A vida como ela é
02 janeiro 2015 às 19h38

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Recorrendo ao nonsense e à escatologia, os contos de “Um Homem Burro Morreu” fazem retrato fiel dos desconcertos que dirigem os tempos modernos

Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção
Qual a sua ideia de diversão? Postar-se diante do computador e contemplar, num portal de notícias que monitora celebridades, uma sequência de fotos de um ator recolhendo o cocô do cachorro? Assistir a um seriado onde pessoas se dispõem a acidentes, esmurram-se, urinam sobre outras, e gargalhar disso? Compartilhar, nas redes sociais, fotos e vídeos de corpos brutalmente ceifados?
Ian Wharton tem, em suas aventuras, intenções parecidas. O executivo é o personagem-narrador do romance “Minha Ideia de Diversão”, do inglês Will Self, cujo contentamento deriva, para pouparmos os leitores mais sensíveis, de métodos que envolvem mendigos, decapitamentos e penetrações. Self persegue o choque a cada linha, operando no limite no qual as visões deturpadas do cotidiano parecem prontas a afundar no subsolo dos delírios. No entanto, por trás deste anteparo erguido com o que há de mais sórdido, estapafúrdio e demoníaco, pulsa uma crítica mordaz à sociedade moderna, ao circo de terrores que pagamos para ver mas também protagonizamos, estrelando uma rotina na qual a carnificina não causa mais surpresa, o escândalo se tornou banal.
Aqui no Brasil, no campo da teoria e da análise social, a espetacularização do grotesco é bem problematizada por nomes como o professor Muniz Sodré e o jornalista Eugênio Bucci. A ficção, que costuma recorrer ao gênero fantástico para falivelmente tratar do tema, agora ganha narrativas providas de uma engenhosidade hiperbólica na coletânea “Um Homem Burro Morreu”, de Rafael Sperling. O jovem autor carioca mune-se das ferramentas corretas para revelar o nonsense, a violência e a escatologia que reinam sobre a natureza dos dias que existimos com normalidade.
O livro se inicia com um soco potente na celebrização do nada. Em “Caetano Veloso se prepara para atravessar uma rua do Leblon”, inspirado na notícia (?) de um site, o próprio artista baiano articula uma série de atos triviais, como alcançar a outra margem da calçada, almoçar, usar o banheiro, escoltado por uma voz num plano superior que tem a indiscrição e o interesse semelhante a de um paparazzo. Gradualmente o grotesco vai tomando as rédeas da narrativa, na mesma proporção que o nível de voyeurismo, o fascínio pelo torpe, pelo macabro, inerente ao ser humano. Sperling leva tudo às últimas consequências. Em seus contos, o excesso é utilizado em efeitos de solução, ainda que desconcertantes, tais quais os episódios de perversidade gratuita que nos rodeiam.
É o caso de “Eu queria comprar pão”, em que um pedido comum é o gatilho para uma fúria assassina, e “Insônia”, sobre um menino chacoteado pelos amigos da escola, por conta de sua timidez perante as garotas, que maquina formas violentas de revide, enquanto seus pais mantêm uma sonora relação sexual no quarto vizinho. As fantasias de surra da criança se misturam ao linguajar pornográfico dos adultos, elevando a tensão a um encontro inesperado no qual a incidência do bizarro produzirá um resultado transformador. O trauma, pretende ironizar o autor, também serve para construir.
O humor, aliás, tonaliza grande parte das narrativas. Um humor indecoroso, sardônico, cáustico, que serve a uma prosa tecida por um fraseado que, evocando a expressão do momento, não se submete ao “politicamente correto”. Exatamente o oposto disso. Quando sinaliza influência cartunesca, ao exemplo do conto “Bêngolas na minha estratosfera real”, em que um sujeito é sugado pela privada e cuspido numa outra dimensão, seus componentes imagéticos parecem emprestados de uma tira do espanhol Joan Cornellà. Já quando emula um palavreado pueril, presente em “Eu gosto das histórias que a minha babá conta” e “Sonhos de Gleretribo”, este cabe às crianças de “Quando os Adams Saíram de Férias”, de Mendel W. Johnson. Tudo é dirigido por uma brutalidade que distorce e eletrifica as sensações a uma voltagem fulminante, conforme em “Emoção”, sobre um casal que chora compulsivamente, e no conto que intitula o livro, tal visto no trecho: “Havia um homem tentando ligar a sua torradeira e não conseguindo. Ele ficou triste e morreu”.
Sperling ainda direciona sua metralhadora para a redoma deificada na qual muitos conservam a literatura. Seja numa versão sacana de um conto dos irmãos Grimm, em “A Branca de Neve era um tanto bonita”, ou no pastiche para com autores clássicos, do quilate de Dante Alighieri e de Franz Kafka, passando por Julio Cortázar e pela literatura contemporânea brasileira (“Eles Eram Muitos Cavalos”). A senha está no epílogo. Se até as linhas derradeiras do último conto, o leitor ainda ache que o que se passou tem a despretensão característica de um desbunde, ali está a resposta: “Ok. Eu vou fazer um texto bem bonito. Eu aprendi que as pessoas gostam de coisas bem bonitas, então farei um texto bem bonito, para agradar as pessoas. Não tenho muita certeza de como fazer isso, mas vou tentar. Ok, vamos lá. Vou tentar começar. Era uma vez…”.
Combinando Kafka, sacanagem e o mais rasgado verbo, Sperling se distingue, com louvor, dos seus pares literários, proporcionando uma experiência radical de leitura que não cede espaço para a indiferença. Um mergulho nas profundezas do homem moderno, desumanizado e histérico, que, nas paredes encrespadas da sua caverna, representa não uma visão distorcida da realidade, mas um desenho fiel da realidade distorcida em que todos vivemos.
Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Queda da Própria Altura” e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc.