Samurai da escrita breve, Marcio dos Santos mais parece um primo distante de Dalton Trevisan

18 junho 2016 às 11h41

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Em seu novo livro, o contista curitibano utiliza do humor que desconcerta e provoca estranhamento para tratar de questões complexas do tempo presente

Antonio Cescatto
Especial para o Jornal Opção
Um engenheiro descobre que seu chefe vai abandonar a empresa e sonha em ocupar o lugar que era dele. Outro homem, sentado em um café, vê passar uma mulher e tem a impressão de que ela é a mãe de seu melhor amigo, que desapareceu durante a passagem do tempo. Um terceiro desce de seu apartamento para comprar cerveja no dia em que o Brasil enfrenta o México, na Copa, e vê os porteiros do seu prédio brigando. Outro homem pensa em enviar uma carta antes de entrar no trabalho. Alguém espera um ônibus que pode chegar a qualquer momento.
O que pode haver de inesperado, curioso ou surpreendente em situações como essas? Aparentemente, nada. Mas essa aparente normalidade de uma situação (e da vida) cotidiana logo é perturbada de forma irreversível. De repente, sem que percebamos claramente de onde veio o choque, o transtorno, a interferência, eis que o inesperado, o curioso e o surpreendente instauram sua presença no meio do texto. Ele está entre nós. E esse entre nós não é apenas o entre nós deles, os personagens, mas o entre nós que permeia nossas vidas.
O tempo
“Finalmente hoje”, de Marcio Renato dos Santos, é um livro que tem esse dom: instaurar o estranhamento onde ele parece absolutamente ausente. Cada um de seus personagens é um Robinson Crusoé urbano, perdido nas ilhas de isolamento em que se transformou a vida nas grandes cidades, a perseguir de forma desconexa a pista de sextas-feiras imaginárias, sejam elas uma carreira, uma mulher, um homem, ou algum destes inumeráveis algos que não conseguimos explicar.
Em 14 contos sintéticos e lacônicos, Marcio leva o leitor a reencontrar personagens que são familiares não pelo que fazem ou vivem, mas pelo que representam e significam em nosso imaginário. Ao mesmo tempo em que são concretos, também são fantasmas. Nossos queridos fantasmas. Aqueles que amamos odiar ou que odiamos amando, aqueles com os quais só a literatura, a boa literatura, com sua capacidade de falar de coisas a respeito das quais não se fala e de sentimentos indizíveis, é capaz de revelar em toda sua complexa realidade.
De certa forma, mesmo sendo pontuado por personagens dos mais diferentes, “Finalmente hoje” parece ter um personagem principal: o tempo, este criador de perspectivas distorcidas e realidades difíceis de definir. Prova disso é como são nomeadas as seis seções em que os contos são divididos: Quase Agora, Já Passou ou É Daqui a Pouco?, Nunca Mais, Muito Antes de Antes de Ontem, Num Outro Agora e 2016, seção que tem apenas um conto que acaba, finalmente, hoje. O que parece ter passado continua presente, o que parece presente continua passado, mesmo amanhã já foi e assim por diante, num jogo circular e hipnótico para o qual somos arrastados de forma sutil e habilidosa.
Para nos levar por estes estranhos caminhos do tempo e de suas metamorfoses na vida humana, Marcio utiliza de um recurso básico: o humor. Mas o humor que forma a medula do livro não é aquele que leva à facilidade do riso ou ao conforto da cumplicidade. Aqui estamos diante de um humor que tem a função de desconcertar e criar o estranhamento, transformando até situações grotescas, como a de um casal em um curioso coito, ou um sujeito dado a flatulências, em intrigantes charadas existenciais, a serem resolvidas — ou não — pelo leitor, através de outro recurso muito caro ao humor: a inteligência.

Daltoniano
Mesmo morando em Curitiba e concentrado feito um samurai na escrita de contos breves, Marcio Renato dos Santos é, ao contrário do que possa parecer, um parente distante de Dalton Trevisan. Sua escrita e seu trabalho percorrem outros caminhos. De “Minda-au” (2010), passando por “Golegolegolegolegah!” (2013), “2,99” (2014), “Mais laiquis” (2015) até este recém-publicado, “Finalmente hoje”, o apuro na concepção formal e o compromisso com a invenção (elementos daltonianos por excelência) desenvolvem-se em outra direção.
Tais elementos trazem, para o primeiro plano, a realidade de uma cidade que se fragmenta em mil pedaços e em mil diferentes tipos de seres humanos; estes envolvidos em situações que só podem ser compreendidas por dispositivos novos, tais como: a veia satírica, o humor afiado, através dos quais se revela a dimensão da fragilidade de que somos todos (criador, criatura e leitores) constituídos.
Ao introduzir o tempo nesta equação (como faz agora, em “Finalmente hoje”), Marcio nos convida para um baile onde todos os convidados usam máscaras, as quais vão caindo uma a uma à medida em que o baile se desenvolve, deixando ver, atrás dessas, outras e mais outras e mais outras e mais outras. Eu, se fosse você, aceitava o convite para essa dança. l
Antonio Cescatto é autor do romance “O mundo não é redondo” (2010) e das novelas “Preponderância do pequeno” (2011) e “Cloaca” (2012). Ele nasceu e vive em Curitiba (PR)
Leia um trecho de “Pimenteira”, o primeiro conto do livro “Finalmente hoje” de Marcio Renato dos Santos

Péricles olha a pimenteira seca. Não sabe se é a quinta, a sexta ou a sétima. Há alguns anos, decidiu comprar a planta. O objetivo não era decorar a cozinha nem cultivar tempero forte. O engenheiro estava em busca de um bloqueio para o mau-olhado. Foi promovido e tinha a impressão de despertar inveja.
Há uma semana que os colegas comentam nos corredores e nos banheiros da empresa que o Bruno, o superintendente, deve deixar o cargo. Péricles tem a sensação de que pode conquistar a vaga e, para atingir o objetivo, precisa de uma nova planta, dessas que filtram energias negativas.
Bruno e Péricles se conheceram no curso de engenharia química e continuaram colegas na pós-graduação. Quase no mesmo período, foram contratados por uma empresa de biotecnologia especializada na produção de enzimas. Já nos primeiros meses de trabalho, Péricles conquistou um cargo de direção. Bruno trabalhou quase uma década até ser promovido a diretor-geral e, em seguida, a superintendente.
Apesar da proximidade, cada um avalia a relação de um jeito. Bruno considera Péricles um parceiro. Péricles enxerga em Bruno um colega, no caso, um adversário. Na universidade e nos primeiros anos de empresa, fizeram trabalhos em conjunto. Uma vez em cargos de direção, os dois davam a entender que, acima de tudo, os fins justificam os meios.
Jonas, Cícero, Thomas e outros colegas achavam que Bruno até pensava na empresa, enquanto Péricles parecia estar focado nos benefícios que ele, e apenas ele mesmo, poderia conquistar.
Após anos de competição sutilmente estimulada pelos proprietários, o que se traduziu em perda de cabelo, aumento de peso e desgaste emocional para os diretores, Péricles tem a esperança de, enfim, assumir o cargo máximo da empresa.