Três dezenas de africanos mortos ao tentar cruzar a fronteira do Marrocos com a Espanha

Halley Margon – da Espanha – Especial para o Jornal Opção

Na madrugada da sexta-feira, 24 para 25 de junho, um grupo de umas tantas dezenas de refugiados tentou ultrapassar a barreira que impede sua entrada no paraíso: a cerca de Melilla, que no Marrocos separa a África da Espanha. A violenta repressão da polícia de fronteira deixou sobre o terreno um amontoado de corpos, uns não se sabe quantos feridos, e uma trintena de mortos. Nas palavras do editorial publicado pela revista ctxt (https://ctxt.es), as “imagens de feridos e detidos empilhados em um terreno baldio, cercados por policiais do país vizinho, que apenas se aproximam de seus corpos desarmados para lhes dar um golpe adicional, produzem um calafrio moral”. 

Passados já quatro dias desde os eventos da sexta e com todos os meios à disposição, até agora não se esclareceu quantos foram afinal os mortos, se 23, 28, 30 ou 37, tampouco como morreram. Parece não interessar. A medida da indignação está determinada não pelo número dos corpos que cobrem o chão, mas pela cor da pele e a origem dos cadáveres. Vejam as inúmeras fotografias disponíveis na internet e então se perguntem sobre o tamanho do barulho produzido fossem aqueles mortos brancos ucranianos vítimas do carrasco Putin ao invés de pretos africanos que perderam a vida bem ali, num dos enclaves espanhóis no norte da África, a apenas 665 kms de Madri – a cidade que agora mesmo, entre 28 e 30 de junho, ironicamente está sediando a reunião de cúpula da OTAN. 

A palavra crime até agora não foi vista nem aventada para se referir ao ato ou a quem quer que seja. Ninguém foi acusado de crime contra a humanidade, crime de guerra, genocídio, matança indiscriminada – até porque aparentemente ali não há uma guerra, trata-se apenas, nas palavras de um senhor negro numa concentração de protesto na capital espanhola, de “uma política de dissuasão, quantos mais pretos matam, menos virão”. Ao contrário, o atual presidente do Governo da Espanha e um dos paladinos da justiça humanitária europeia contra o bárbaro Vladimir Putin, Pedro Sanches, elogiou publicamente a polícia marroquina pelo seu “extraordinário desempenho” e descreveu a operação como “bem resolvida”. 

Pouco importa ao obsequioso Sanches que a brutalidade das imagens traga inapelavelmente à memória algumas das fotografias dos campos nazistas. É preciso vê-las, ainda que nos provoque horror. Porque, sim, é o que aqueles corpos amontoados impudicamente no chão, uns sobre os outros, sem que possamos saber quem ainda possui vida, quem já não, nos obriga a recordar. Ao obsequioso Sanches o que interessa agora é estender o tapete vermelho para receber a cúpula dos exércitos do bem e se mostrar mais uma vez à disposição dos comandantes do show e ao diretor geral do espetáculo. Talvez valesse a pena tentar descrever o clima de euforia que toma conta dos anfitriões, mas há coisas mais graves no entorno.  Quem sabe não seja suficiente repetir a manchete do El País no dia 28: Biden e Sanches celebran su primera entrevista formal al amparo de la OTAN. Ufa! Afinal, após tantos desencontros e acenos à distância, o imperador abre sua agenda e concede uma hora inteira (sic) para receber o presidente que o recepciona.   

História

Talvez nem todo mundo saiba, mas o território espanhol se estende até os dias atuais a esses dois pequenos enclaves situados no norte da África, Ceuta e Melilla. Os bons alunos de história no colegial se lembrarão que a tomada de Ceuta por João, o Bastardo, rei de Portugal, em 1415, anunciou o que seria a exploração portuguesa da África. Menos de dois séculos depois, com a anexação de Portugal pela Espanha, em 1580, passou às mãos dos espanhóis. E em suas mãos permanece. Com pequenas diferenças, o mesmo se passa com Melilla. O que as torna importante no século XXI? É que são a Europa em plena África. A maneira mais fácil, portanto, de pisar em solo europeu. Não há necessidade de arriscar a vida em travessias clandestinas espremidos em barcaças precárias. Basta ultrapassar as barreiras (as vallas de Ceuta e Melilla) que foram instaladas ali para impedir sua passagem – como o Muro de Berlim, o da fronteira do México com os EUA ou o de Israel (Israeli West Bank Barrier).

A indecência da coisa (sempre há indecências adereçando esse encantando mundo próspero) está na discrepância das imagens que impregnam nossa memória recente: de um lado a dos ucranianos, milhares de ucranianos, mais de uma centena de milhar de ucranianos sendo recebidos na Espanha pelo governo e por famílias solidárias em portos e nos aeroportos, com flores e brindes para as crianças, as mulheres, os idosos, e acalentadoras imagens cuidadosamente produzidas pelos telejornais (e esses refugiados de fato merecem essa solidariedade e essa recepção), e de outra parte, a dessas poucas centenas de pretos africanos que também refugiados das guerras intestinas que consomem seus países, e da miséria insanável e da fome que a exploração colonial lhes legou como herança, recebidos a pauladas e mortos não se sabe como (o governo marroquino os está sepultando em covas rasas sem providenciar a autópsia para sequer determinar a causa da morte), e tratados como bandos de alucinados selvagens pelos mesmos telejornais.

A indecência da coisa está também nessa outra declaração de Pedro Sanches (o obsequioso Sanches) na qual reconhece “o trabalho do governo do Marrocos em coordenação com as forças e órgãos de segurança do Estado de Espanha para tentar deter um assalto violento que precisamente o que fazia era pôr em questão a nossa própria integridade territorial” (ainda bem que esse assalto violento contra a integridade territorial espanhola não vinha da parte dos exércitos russos).

A indecorosidade está também na própria realização dessa cúpula da organização militar do Atlântico Norte destinada a aumentar (significativamente) os gastos com armas e os orçamentos em geral dos seus exércitos (com pessoal, pesquisa bélica, instalações militares etc). Mas isso é investimento. Businnes. Uma espécie de “plano Marshall B” para alavancar a saída do buraco. Porque, como se sabe, desde muito, pelo menos desde a I Grande Guerra, e isso o sabe o Império muito melhor que seus vassalos europeus, a guerra é uma ótimo negócio, fomentador de lucros fabulosos e acelerador de inúmeras cadeias produtivas com altíssima concentração de capital. Muito melhor que perder tempo com refugiados africanos, com a miséria daquele subcontinente abandonado por deus e habitado apenas por pretos.

Se isso afinal resultar daqui a pouco numa nova guerra que mais uma vez devaste o Velho Continente… Bom, por um lado os ricos sempre encontram uma maneira de escapar dos morticínios e, por outro, sempre se poderá montar um “plano Marshall C” para de novo catapultar a economia do Império.

De qualquer modo, a cúpula da OTAN, os senhores da guerra e os números da economia que os serve ficam para o próximo artigo.