Livro revela que Fernando Henrique ajudou Lula a se aproximar do presidente George Bush

13 setembro 2014 às 10h50
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Para evitar o fracasso do real, o líder tucano procurou o petista, abriu as portas para sua equipe, o que possibilitou uma transição produtiva, e pôs seus principais auxiliares para aproximar Lula do presidente americano. FHC agiu como estadista, admite guru petista

Em tempo de eleição, quando os adversários políticos deixam de ter valor, nada mais saudável do que ler o livro “18 Dias — Quando Lula e FHC se Uniram Para Conquistar o Apoio de Bush” (Objetiva, 289 páginas), de Matias Spektor, professor da Fundação Getúlio Vargas e doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Oxford. O título, embora sedutor, reduz o conteúdo da obra, que é mais amplo. O presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, tratou o candidato e, depois, o eleito Lula da Silva de maneira cordial e, sobretudo, institucional — não como rival político.
Eleito Lula, em 2002, o que faria o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush? Petistas e integrantes do governo norte-americano tinham dúvidas sobre se Bush ligaria para o brasileiro. “Ninguém duvidava de que Bush ligaria para Serra se ele ganhasse, mas ele ligaria para Lula? O sentimento em Washington era o de que Bush não ligaria imediatamente, ele esperaria”, disse a embaixadora americana no Brasil, Donna Hrinak. Conservadores americanos esperavam que Bush deixasse Lula na geladeira. Hrinak discordava: “Vocês precisam ligar. Liguem assim que possível porque isso vai significar muito por aqui”.
Bush não sabia praticamente nada sobre Lula, que americanos já haviam chamado de “aiatolula tropical”. Mas a Carta ao Povo Brasileiro, que havia sido lançada em junho de 2002, agradara conservadores dos Estados Unidos, porque o petista garantiu que “honraria dívidas, contratos e obrigações financeiras. O PT apropriaria as políticas econômicas de Fernando Henrique, como câmbio flutuante, superávit primário, metas de inflação e responsabilidade fiscal”. Jornais americanos passaram a chamá-lo de “ex-revolucionário” (“Los Angeles Times”) e um “esquerdista com um toque de livre-mercado” (“Washington Post”).
Convencido da importância do Brasil, Bush ligou: “Alô, senhor presidente eleito!” Lula respondeu: “Bom dia, presidente Bush!” O americano acrescentou: “Se o sr. estiver interessado em que eu o receba em Washington, a qualquer hora, estou ansioso para conhecê-lo”. O brasileiro replicou: “Eu tenho o maior interesse de visitar os Estados Unidos. (…) Presidente, espero que nos vejamos até o fim do ano”. Lula ficou “exultante”. “A equipe de Bush”, afirma Spektor, “ficou surpresa com a ousadia” do brasileiro e com o fato de Bush ter aceitado a proposta de imediato. “Lula foi muito inteligente”, disse John Maisto, o embaixador responsável pela América Latina.
No dia 29 de outubro de 2002, FHC e Lula se encontraram, a sós, por 55 minutos. “Ninguém sabia que, nos bastidores, suas respectivas equipes estavam costurando uma fórmula conjunta para lidar com o governo de George W. Bush durante os dois meses da transição que acabavam de começar”, escreve Spektor.
Agora, se Lula agradara Bush, dada sua ousadia, Fernando Henrique Cardoso, quando presidente, não tinha a simpatia do americano. O brasileiro era visto, pela equipe de Bush, como adversário de sua política externa. Um mês depois do 11 de setembro, FHC disse: “A barbárie não é somente a covardia do terrorismo, mas também a intolerância ou a imposição de políticas unilaterais em escala planetária”. Spektor revela que “os diplomatas americanos responsáveis por lidar com Brasília ficaram furiosos”. Dois dos mais importantes auxiliares de Bush, Otto Reich e Roger Noriega, avaliavam FHC como “um homem de esquerda que se recusava a desmontar o arcabouço nacional-desenvolvimentista que herdara de seus antecessores”. Para petistas, dadas as privatizações, Fernando Henrique era a besta fera do neoliberalismo.

de economia e política
Em seguida à visita a FHC, em Brasília, Lula encontrou-se, em São Paulo, com a embaixadora Donna Hrinak. “Quero trabalhar com os Estados Unidos”, disse o petista, que a recebeu sozinho. “Nós queremos trabalhar com seu governo também”, respondeu a americana.
O “Washington Post” havia feito uma crítica ao suposto populismo de Lula e Donna Hrinak tranquilizou-o: “O sr. não deve se pautar pela imprensa americana. Bush é mais otimista a respeito do seu governo do que os jornais. O importante é evitar surpresas negativas”. O tom, avalia Spektor, era de “alerta”. Lula entendeu e disse: “Não haverá surpresas, meu governo não será ideológico”.
Spektor anota que “Lula garantiu que pretendia jogar duro em negociações comerciais com a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), mas que o PT honraria todos os compromissos assumidos pelos tucanos”. Lula ressaltou: “Eu tenho uma excelente relação com o presidente Fernando Henrique Cardoso”.
Sobre Cuba, Lula disse à embaixadora: “Eu defendo a liberdade política e econômica para todos os povos, e hoje em Cuba não há liberdade”. O comentário de Lula, à luz do que os governos petistas fizeram e fazem para alongar a ditadura cubana, soa falso.
O primeiro interlocutor de Donna Hrinak não foi Lula, e sim José Dirceu, que a convenceu que, no poder, o PT não pretendia fazer nenhuma revolução. A embaixadora via o cérebro do PT como moderado, confiável e “focado”. O mensalão o apequenou, mas José Dirceu tem de ser visto, por uma questão de justiça histórica, como o político que contribuiu, de maneira decisiva, para Lula e o PT chegarem ao poder. Ele é um dos principais, senão o principal, moderadores tanto de Lula quanto do PT.
Antes das eleições, José Dirceu decidiu visitar os Estados Unidos para explicar qual era de fato o projeto do PT e Lula. “Pediu apoio a Mario Garnero, dono do Brasilinvest, o mais pró-americano dos banqueiros do país. Era o único brasileiro com acesso direto à família Bush.” José Sarney o pôs em contato com o presidente da Alcoa, Alain Belda. Sobretudo, “antes de viajar, Dirceu combinou o jogo com FHC. A campanha petista foi aos Estados Unidos em coordenação com o Planalto tucano”. FHC e José Dirceu mantinham encontros frequentes. “Dirceu entrava nos palácios presidenciais pela porta dos fundos ou no meio da noite para não ser visto pela imprensa.”
Em julho de 2002, “sem falar nem entender inglês”, José Dirceu chegou aos Estados Unidos para tentar “abrir” as portas para uma possível governo do PT. Lá, conversou longamente com setores importantes da iniciativa privada e do governo Bush. Temia-se uma fuga de capitais, se Lula fosse eleito. José Dirceu tranquilizou o capitalismo americano: Lula, no poder, seria moderado e daria segurança jurídica aos negócios. “O governo americano recebeu Dirceu com um pé atrás”, conta Spektor. Porém uma funcionária do setor de inteligência ressalvou ao pesquisador: “… havia gente jogando a bola na direção certa, e Dirceu provou ser essa pessoa”.
O embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Rubens Barbosa, que era muito ligado a FHC, convenceu-se da sinceridade dos propósitos de José Dirceu. “Quem apostar contra a estabilidade econômica em um governo do PT vai perder dinheiro”, passou a dizer o diplomata nas palestras feitas nos Estados Unidos. “A viagem foi exitosa porque Dirceu desarmou o centro de maior resistência ao PT”, anota Spektor.
Roger Noriega, depois da visita de José Dirceu, mudou sua opinião sobre o petista-chefe: “Lula era um democrata. O Brasil tinha instituições fortes. Terminamos dando-lhe o benefício da dúvida”.
Antônio Palocci, tido como grande operador de bastidores do PT junto ao empresariado, encontrou-se com o embaixador Rubens Barbosa. Orientado pelo presidente FHC, o diplomata estava ajudando a montar uma agenda para Lula nos Estados Unidos.
A transição
A transição do governo tucano para o governo petista foi a mais tranquila possível, apesar de certas crises. Depois de estudar a bibliografia internacional, a equipe do ministro Pedro Parente criou um processo de transição avançado. “Adaptando o esquema utilizado nos Estados Unidos, o Planalto criou 50 cargos públicos para os indicados do presidente eleito, que seriam albergados em um prédio reformado e teriam acesso a carros oficiais, secretárias, móveis e um sistema próprio de telecomunicações”, relata Spektor.
A “intimidade” entre FHC e petistas, como Lula, era tanta que o presidente chegou até “a insinuar uma possível colaboração entre PT e PSDB, ideia rapidamente descartada por Lula”.
Em setembro de 2002, antes das eleições, Pedro Parente esteve nos Estados Unidos e apresentou o plano de transição a Joshua Bolten, na Casa Branca. “Seguindo instruções de FHC, Parente disse a Bolten que as intenções de Lula eram legítimas e que, se ganhasse, o governo do PT honraria a Carta ao Povo Brasileiro. O gesto era extraordinário. Ao dizer aquilo, Parente estava sinalizando ao governo a confiança de FHC em uma futura gestão Lula”, historia Spektor. José Serra? Foi “cristianizado”.
Lula aprovou o estadismo de FHC. Ao então primeiro-ministro britânico Tony Blair, o petista disse: “O presidente Fernando Henrique Cardoso jogou um papel importante nesta eleição. Primeiro funcionando como magistrado, segundo criando uma comissão de transição jamais vista em nosso continente”.
Em 1º de novembro de 2002, o jornal “Los Angeles Times” publicou: “Durante os últimos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, a dívida pública brasileira cresceu de 29% para mais de 62% do produto interno bruto. Esse acúmulo não é sustentável; ou a taxa de juros cai ou o governo terá de renegociar sua dívida”. Lula assustou-se e, “para reverter o clima alarmista do mercado, começou a trabalhar em sintonia com Fernando Henrique. Instruiu sua equipe a aderir à guerra de marketing tucana contra a ideia de que o Brasil poderia dar um calote na dívida. (…) Foi para espalhar a mensagem de tranquilidade lá [em Wall Street e Washington] que Palocci se aproximou da equipe econômica de FHC”.
Armínio Fraga, hoje na equipe do candidato a presidente da República pelo PSDB, Aécio Neves, era o presidente do Banco Central. Agora é demonizado pelo PT por ser aliado do tucano — chegou a ser apresentado como futuro ministro da Fazenda —, mas, na época, Armínio e Palocci se deram bem e “entraram em sintonia no dia em que se conheceram. O petista foi logo avisando que o compromisso de Lula com a estabilidade era para valer”. Palocci disse a Spektor: “[Armínio] se mostrava sinceramente disposto a apresentar alternativas criativas para o novo governo”. A preocupação com a crise era tanta, revela Spektor, “que Lula chegou a pensar na possibilidade de manter Armínio à frente do Banco Central durante os primeiros meses de governo”. A indicação de Henrique Meirelles, goiano que chegou a presidente do BankBoston, nos Estados Unidos, talvez se explique porque, como não pegava bem manter um executivo ligado ao tucanato, estava se optando por outro americanófilo.
Por que, exatamente, Fernando Henrique ajudou Lula, pondo a máquina federal a seu serviço e facilitando a aproximação com Bush? A análise de Spektor: “FHC não agiu por benevolência ou simpatia pessoal por Lula, mas puro cálculo político. A sobrevivência do real e do programa tucano de reformas sociais dependia da aceitação, nos mercados internacionais, de um governo brasileiro de esquerda. FHC apelou para os Estados Unidos em nome de Lula porque a economia se encontrava na berlinda, e uma transição instável poderia destroçar seu maior legado: a moeda estável”. Pelo menos FHC não apostou no “quanto pior, melhor”. O fracasso do governo Lula, afinal, seria positivo, eleitoral e politicamente, para o tucanato. Não resta dúvida de que o tucano se comportou como estadista.
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