Demóstenes Torres*

A pior página da história de qualquer nação se iguala à brasileira no horror, jamais a supera. Nada há de mais danoso que escravizar. O Brasil manteve, conviveu, lucrou e tolerou a servidão humana oficialmente até o fim do século 19. As marcas dessa ignomínia permanecem esculpidas no passado nacional com seus efeitos jorrando pela fonte eterna que a desfaçatez realimenta a cada nascer do sol. Não existe nuvem capaz de esconder essa vergonha, nem água que a dissolva, nem santidade que a perdoe.

As mãos que movimentaram o cinzel talhando as fronteiras do absurdo não se movimentaram para dar adeus à suprema humilhação. Por isso, talvez, determinada parte do Brasil aceite comparar escravidão com banheiros químicos distantes ou a ausência de formação de SESTR, o Serviço Especializado em Segurança e Saúde no Trabalho Rural.

O item 31.4.12 da Resolução NR 31, atualizada no Diário Oficial da União em outubro de 2020, é claro: fazendas com mais de 50 empregados devem ter SESTR “composto por médico do trabalho, engenheiro de segurança do trabalho, técnico em segurança do trabalho, enfermeiro do trabalho e auxiliar/técnico em enfermagem do trabalho”.

Mais de 90% das cidades não dispõem de tanta gente especializada. Os bairros com 3 vezes os 50.000, igualmente não. Todavia, no meio da roça o produtor rural é obrigado a oferecer. Os próprios órgãos públicos, em zona urbana ou rural, não ofertam o que exigem dos fazendeiros. Os trabalhadores da cidade e do campo precisam e merecem serviço de saúde decente, mas o governo inverteu o ônus, ficou com o bônus da arrecadação dos impostos e tirou de sua alçada a assistência a quem transpira nas lavouras. Pelo menos na aparência, não se nota que os ministérios, incluindo-se os MPs, conservem em suas instalações elencos de especialistas em saúde do trabalho que impõem ao homem do campo.

Meio mundo foge desse assunto pelo temor, real, de ser admoestado. Sai a postagem às 5h50 da manhã de 4ª feira e antes do alvorecer da 5ª feira o autor já está sendo chamado de capitão do mato nos tribunais dos aplicativos. Os haters sequer leem o que contestam.

Não se está aqui afagando malfeitores contemporâneos, mas combatendo a injustiça com quem sofreu nos séculos da servidão aceita pelas “pessoas de bem”, religiosas, das “melhores famílias”. Os descendentes dos exploradores estão por aí com mandato, cargos nos Três Poderes, fingindo que a origem da riqueza é o mérito. Usufruem da herança, com sobrenome ou patrimônio, e batem sem dó em quem trabalha e produz.

Tudo cai na cabeça do agropecuarista.Chapéu, além de gosto pessoal, é equipamento de proteção contra o que lhe atiram no cocuruto. O agricultor familiar, que uma profusão de oportunistas diz defender, está proibido de realizar mutirão, chamar a vizinhança e colher os morangos no fim de semana antes da chuva. “Ih, denuncia lá pro ministério tal que o Zé da Horta tá com mais de 50 colaboradores na plantação sem nem colocar toalhas ou bidês nas instalações sanitárias móveis”. De fake em fake, todos perdem com a criminalização do agricultor, responsável pela cadeia alimentar, não pela cadeia de custódia. O maior derrotado é o Brasil.

Se o patrão castiga o colaborador –para usar um termo em voga– com dormitório degradante, alimentação putrefacta e outras ilegalidades que beiram a podridão, deve ser submetido aos rigores da lei: punição, cárcere, multa, reparação etc.

Outra coisa é o exagero em fazer paralelo dos grilhões dos engenhos com a lama no curral. A jornada de 10 horas de trabalho (qualquer dono de loja, principalmente micro, fica no comércio durante 100 horas semanais); o EPI inadequado segundo a recente portaria (e todo expediente pode não ter expediente, mas tem nova portaria); o transporte em caminhão, já que carro atola nas estradas vicinais que o poder público abandona.

As regras às quais a burocracia submete o empreendedor do campo são redigidas em repartições construídas com o dinheiro do pagador de impostos, que paga também a água, a luz, o cafezinho. E ali são tramados os textos para envolver o patrocinador em sendas nunca caminhadas.

A trilha que o produtor conhece é a de casa para o eito, do eito para uma sombra de árvore enquanto engole a marmita e volta para o serviço. Pilota trator a noite inteira para dar conta da prestação da máquina. O juro do banco é descomunal e, se atrasar o boleto, fica sem a caminhonete de carregar adubo. Bobeou, tomam-lhe a terra. Vai trabalhar de peão para os colegas do sindicato rural e recomeçar a biografia.

Na aurora seguinte à busca e apreensão na sede, o produtor rural madruga para tirar leite, plantar, colher, vender e recolher impostos para pagar os penduricalhos, os salários, as benesses e as aposentadorias milionárias daqueles que o fustigaram na operação. Essa é a sua vingança: sustentar os algozes. Acusam e depois absolvem, pela carência de provas. Promovem o cancelamento nas redes sociais e depois dizem que não foi nada, quando foi tudo, pois a honra é patrimônio maior que os bens materiais. Às vezes, submetem à execração absoluta aqueles que deveriam ser parabenizados.

Equiparar a desobediência a portarias à captura de pessoas na África deprecia a memória das vítimas açoitadas em navios e mortas em vida com o suplício diuturno. O “uso de toalhas coletivas para lavagem e enxugo das mãos” nas instalações sanitárias dentro de um bananal é filigrana quando se relembram os relatos do ontem. Partir para cima dos produtores rurais como se fossem bandidos não é só tema de tuítes de conservadores conversadores. É o que ocorre. Sem ampla defesa, sem contraditório, sem perguntar quem admitiu, sem responder quem não admite as duas formas de violência, contra o empregado e o empreendedor.

O prestígio da categoria que equilibra a balança comercial é arrastado para o bueiro graças às seguidas campanhas de desmoralização. São fruto do conluio de autoridades em busca de holofotes, jornalistas preconceituosos e a parcela da sociedade que acha que arroz nasce no saquinho de 5kg e a melancia é pintada, dentro, por um torcedor do Inter de Porto Alegre e a casca por um palmeirense fanático.

O habitante da avenida a polui com o veneno que mais causa mortes, o petróleo, e fala bobagens sobre o defensivo agrícola que desconhece. O morador da metrópole, o madeireiro, o fornecedor para a fábrica de móveis, compram uma propriedade e a desmatam enquanto criticam o fazendeiro apóstolo da preservação.

Como prega o presidente da Federação da Agricultura do Estado de Goiás, José Mário Schreiner, o ruralista raiz sabe que se tornou possível aumentar a produção sem que seja necessário derrubar mais nenhuma árvore do Rio Grande do Sul ao Amapá, do Acre à Paraíba. Schreiner diz que o grão de soja tem mais tecnologia que o iPhone 14. Com uma diferença: a humanidade viveu até pouco tempo sem telefone celular, mas há 15.000 anos sobrevive por causa da agricultura.

*Demóstenes Torres é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.