[caption id="attachment_28954" align="alignnone" width="620"] Natural de Inhumas, Matheus Antunes é ilustrador, designer gráfico e estudante de Arquitetura. Atualmente, reside em Natal, no Rio Grande do Norte[/caption]
Olhava para a aba do ar-condicionado split, que oscilava, para cima e para baixo, mas também para a boca da Cleide, a dona, que nunca fechava. Movimentos similares e ininterruptos. Frio demais, falar demais, pra quê? Cleide e a mesma história, a mesma opinião, a mesma piada, e ria alto. Maria sabia tudo de cor: as entonações, a hora da risada estridente. Mas não tinha tempo para conversa fiada, preferia fazer contas, mentalmente, todos os dias, para ver se elas fechariam (sem precisar contar com a pensão, que tinha destino certo: o aluguel), se poderia pagar a escolinha do menino e se sobraria algum dinheiro. Ou quantas unhas precisava fazer para cumprir sua meta do mês. Não precisava ser simpática, Cleide já era por todo o salão: com uma frase feita, sorriso de ponta a ponta e os peitos recheando os decotes. Já Maria era pura ação: cortava as unhas, geralmente quadradas ou redondas, e acertava com a lixa, com movimentos rápidos e certeiros, de um lado para o outro, evitando mover a lixa para cima e para baixo, como a aba do ar-condicionado ou a boca da Cleide.
O senhor quer mesmo que eu ligue o ar? Desculpe a pergunta, mas é que não é muito comum os passageiros pedirem isso. Se deixo ligado, pedem pra desligar. De São Paulo? Sei, lá as pessoas vivem nos escritórios, com ar refrigerado. Aqui em Brasília qualquer ventinho faz as pessoas morrerem de frio. Eu vou fazer o caminho por trás dos ministérios, pela via dos anexos, tá bom? A esplanada está bloqueada por causa da montagem das arquibancadas. Estão preparando o desfile de amanhã. O povo fica ali, naquele calorão, esperando pra ver os carros e os soldados passarem. No ano passado eu vim, trouxe meu piá, mas não consegui ver quase nada. Só os aviões, passando bem baixinho em cima das pessoas, ele adorou. Ih, já vai fazer três meses que ele não está mais comigo! Não se preocupe, chegamos lá em dez minutos. A via dos anexos tem um monte de lombadas, mas não tem sinaleiro, daí a gente entra num túnel, sobe uma rampa e eu deixo o senhor na entrada principal. Ah, Moacir, tomara que seu carro pegue fogo e você queime, lentamente. Assim você vai ver como é bom o calor. Pimenta e sol, a minha Bahia. As pontas precisavam ficar levemente arredondadas e também as laterais, sem estreitá-las. A lixa precisava dançar por baixo da unha, para remover rebarbas, e a lixa polidora removia as estrias da superfície. Que diabos o menino iria fazer da vida, aqui? Taxista? Como o pai? Nem a pau. Aqui não tem porra nenhuma para os ferrados, como a gente, mas voltar para Santana também não dá. Talvez Salvador, mas estão matando muito lá, dá não. Aqui não presta, não tem praia, e usam o ar-condicionado por qualquer calorzinho, até no inverno. Chacoalhava a cabeça, enquanto amolecia as cutículas da ruiva, usando creme emoliente e água, empurrando-as com a ajuda de uma espátula de unha, com muito cuidado. Mas ainda é melhor que o sul, quantos graus deve estar agora em Curitiba? A seca tá braba. Todo ano é a mesma coisa. Meses sem cair uma gotinha e agora só mesmo lá para pelo fim de novembro, quando a cidade já estiver enfeitada com os foquinhos de Natal. Até lá eu quero ver se economizo uma grana e chamo meu guri pra passar o Natal comigo. Eu me separei da Maria já faz três meses. Ela foi embora porque não suportava o frio, o senhor acredita? Disse que queria voltar pra Bahia. Eu também disse que ia voltar pra Curitiba, não suporto este calor desgraçado, 35 graus no inverno, o que é isso? Veja como são as coisas, o que é calor pra mim é frio pra ela, assim não podia mesmo dar certo, né? Mas acabei não voltando, ainda. Só que ela não sabe, ela acha que eu estou lá, naquele frio do cão, como ela diz. Eu ligo no celular dela, mas a gente nem conversa muito, é só pra saber como é que está o piá. Ele vai fazer quatro anos, eu quase morro de saudade. Que ela quisesse ir embora, eu entendo, mas me deixar sem meu filho, lazarenta! O amigo me desculpe. Com o alicate de cutícula removia o excesso de pele, retirando toda a cutícula externa de uma vez só, para evitar o aparecimento de pelinhas esbranquiçadas. Eu vou voltar para o sul, ele disse. Foi o jeito de se livrar de mim. Eu não quis Curitiba, você não quis a Bahia, e por fim não quis a baiana. Ele nem sonha que eu acabei ficando por aqui mesmo. Ele me liga e pergunta por que eu ainda uso o celular com número de Brasília e eu digo que não tive tempo de mudar. Mas eu vou embora, juro, é só juntar um dinheirinho, pegar o menino e cair fora. Dizem que é impossível tomar banho em Curitiba, no inverno. Olha, vou dizer pro senhor uma coisa que eu nunca disse pra ninguém, eu sou de Curitiba, lá o pessoal fala pouco, mas esses anos em Brasília me deixaram com a língua solta: minha vida melhorou depois que eu me separei dela. Eu até comprei este carro aqui, um Bravo, último modelo da Fiat, novinho. Antes eu tinha um Meriva 2002, caindo aos pedaços, nunca fiquei tanto tempo sem trocar de carro. Sabe como é, duas bocas, depois três, tudo fica mais difícil, e olha que a Maria trabalhava pra ajudar. Olha lá a catedral, com céu ao fundo. É bonito, não vou dizer que não é. Em Curitiba eu tinha um Astra, calotas com aro cromado, uma teteia. Meu sonho é ter um Honda Civic com câmbio automático. Um dia eu vou ter e aí já vou estar dirigindo de pulôver e meia de lã. Passa a base em toda a unha, extrapolando a linha da cutícula, para facilitar a etapa de limpeza com o palito. Por que aceitei vir para cá? Burra, isso sim, minha mãe sempre disse que eu era burra. Ao passar o esmalte, puxa a pele lateral do dedo para garantir que não sobrem espaços brancos na unha. Três camadas de esmalte cremoso para ficar da cor e cobertura extra brilho para o esmalte durar mais. Uma camada logo após a pintura. Ele está bem, carro novo, taxista dos bacanas. Paga pensão e tudo, mas não o perdoo. Gostava, gostava dela, sim, mas ela queria ir pra Bahia, voltar pra terra dela, e eu nem aqui consigo viver direito. Olha aquela árvore ali, olhe a grama: tudo estorricado. Está certo, o céu é bonito, na esplanada é lindo, pena que não dá pra ver hoje por causa da preparação do desfile, mas e as queimadas? A estiagem vem, o mato queima e a fumaça esconde o céu. E aí, adeus beleza. Agora a loira falsa, seios siliconados, rosto repuxado. Essa gente não tem vergonha de ficar toda torta e esticada? Mas a unha, em dia. Passa o palito em seguida para limpar os cantos, limpa com o algodão e acetona. Será que estou gorda como essa morena? Não pode ser, não. Apoia o palito no vão entre o polegar e o indicador e enrola, encharca na acetona novamente, remove o excesso com batidinhas na toalha e esfrega levemente nos dedos, fazendo pressão. No Natal fica tudo verde de novo, e eu vou estar com o meu piá. Já comprei até um pinheirinho pra colocar os presentes que ele vai ganhar do Papai Noel quando vier. O senhor tem trocado? Facilita. Muito obrigado. Olha, vai com Deus e obrigado por ter pedido pra eu ligar o ar!Carlos Henrique Schroeder é autor dos romances “Ensaio do vazio” (7Letras), adaptado para os quadrinhos, e “A rosa verde” (Editora da UFSC), adaptado para o teatro, e do recém-lançado “As fantasias eletivas” (Record), dentre outros. Sua coletânea de contos “As certezas e as palavras” venceu o Prêmio Clarice Lispector 2010, da Fundação Biblioteca Nacional. Tem contos traduzidos para o alemão, espanhol e islandês.
Mário Araújo nasceu em Curitiba-PR. Publicou os livros de contos “A Hora Extrema” –– prêmio Jabuti em 2006 –– e “Restos”. Tem contos publicados em revistas e antologias na Alemanha, Espanha, Finlândia, EUA e México. Atualmente escreve crônicas para o site Vida Breve e finaliza seu primeiro romance. Sua página na internet é www.marioaraujo.net.

O Jornal Opção tem publicado “Quatro Estações”, série literária em que dois autores escrevem, a quatro mãos, uma breve narrativa inspirada em uma estação do ano. E, dando continuidade a série, eis que chega aos leitores "Outono", obra dos escritores Mauricio de Almeida e Rafael Gallo. Na próxima semana, se achegará o último conto, "Inverno", de Carlos Henrique Schroeder e Mario Araujo.
[caption id="attachment_28114" align="alignright" width="620"] Venâncio Cruz é fotógrafo e estudante de Arte Dramática[/caption]
Assim que abre a porta do teatro e se depara com o palco, o ator sente a pungência de uma desolação, tocando-o como a dor refletida de um ferimento mais interior. As folhas secas recortadas de papel crepom espalhadas pelo chão, penduradas nas cortinas da cenografia com tiras de durex aparentes, foram a primeira coisa na qual deteve seu olhar e parecem ser as desencadeadoras de seu abatimento. Entretanto, ele sabe que a sensação de tudo em si próprio estar ressecado e prestes a desabar vem de muito antes: pronunciava-se já no gesto da mão que abaixou a maçaneta da entrada sem a antiga convicção da própria solenidade enquanto ator experiente, estava latente há dias, meses, anos. A precariedade da arte diante dele é a mesma de uma vida inteira.
Enquanto caminha pelo corredor escuro em direção ao palco, ele sente o dissabor rebatido de cada uma das poltronas vazias, cujo abandono, pode prever, não será muito menor nas noites de apresentação. Nem mesmo os garotos e as garotas mais jovens do elenco, que num suspiro coletivo, parecendo ensaiado, suspendem os movimentos e mal contêm sua alegria primaveril ao vê-lo chegar, conseguem dissuadi-lo desse desconforto. A proximidade definitiva do palco e a recepção calorosa da companhia deveriam levantar seu moral, retornando-o àquela sensação de ser uma celebridade em algum grau, mas as imitações de folhas secas –– agora vistas de perto e notavelmente mais toscas –– impõem a consciência inevitável da nulidade de suas conquistas ou notoriedade, as quais nunca bastaram para alcançar algo além dessa cenografia similar a de peças amadoras montadas em escolas primárias. Talvez não fosse apenas ele a vítima dessa queda outonal, mas também isso tudo a que sempre deu o nome sacralizado de: arte do teatro.
Sozinho no camarim, troca-se estranhando o local ao seu redor como se a consciência de seu corpo no ambiente –– ferramenta básica de todo ator –– tivesse sofrido uma fratura imperceptível. Observa as roupas nas araras, as plumas e as penas, as coroas e outros adereços, e refaz sua carreira: tantos personagens, tantas caracterizações alheias, tudo suspenso no tempo, deslocado no espaço. O ator senta-se na cadeira e as luzes que contornam o espelho iluminam seu reflexo já vestido com a velha camiseta branca e a calça de moletom própria de ensaios. Vislumbra a imagem à frente, procurando em seu rosto um mapa de seus erros e acertos, já cometidos ou ainda possíveis. E, enquanto perscruta os vincos (ou suas sombras cavadas pelas lâmpadas) que parecem mais profundos em volta dos lábios e aos cantos dos olhos, cuja falta de viço ou brilho os tornara pálidos como a barba esbranquiçada que desponta no maxilar, é surpreendido por toques delicados à porta, que deixa entrever uma assistente perguntando se ele está pronto. Sem desviar o olhar de seu reflexo, responde que sim, muito embora necessitasse ainda de uma maquiagem impossível de ser desenhada naquele rosto, manchado não somente pelas oxidações do espelho, mas, sobretudo, pela própria inconsistência e, inevitavelmente, pela vida.
Tentando se desfazer desses pensamentos, o ator sai do camarim e, antes de subir no palco, cumprimenta o diretor da peça, cujo entusiasmo demonstrado lhe parece estranho. Por consideração, responde estar pronto e satisfeito com aquela montagem surpreendente, o pastiche que traz outra leitura à velha peça inglesa. No entanto, quando adentra o palco, a sensação de plenitude espiritual e de ter sua existência justificada –– que sempre o banhou nesse espaço como o sol de um verão íntimo disparado pelos holofotes –– já não o tocam.Esses sentimentos de satisfação (os quais sempre foram a nota de fundo de uma promessa particular, calcada em um reconhecimento maior por vir) agora estão substituídos pela exasperação que não o deixa. A luz lhe incomoda e, mesmo que insista em não entender, o palco também se fende numa fratura imperceptível mas sensível, revelando o desfecho do arco que tem sustentado seu drama: a promessa não se cumpriu e não se cumprirá.
Ele deriva nesse desnorteio e somente quando percebe a perplexidade calada do elenco se dá conta de que não respondeu à deixa de sua entrada. Após o pedido do diretor para recomeçarem, feito com uma gentileza indulgente que lhe irrita, ele respira fundo procurando recobrar a altivez de performances passadas. Retorna à coxia e, ao sinal, surge no momento exato, fazendo parecer espontâneo o movimento ensaiado até a exaustão, apresentado em inúmeras ocasiões. Ele outra vez um bardo, outra vez um parvo, ele outra vez um outro, ainda e sempre distante de seu papel definitivo, da imagem que vislumbrava de si mesmo.
Quase não contendo a vontade de sumir por trás das luzes e ao fundo da escuridão para nunca mais voltar, o ator prossegue na cena: é preciso cumprir ao menos o curto itinerário que o conduz ao centro do palco. Cada passo é marcado pelo pisar nos recortes de papel crepom em forma de plátanos amarronzados e amarelados que nem mesmo lhe retribuem um estalo vívido, ao contrário, desmancham-se sem substância sob seus pés. Jamais vira um outono feito da queda de folhas dessa espécie fora dos palcos. Procurando se concentrar no texto que enunciará, sente o papel grudar em seus pés a cada passo nessa caminhada tão falsa e insossa quanto um outono feito de plátanos de crepom.
Há uma espera ansiosa e, com o ensejo do roteiro que o manda observar os outros personagens com atenção antes de se pronunciar, o ator perscruta os jovens ainda entusiasmados, devotados às próprias promessas e imersos naquela sensação de banharem-se em realização. E, sem saber se seu rancor é desprezo por eles ou por si mesmo, pensa na estupidez que é essa entrega obstinada a seus papéis, a qual denuncia uma crença desmedida na arte como algo enobrecedor, acesso privilegiado a uma dimensão interdita ao senso comum. Porém, tudo que lhes espera por trás das cortinas dos sonhos são meras cenografias falsas, folhas recortadas com papel crepom, atores feitos dos mesmos contornos toscos e noções fajutas da realidade, montagens e mais montagens de uma peça para ninguém ver. Esse desligamento do mundo não será mais tão encantador com a passagem dos anos, ele pondera. E, na frieza de seu silêncio, o olhar do ator inquire o elenco para anunciar a proximidade de um inverno glacial, o fim de tudo.
Chega o momento no qual sua voz deve ecoar por todo o auditório em uma fala de grande impacto. O ator sabe que, muito embora se trate apenas de um ensaio, é com grande expectativa que todos esperam ser deslumbrados por ele enunciando falas antigas que ainda servem à catarse. Mas de que adianta comovê-los se não convence mais a si mesmo? Essas falas já não ressoam nenhum sentido. Por isso, postado numa iminência, os olhos atentos, as folhas em desmanche grudadas aos pés, a gana que lhe falta como se lhe faltasse o movimento ou a voz, ele observa tudo ao redor e, sem maiores anúncios, desce do palco e adentra a escuridão do auditório, rumo à porta de saída sem qualquer solenidade, indiferente ao estupor e desconcerto de todos, que ficam para trás como outra plateia abandonada.
Maurício de Almeida nasceu em 1982, em Campinas (SP). É autor de "Beijando Dentes" (2008), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007. Tem contos publicados em antologias, revistas e jornais, além de traduções para o espanhol e para o inglês. Escreve também para o teatro. Mais: mauriciodealmeida.com.br.
Rafael Gallo é autor de "Réveillon e Outros Dias", livro vencedor do Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Jabuti na categoria Contos. Tem contos incluídos em antologias diversas e neste ano publica o romance "Rebentar", pela Editora Record

O Jornal Opção tem publicado a série literária “Quatro Estações”. Trata-se de quatro contos em que dois autores escrevem, a quatro mãos, uma breve narrativa inspirada em uma estação do ano. Nesta semana é a vez de “Verão”, obra de criação dos escritores Anderson Fonseca e Mariel Reis. O terceiro texto, “Outono”, de Mauricio de Almeida e Rafael Gallo, será publicado na próxima semana.
Edgar parecia um gorila resolvido. Gozava de respeito na cidade. Um investigador particular com muito pouco trabalho. Os clientes haviam sumido. A polícia não o procurava mais. A monotonia tomou a rotina do investigador desde o último caso: O Assassinato da Rua Morgue. Talvez o mais intrincado de sua carreira. Um dos seres humanos do zoológico havia escapado e protagonizado um crime brutal. Edgar enfrentou a descrença das autoridades que se recusavam a atribuir o caso a um animal enfurecido, lhes parecendo trabalho de um assassino como das inúmeras séries televisivas veiculadas, em que a maioria dos psicopatas tinha um alto quociente de inteligência, além de beleza e força física.
Porém, o que o intrigava não era a apatia criminosa instalada na cidade, tampouco a falta de clientes ou a responsabilidade das séries de tevê pelo aumento da violência. A preocupação de Edgar era a existência de outro dele, além das fronteiras. Nenhum macaco ousava atravessá-la, ninguém sabia o que havia por lá. Inúmeras histórias eram contadas a todos, desde a infância, e a escola as reforçavam. Edgar pensava consigo mesmo que não eram mais do que fábulas terríveis com o intuito de admoestação moral. Nunca lhe passou pela cabeça que fossem verdadeiras. Viveu toda a juventude sem inquietação nenhuma sobre o que se passava além das fronteiras. No curso universitário, embora não tivesse aptidão para a vida estudantil, fora apresentado, nas diversas fraternidades que percorreu, às teorias de multiuniversos.
Escarafunchando as bibliotecas do campus, descobriu, em livros de autores duvidosos, a confirmação das informações obtidas nas conversas de fraternidades. No entanto, tudo aquilo parecia um mundo fantasioso, um escapismo juvenil. Agora, mais velho, quando tudo o que podia dar errado já havia ocorrido, quando já alcançara a notoriedade, resolvera reviver a tal fantasia.
O carro, aparelhado com o necessário, o esperava na garagem. Um mapa com as paradas para descanso, aberto à sua frente, mostrava parte do planejamento e em um bloco de notas, com mais de vinte folhas escritas, a estratégia se desdobrava. O objetivo era a captura de seu duplo. Edgar contava com armas tranquilizantes e letais; não contava ter que usá-las, mas sabia manejá-las, se preciso. Edgar, o gorila, sonhava com um homem com cabelos negros revoltos, testa alta, queixo curto, cujo nome, sobrenome e filiação fossem iguais aos seus. Virgínia, datilógrafa e namorada de Edgar, rogava para que ele tirasse da cabeça a maluquice. Ele parecia a ela obstinado –– em geral são assim os gorilas.
Partiria no dia seguinte, portanto, dormiria como um bebê. Retirou o carro da garagem, o estacionou em frente de casa, compraria alguns víveres no centro da cidade e voltaria para repousar. Ouviu o alarme de fuga de humanos, enquanto manobrava próximo ao supermercado, procurando vaga. A polícia não perdoaria quem lhe roubou a soneca do plantão. Edgar costuma deixar destrancada a viatura para as emergências, vício antigo, sem nenhuma serventia em tempos tão calmos. Levou consigo apenas as chaves e a carteira que estavam sobre o painel atulhado de quinquilharias, badulaques e um amontoado de multas vencidas. Entrou no mercado. Quando retornou, a rua estava tomada de policiais, os chimpanzés, agitados, segurando lanternas, reviravam os latões de lixo e observavam o interior dos automóveis largados ali. Edgar saudou o sargento Lerie, um velho conhecido.
–– Como está, meu velho?
–– Nada bem, Edgar. Parece que tivemos o perímetro da cidade violado por um humano...
–– Boa sorte.
–– Obrigado, companheiro.
Edgar entrou no carro, jogou as compras no banco traseiro. Deu a partida e pisou fundo. As luzes das viaturas policiais sumiram do retrovisor. Ele abriu o porta-luvas, com rapidez, e sacou a pistola. Apontou para o humano encolhido, perto da sacola de compras e rosnou:
–– Me dê um bom motivo para não estourar seus miolos...
O invasor estendeu a mão, timidamente, dedos longos e finos, a pele pálida, os olhinhos perturbados e penetrantes:
–– Boa noite. E me desculpe. Sou Edgar.
O detetive piscou duas vezes antes de perguntar:
–– Qual é seu nome?
–– Edgar.
O detetive passou as grossas mãos no rosto, manteve a arma apontada para o invasor, relaxou os ombros, balançou a cabeça negativamente e disse:
–– Você só pode estar brincando. Você tem sobrenome? Qual é?
–– Por que quer saber?
–– Responde a pergunta!
–– Alan Poe.
O investigador gargalhou escandalosamente. –– Alan Poe, repetiu aos risos.
O homem contraiu as sobrancelhas sem entender o porquê do riso. Edgar percebeu que o outro estranhou sua reação.
–– Ah, não me diga. Você não sabe por que estou a rir? Eu sou Edgar Alan Poe, você é Edgar Alan Poe. Você sou eu.
–– Ou você sou eu –– disse o homem.
–– Não, meu amigo. Eu sonhei com você, eu senti que você existia. Ei-lo aqui, diante de mim. Você é meu oposto em um universo paralelo.
–– E se estiver sonhando nesse exato momento?
Edgar aproximou-se do homem, encostou o cano da arma na cabeça dele e disse: –– Se eu atirar e você morrer e eu acordar, então era um sonho, se não, isso é real. O homem engoliu a saliva.
–– Mas se você não despertar, então terá a certeza de estar no Inferno.
–– Ou, se meus olhos permanecerem abertos, constatarei somente que você é minha versão em um universo paralelo que violou as leis da física aparecendo aqui.
–– Está assistindo muitos filmes ultimamente, detetive. Eu só fugi do zoológico e cometi um assassinato. Por que acredita tanto nisso?
–– Você já assistiu “O Confronto”, com Jet Li? Nesse filme o protagonista descobre que existem 12 versões dele em 12 universos paralelos e que uma dessas versões está eliminando todas as outras a fim de obter poder absoluto.
–– Você tem assistido muita porcaria. Sugiro lavagem cerebral com a intenção de curá-lo de suas paranoias.
–– Vá se ferrar! Você é ou não de um universo paralelo? Confirme a droga da minha hipótese.
–– Admito que sim e estou surpreso que você, detetive, seja um gorila. Aliás, que eu nesse mundo seja um gorila.
Edgar sentiu-se tão ofendido com a palavra “gorila” que desferiu um soco no rosto do homem. Isso bastou para que escolhesse bem as palavras.
–– De onde você é, seu desgraçado? –– O sangue já fervia no corpo de Edgar; por ele, teria matado o outro, mas o desejo de saber a verdade o detinha.
–– Eu sou de outra terra e creio que estou aqui graças a um abalo sísmico. Se minha teoria estiver certa, o abalo distorceu as ondas eletromagnéticas da terra criando um portal para essa versão alternativa. Estou aqui por um acidente.
–– E o que você é em sua terra?
–– Eu sou detetive e escritor. Mas isso importa agora? Só não posso deixar de rir da situação, lembra-me muito o filme “Planeta dos macacos”, um mundo governado por símios em que os humanos são escravizados. Se o diretor da porra daquele filme soubesse que a visão dele era tão real, acho que teria feito outra coisa. Agora estou aqui como um animal de zoológico diante de mim mesmo numa versão primitiva.
–– Você é de fato um desgraçado. Merece outra porrada, mas desta vez não receberá. Em meu mundo, o filme teve outro nome “Planeta dos humanos”. E você parece um animal. Responda-me, quem você matou?
–– Não acreditaria, toda uma família que me olhou como um animal de estimação.
–– Você não estaria aqui se não fosse o conceito de simetria que rege o universo, mas deveria haver alguma lei inviolável que proibisse a ruptura da simetria, senão você já teria desaparecido. Além disso, se sou de fato sua outra versão cósmica, por que ainda estou aqui? Por que não houve uma fusão entre nossos corpos e o desaparecimento de ambas as versões?
–– Isso é claro, se desaparecermos, os dois universos também desaparecem. A questão é como fazer com que eu volte.
–– Se continuar aqui, eu tenho certeza que matará mais gente. Você não tem respeito pela minha espécie e nem pela minha realidade, seu escritor de bosta.
–– Tenha certeza que matarei, sou um homem e você um gorila.
–– Tenho certeza que sim, por isso não tiro o gatilho da sua cabeça.
–– Mas até agora não apertou.
— Se eu apertar, quem irá morrer, eu com você ou esta realidade? Como não sei a resposta, não é hora de estourar seus miolos. No filme “O confronto”, a morte de um não afeta os outros universos. E se isso valer para nós dois? Se você morrer talvez eu morra, mas não esta realidade.
–– Dê logo a droga desse tiro.
–– Tens razão, é hora de dar o tiro.
Edgar afasta a arma da cabeça do humano, coloca-a na própria boca e aperta o gatilho. O corpo do gorila cai em peso sobre o chão. O humano –– o outro Edgar –– observa a queda, estarrecido. O gorila estava morto, foi o que pensou. Mas não foi bem o que aconteceu. No instante após o tiro, a mente de Edgar sofreu um violento colapso, as luzes que o atingiam se desfizeram e um clarão mais intenso que o sol tomou seus olhos. Em uma fração de segundos, o universo desapareceu e outro emergiu do oceano de energia e, como uma porta que é aberta por dentro, a mente de Edgar atravessou incontáveis dimensões. Quando esse instante passou, ele viu a si mesmo de joelho diante de um homem. Ele continuava um gorila, mas não era um detetive, era um animal. Suas mãos estavam ensanguentadas, ele as olhou com pesar, tinha matado não um, mas toda uma família, assim como seu eu do universo paralelo. Ergueu o rosto para ver o homem que o prendera. Não estava surpreso, era o outro Edgar. Assim que o viu, Edgar entendeu o que é o Universo, um infinito labirinto de portas. Não importa por qual delas atravessemos, as situações serão idênticas ainda que a posição dos personagens tenha se alterado.
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Foto: Divulgação[/caption]
Mariel Reis é carioca, nascido em 1976. Cursou Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A partir da década de 1990, começou a publicar seus contos em diversas revistas eletrônicas, culminando a experiência com a extinta revista Paralelos. Publicou o último livro “A Arte de Afinar o Silêncio” (Ponteio Editora), em 2012. É um dos editores da revista eletrônica de contos Flaubert.
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Foto: dvulgação[/caption]
Anderson Fonseca é escritor e professor. Autor dos livros de contos “Sr. Bergier & Outras Histórias” (Rubra Cartoneira, 2013) e “O que Eu Disse ao General” (Oitava Rima, 2014), Anderson escreve diariamente duas laudas de um livro novo de contos e, quando não escreve, está brincando com sua filha Ana Clara.

Nas próximas semanas, o Jornal Opção publicará a série literária “Quatro estações”. Trata-se de quatro contos em que dois autores escrevem, a quatro mãos, uma breve narrativa inspirada em uma estação do ano. E, para abrir a série, eis que chega aos leitores “Primavera”, obra de criação das escritoras Luisa Geisler e Débora Ferraz. Na próxima semana, se achegará “Verão”, de Anderson Fonseca e Mariel Reis