Há vínculos que morrem não por falta de amor, mas por acúmulo de pequenas dívidas emocionais nunca pagas. A intimidade — essa moeda silenciosa que sustenta a vida conjugal — precisa ser renovada diariamente; caso contrário, transforma-se em déficit afetivo, ressentimento, distância e, por fim, ruptura.

Foi o que aprendi na vida e no exercício da judicatura por quase 8 anos numa Vara de Família, quando Juiz em Anápolis e quero levar a efeito com a amada, agora que me suponho mais experiente para a “arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, como diz o poeta.

O divórcio raramente começa no cartório ou no Judiciário: ele começa na linguagem interrompida, nos gestos não feitos, nas conversas evitadas e no afeto que deixa de circular.

Hoje alguém trouxe nas redes o que se estudamos também na faculdade de Filosofia, daí porque recorro a anotações e clássicos outrora estudados, visto como a psicanálise há muito reconhece esse fenômeno. Freud via o vínculo amoroso como um campo de projeções recíprocas: cada parceiro deposita no outro expectativas, idealizações e feridas inconscientes.

Quando esses conteúdos deixam de ser reconhecidos e elaborados, formam o que ele chamava de “remanescências psíquicas não resolvidas”, que exigem pagamento — não na lógica da punição, mas na lógica da repetição. Jung – a minha preferência autodidata para palestras espíritas – reforçava que aquilo que o casal não enfrenta no diálogo retorna como sombra: “O que não se torna consciente, retorna como destino”. A dívida de intimidade, assim, é a sombra emocional que cresce enquanto o casal finge que ela não existe.

Mas não é apenas o inconsciente que fala: a terapia comportamental, especialmente com Aaron Beck e Albert Ellis, mostra que casamentos fracassam porque acumulam padrões disfuncionais de interação — críticas constantes, interpretações negativas, expectativas rígidas e a crença irracional de que o outro “deveria saber” o que sentimos. Na linguagem de Beck, formam-se ciclos de retroalimentação negativa, onde cada gesto frio do outro confirma o que já temíamos: que não somos mais vistos, ouvidos ou desejados. A dívida cresce quando deixamos de oferecer reforços positivos — carinho, validação, atenção, afeto — e passamos a operar apenas no saldo negativo da convivência.

A filosofia também ilumina esse fenômeno. Søren Kierkegaard lembra que o amor é uma decisão renovada, não um estado permanente. Para Simone de Beauvoir, o vínculo amoroso exige transcendência: não basta amar, é preciso fazer o amor existir no cotidiano. E Byung-Chul Han, ao tratar da “sociedade do cansaço”, mostra como casais se distanciam porque chegam ao fim do dia exauridos demais para sustentar a conversa que sustenta a relação. Exaustão espiritual é, muitas vezes, o nome moderno para o silêncio conjugal.

A dívida de intimidade nasce quando o casal para de se reconhecer mutuamente como sujeitos.

  • Quando a conversa vira troca de funções;
  • Quando o toque vira protocolo;
  • Quando o olhar já não pergunta nada.

Na visão sistêmica de Virginia Satir – que conferi em audiobook – relações se deterioram quando as mensagens deixam de ser claras e congruentes. O outro deixa de ser um parceiro e passa a ser um “intérprete de sinais”, alguém que tenta adivinhar o que não foi dito. A dívida se torna impagável quando um fala de necessidades e o outro responde com defesas; quando um pede presença e o outro entrega justificativas; quando um oferece vulnerabilidade e o outro devolve ironia.

A intimidade é, portanto, uma economia afetiva. Toda relação tem depósitos (acolhimento, escuta, cuidado, curiosidade, respeito) e retiradas (conflitos, ausência, frieza, críticas). Os casais que permanecem juntos não são os que não brigam, mas os que mantêm saldo positivo — aqueles em que há mais reparação do que ruptura, mais reconhecimento do que cobrança, mais presença do que desempenho.

O divórcio, quando chega, é apenas a materialização institucional de uma falência emocional anunciada há muito tempo: é o momento em que a dívida deixou de ser negociável.

Por isso, antes que a dívida de intimidade vire uma cobrança de divórcio, é preciso retomar a conversa, reabrir a escuta, renovar os pequenos rituais que aquecem o cotidiano. Amar não é garantir a ausência de conflitos; amar é impedir que o silêncio se torne maior do que a vontade de permanecer.

A pergunta decisiva não é “o amor acabou?”, mas “quando foi a última vez que investimos na intimidade que sustenta esse amor?”. A resposta sincera a essa pergunta é, muitas vezes, o primeiro passo para reequilibrar a conta afetiva — e salvar o que ainda pode florescer. “Somente o amor que se expressa em serviço floresce eterno.” – Emmanuel, Chico Xavier.