A dupla apoiava o projeto político-constitucional de natureza democrática representado pelos povos indígenas no Vale do Javari

Indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips | Foto: TV Globo/Reprodução

Wilson Rocha Fernandes Assis*

Com frequência, afirma-se que costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas são bens imateriais que compõem o patrimônio cultural brasileiro; ao passo que os crimes que lesam os territórios indígenas são comumente retratados como crimes ambientais.

Nesse sentido, poderíamos afirmar que Bruno Pereira e Dom Phillips morreram lutando pelo meio ambiente e pela cultura dos povos indígenas. O valor desses bens é suficientemente elevado para que compreendamos a nobreza da batalha que travavam, o elevado altruísmo que os movia, o verdadeiro heroísmo que tardiamente se lhes atribui.

Mas tudo isso é ainda insuficiente para compreender a complexidade do contexto em que estavam envolvidos e por que o crime que os vitimou é, de fato, um atentado contra a democracia.

Para entender a natureza política do trágico episódio, devemos reconhecer que organização social, costumes, línguas, crenças e tradições de cada povo indígena são direitos que configuram um projeto político cuja realização exige o reconhecimento e a garantia, pelo Estado brasileiro, de um território.

A tarefa é grande e complexa, mas está cristalinamente estabelecida no artigo 231, da Constituição de 1988. E o encargo fica ainda mais difícil quando pensamos nos demais grupos culturalmente diferenciados aos quais se devem assegurar direitos semelhantes, por força da mesma Constituição e de tratados internacionais subscritos pelo Brasil.

As dificuldades no cumprimento desse encargo pelo Estado brasileiro demonstram que a constitucionalização dos direitos dos povos indígenas não é suficiente para superar o antagonismo fundamental sobre o qual se funda a sociedade brasileira. Desde tempos imemoriais, os povos aqui estabelecidos vivem uma guerra étnica que foi exponencialmente agravada com a chegada das etnias europeias, em 1500.

Em um processo secular, que incluiu a transmigração forçada de um enorme contingente populacional africano, a guerra étnica configurou um polo nacional de matriz europeia e centenas de etnias dispersas ao longo de todo o território. O devir histórico consolidou um projeto nacional-europeu hegemônico, mas também a permanência de etnias autóctones e africanas não assimiladas ao projeto nacional, além do que ensejou processos de etnogênese que continuam em curso.

Com cana de açúcar, expedições bandeirantes, mineração, café, borracha, estradas e ferrovias; com as commodities agrícolas, com a caça e a pesca ilegais, ou com grandes empreendimentos de infraestrutura, a sociedade nacional insiste em marchar em direção aos territórios tradicionais, cujos povos, por sua vez, fazem rufar os tambores hoje ouvidos no mundo inteiro.

A diversidade étnica, embora central na conformação histórica das sociedades brasileiras, valorizada e promovida como bem cultural, é continuamente varrida para debaixo do tapete em suas repercussões político-jurídicas.

Prova disso é a forma como os direitos dos povos indígenas são lidos e interpretados na Constituição Federal. Com 250 artigos, lemo-la quase inteira para, somente nos artigos 231 e 232, nos depararmos com a chamada “questão indígena”.

Com algum esforço, o operador do Direito enxerga luzes difusas de indianismo nos artigos 215-216, na seção referente à cultura; ou no artigo 225, no capítulo relativo ao meio ambiente. O problema não está na Constituição de 1988, mas na forma como a lemos, interpretamos e aplicamos.

Uma interpretação sistemática e sociologicamente adequada deveria levar em consideração a questão étnica em diversos outros títulos, capítulos e seções do texto constitucional. Por exemplo, quando nos referimos aos princípios fundamentais da República (Título I), deveríamos compreender a diversidade étnica como manifestação do pluralismo político da sociedade brasileira, conforme previsto no artigo 1º, inciso V. Da mesma forma, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) deveria ser interpretada de modo a afirmar não apenas o valor da pessoa individualmente considerada, mas a dignidade do contexto sociocultural etnicamente determinado no qual o indivíduo se insere. Igualmente, ainda, não é coerente sustentar a autodeterminação dos povos como princípio que rege as relações internacionais da República Federativa do Brasil (artigo 4º, inciso III), sem levar em conta a autodeterminação dos povos submetidos ao estado nacional-constitucional brasileiro.

Detenho-me aqui especialmente na compreensão da diversidade étnica como expressão do pluralismo político da sociedade brasileira. É preciso reconhecer que o pluralismo político vai muito além da política partidária, devendo abarcar a dimensão étnica e os diversos projetos políticos que ela comporta.

Atentar contra a proteção de minorias étnicas, que trazem em si um projeto político-existencial protegido pela Constituição, é atentar contra a República. É por isso que o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips é um atentado contra a democracia. Eles eram apoiadores não apenas do meio ambiente ou da cultura indígena, mas do projeto político-constitucional de natureza democrática representado pelos povos indígenas no Vale do Javari.

Pela mesma razão a omissão deliberada na garantia de direitos territoriais de povos indígenas, privando-os do exercício de direitos políticos, individuais e sociais que lhes são próprios e inalienáveis, configura crime de responsabilidade do presidente da República, conforme artigo 85, inciso III, da Constituição Federal.

* Wilson Rocha Fernandes Assis é procurador da República.