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[caption id="attachment_43479" align="alignleft" width="250"] Romance de Gustavo Magnani surpreende pela qualidade e, dada a temática, tende a se tornar best seller | Divulgação[/caption]
O prosador cubano Reinaldo Arenas (1943-1990) escreveu um livro, “Antes Que Anoiteça”, que surpreende pela crueza da narrativa e da história. É um relato da vida homossexual em Cuba, durante parte da ditadura da dinastia de Fidel Castro. Leitores de estômago fraco certamente não terão ânimo para frequentar as páginas de uma obra verdadeira e sem concessões ao moralismo. As histórias, descritas com rara perspicácia, sugerem que a sexualidade é muito mais complexa do que explicitam as categorias rígidas criadas pela cultura. As fronteiras entre a homossexualidade e a heterossexualidade, que parecem tão distantes e conflitantes, às vezes são mais tênues do que imagina nossa vã filosofia. A curiosidade e o prazer sexuais são exibidos com tanta vivacidade por Reinaldo Arenas, autor admirado pelo crítico Harold Bloom, que, ao ler a história, é como estivéssemos presenciando um strip-tease das profundezas da alma, uma devassa não apenas dos corpos dos homens.
O escritor brasileiro Gustavo Magnani publicou um romance que tende a se tornar best seller — tanto pela temática, a conexão entre homossexualidade e religião, especificamente a evangélica, quanto pela qualidade de sua escrita. “Ovelha — Memórias de um Pastor Gay” surpreende pela narrativa precisa de um mundo complexo, ao qual não se deve adentrar com as limitações dos preconceitos (que não servem nem para seus combatentes) de variados matizes, e pela apresentação de um comportamento de maneira (quase) antropológica. O pastor gay é apresentado, sua vida é dissecada, mas o autor evita a rigidez dos julgamentos morais. Os julgamentos ficam por conta dos leitores — se quiserem fazê-los. O autor fornece os elementos para a leitura, ou melhor, leituras.
Surpreende, pelo texto seguro e pela arquitetura sem fissuras, que Gustavo Magnani [foto acima, do arquivo do autor] tenha apenas 20 anos. Sua prosa é de autor maduro. Seu talento lembra o do escritor francês Raymond Radiguet. Já a percepção acurada da vida de um homem complexo e complicado, um homossexual religioso (até fanático), lembra a narrativa de “Antes Que Anoiteça”. O romance é, ao mesmo tempo, um “retrato” da realidade e literatura. Realidade e imaginação imbricadas.
O romance, que possivelmente vai ganhar as livrarias de outros países e as telas dos cinemas, é menos sensacionalista do que insinua. Diria que é uma odisseia profusa e profundamente humana — até nos delírios do personagem — e um registro de como nós, homens, somos sofridos, variados e, portanto, difíceis de apreender por interpretações estreitas.
Trecho do livro de Gustavo Magnani
Despedida
Não é, senhor, o último capítulo.
Falhei talvez em entregar uma história de blasfêmia e ofensa: eu aqui — completamente nu, entregue e verdadeiro.
Já não sei quem é o senhor e isso pouco me importa, não sei também o que dirão dessa carta de suicídio prolongada; de um ser que aos poucos morreu, mas que viveu, não direito, mas intensamente.
Ainda uso aquela túnica, mas ninguém montou em mim.
Talvez seja este meu último desejo: apenas um buraco na terra, insetos em volta do caixão e um esqueleto que acompanha o movimento do mundo: em eterna decomposição.
Senhor, até nunca.

[caption id="attachment_14630" align="alignleft" width="200"] Donna Tartt, de 51 anos, é autora de “A História Secreta”, “O Amigo de Infância” e “O Pintassilgo”[/caption]
Autores “novos” ou pouco comentados por críticos especializados sofrem com resenhas peremptórias de jornais. Na falta de fortuna crítica categorizada, jornalistas e alguns críticos não têm informações suficientes — e parâmetros — para avaliar novos romances, contos e poesias, deixando escapar a qualidade específica e as influências literárias. O resultado às vezes são críticas rápidas, sem referências precisas à obra “examinada”, destacando-se mais aspectos perfunctórios e externos.
Abordar um autor a “seco”, sem o amparo de leituras anteriores, com críticas sedimentadas, referenciais, é o trabalho do verdadeiro crítico literário. O crítico americano Edmund Wilson publicou um livro, entre o fim da década de 20 e o início da década de 30, no qual examinou, cuidadosa e criteriosamente, a obra de, entre outros, Marcel Proust e James Joyce.
Praticamente não havia crítica consistente na qual basear-se e, por isso, ele fez uma leitura própria, específica, que muito contribuiu com a crítica posterior, ao abrir fronteiras. Publicado há mais de 80 anos, “O Castelo de Axel” (há uma bela tradução, feita pelo poeta José Paulo Paes e publicada pela Cultrix-Companhia das Letras) é a obra-prima de Wilson.
O crítico de jornal quase sempre não tem o tempo adequado para ler cuidadosamente uma obra mais alentada e, depois, não tem espaço para expor seus argumentos. Antônio Gonçalves Filho, um dos críticos mais qualificados do “Estadão”, resenhou o romance “O Pintassilgo” (Companhia das Letras, 719 páginas, tradução de Sara Grünhagen), de Donna Tartt, e nada acrescentou de relevante. De cara, implicou com o fato de Stephen King ter elogiado o romance, mas não mencionou duas críticas mais consistentes — de Michiko Kakutani, do “New York Times”, e do “The Guardian”. A Companhia das Letras recolheu um trecho do comentário de Kakutani e o publicou na contracapa: “Brilhante... Um romance glorioso, no qual todos os talentos narrativos de Tartt convergem numa arrebatadora sinfonia; um livro que nos traz de volta o prazer de passar a noite inteira lendo”. A editora publicou também um trecho da crítica do “Guardian”: “Raymond Chandler é uma presença tão grande nestas páginas quanto Dickens ou Dostoiévski. Falar mais sobre a trama seria privar os leitores do imenso prazer de ser arrebatado por ‘O Pintassilgo’. Se alguém perdeu o amor pelas histórias, este é o livro que certamente o trará de volta”. Os trechos são usados pela editora como publicidade positiva para o livro, mas fazem parte de resenhas mais densas e comparativas que permitem ao leitor uma compreensão mais perceptiva do romance.
O “Estadão” fica devendo uma crítica mais aguda ao belo romance de Donna Tartt — uma autora surpreendente que remete ao século 19, o de Dickens, Thoreau e Dostoiévski, mas também aos séculos 20 e 21 e, às vezes, à literatura de Thomas Pynchon (que ela não cita como influência literária). Não se está propondo uma crítica a favor, e sim uma crítica mais substanciosa à obra da escritora americana e a quaisquer outros romances. Uma crítica, além de apontar defeitos e virtudes, deve “entrar” na obra, escarafunchá-la a fundo. Críticas superficiais, do contra para ser do contra, servem unicamente para espantar leitores desavisados.