“Nossas crianças são mais do que suas deficiências, e quando apoiadas podem transformar a sociedade”, afirma presidente da APC+

22 janeiro 2024 às 08h34

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No território brasileiro, diversas leis foram estabelecidas visando a proteção das crianças com deficiência. As normativas desempenham papel crucial ao assegurar que os pequenos tenham acesso a oportunidades e possam desfrutar plenamente de seus direitos, equiparando-se às crianças sem deficiências. Esses direitos incluem o acesso à educação, saúde, lazer, cultura e esporte. De acordo com o UNICEF, aproximadamente 240 milhões de crianças em todo o mundo vivem com alguma forma de deficiência, sendo que no Brasil esse número chega a pelo menos 3,5 milhões.
Os dados mais recentes do Censo do IBGE revelaram que 7,5% da população de até 14 anos apresenta condições físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais que podem influenciar seu desenvolvimento ou interação social. Essas crianças enfrentam diariamente uma série de desafios, tais como a falta de acessibilidade em espaços públicos, a discriminação e a carência de acolhimento em ambientes escolares, comerciais e nos serviços de saúde.
Diante dessas adversidades, torna-se ainda mais crucial promover e discutir a inclusão, buscando construir uma sociedade que valorize a diversidade e garanta igualdade de oportunidades para todas as crianças. Em entrevista exclusiva ao Jornal Opção, Luciana Prudente de Carvalho Vieira, que é presidente da Associação de Acolhimento à Pessoa com Paralisia Cerebral e outras Deficiências (APC+) fala sobre os desafios da inclusão. Luciana destaca a necessidade urgente de reconhecer que a inclusão vai além de simples normativas; é sobre ouvir, entender e agir.
“Nossas crianças são mais do que suas deficiências, elas são portadoras de potenciais incríveis que, quando apoiadas e compreendidas, podem transformar suas próprias realidades e a sociedade como um todo”, reflete Luciana. Ela é mãe de uma criança com paralisia cerebral, advogada dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Presidente da Associação de Acolhimento à Pessoa com Paralisia Cerebral e outras Deficiências (APC+). Além disso, também é Vice-Presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência – OAB/GO.
A Associação tem como objetivo acolher as famílias de pessoas com deficiência, orientando em seus direitos, além de prestar apoio no cerne da saúde e acolhimento assistencial. De acordo com Lucia,a hoje, a APC+ encontra-se com em torno de 200 famílias de pessoas com deficiência associadas.
Como começou o trabalho na Associação e como é o apoio prestado às mães de crianças com deficiência?
Resposta: A Associação surgiu da minha experiência como mãe de uma criança com paralisia cerebral. Inicialmente focada nessa condição, expandimos para atender outras mães. Oferecemos acolhimento e assistência, especialmente para famílias financeiramente vulneráveis, buscando preencher lacunas e promover inclusão em diversas áreas.
Minha filha está prestes a completar 12 anos. Ela sofreu uma falta de oxigenação no nascimento, resultando em paralisia cerebral, uma lesão cerebral que deixou sequelas. Essa condição é incurável, requerendo tratamento contínuo. Além dela, tenho uma filha de 5 anos sem deficiência. Há mais de uma década, comecei a explorar o mundo que considero atípico, um universo desconhecido para mim.
Como advogada, iniciei minha jornada frequentando terapias, centros terapêuticos, fisioterapia e terapia ocupacional necessárias para minha filha. Conheci diversas mães e percebi a necessidade delas por apoio e orientação jurídica na área dos direitos das pessoas com deficiência. Decidi me especializar nesse campo e surgiu a ideia de fundar a APC+ (Associação de Acolhimento da Pessoa com Paralisia Cerebral). Inicialmente, a associação foi focada na paralisia cerebral, depois expandimos para atender outras mães que buscavam ajuda.
Oferecemos acolhimento e assistência, especialmente para famílias em situação financeira vulnerável. Atualmente, atendemos mais de 200 famílias, a maioria com crianças ou adolescentes com paralisia cerebral, mas também estendemos nosso suporte a outras deficiências. Nosso grupo de três mulheres, todas mães de crianças com deficiência, possui diferentes especialidades, incluindo fonoaudiologia, análise do comportamento, sociologia e advocacia. Realizamos palestras com profissionais de saúde, grupos terapêuticos com psicólogos e oferecemos orientação jurídica.
Além disso, promovemos cursos para capacitar profissionais, como monitores escolares, visando integrar as crianças com deficiência na sociedade, especialmente no ambiente escolar regular. Acreditamos que a inclusão vai além de criar “grupinhos” isolados, buscando espalhar a diversidade para ser absorvida pela sociedade em sua totalidade.
Quanto à adaptação da sociedade às necessidades das pessoas com deficiência, certamente enfrentamos desafios, como a questão das vagas de estacionamento, onde a falta de respeito pela sinalização pode prejudicar o acesso. Infelizmente, ainda enfrentamos preconceito, mas é crucial continuar avançando e promovendo a inclusão.
Como está a saúde mental das mães de crianças com deficiência?
A mãe da criança com deficiência ela não tem uma rede de apoio para que ela consiga trabalhar. O que acontece? Essa mãe normalmente não tem renda e aí ela vai em busca do BPC [Benefício de Prestação Continuada]. Para ter o benefício, elas não podem ter carteira assinada. Então muitas mães nem buscam o benefício porque elas precisam trabalhar. Muitas vezes ela fica com a criança e recebe o benefício, mas a gente sabe que para uma pessoa que recebe um salário mínimo é quase impossível dar uma boa condição de vida para uma criança com deficiência com esse valor. Além do mais, a grande maioria dos pais de criança com deficiência deixam essas mães. O que a gente tenta, em conversas com o Poder Público, é a necessidade de um benefício para o cuidador, que na maioria das vezes é a mãe.
Houve avanços na atenção às pessoas com deficiência com a nova gestão?
Embora haja um olhar mais humanizado, observamos mais promoções do que ações efetivas. O programa Viver Sem Limite foi lançado recentemente, e aguardamos para ver como será implementado na prática.
Você tem acompanhado o BBB? Acha que colocar uma pessoa com limitação física para realizar aquelas atividades sem a adaptação necessária é inclusão, de fato, ou somente marketing?
A participação no BBB sem as adaptações necessárias parece ser mais uma estratégia de marketing do que inclusão real. É crucial ouvir as pessoas com deficiência, entender suas necessidades e implementar adaptações para uma inclusão genuína. Primeiro, a gente tem normativas, até ABNT, principalmente essas barreiras artitetônicas, mas como que se faz? Perguntando a pessoa com deficiência, ouvindo. O deputado tem que ouvir, tem que enxergar e ouvir. E mesmo as empresas, as grandes empresas que empregam pessoas com deficiência, que recebem pessoas com deficiência, elas precisam ouvir. Quais são as necessidades? Ouvir assim, ou se a gente quer dizer peito aberto, ouvir, entender e executar aquilo.
Porque não é luxo, não é privilégio, são adaptações para que essa pessoa chegue a ser vista e ser entendida como um cidadão que tem todos os seus direitos e garantias como qualquer outro. Então acho interessante isso mesmo, de perguntar para as pessoas com deficiência. O que você quer ver numa escola, o que você quer ver no hospital, o que você quer ver no geral, né? Eu acho que é ter a participação da pessoa com deficiência nos lugares e nos debates públicos. Elas estarem presentes. Elas precisam ser ouvidas.
Os colégios têm equipe para atender crianças com deficiência?
No ano passado, o Estado retirou os professores de apoio nas escolas públicas estaduais, resultando em uma situação precária para as crianças com deficiência. Profissionais não especializados foram designados, comprometendo a qualidade do ensino e a inclusão escolar. São pessoas profissionais que normalmente é um curso de inclusão, sabiam atender essas crianças, toda a parte pedagógica, que precisa muitas das vezes de uma comunicação alternativa, de um tempo maior, de um currículo adaptado, de um plano especializado individual. Então, assim, o Estado tirou esses profissionais e aí colocou profissionais do administrativo pra trabalhar com essas crianças. Viu que não trabalha, é um profissional pra cinco crianças cada uma numa sala da escola. Isso nos colégios estaduais? Nos colégios, nos que tem, muitas crianças, a gente fala, virou samambaia lá na sala, vai lá pra passar o tempo, porque foi enfeitar, porque aprender mesmo não aprende.
O aprender ele não acontece, entende? Estamos em meio a essa batalha, pois, na realidade, a legislação brasileira não menciona explicitamente o papel do professor de apoio. Contudo, dado que o Estado tinha essa disposição, parece que estamos perdendo um direito, entende? Além disso, a alegação de que isso causaria prejuízo orçamentário é bastante limitada. Quando um professor recebe aumento, é importante considerar quantos professores de apoio estavam vinculados a ele. Isso não acarreta prejuízo financeiro. Não compreendo a necessidade de retirar ou adicionar, mas, enfim, essas crianças estão enfrentando sérios problemas de adaptação, e ainda há a questão do vínculo com os professores, perdido nas escolas particulares.
Os médicos que elaboram laudos explicando a necessidade de acompanhamento especializado para essas crianças são fundamentais para que isso ocorra. No entanto, nem todas as escolas, sejam públicas ou privadas, estão atendendo a essa demanda. As mães enfrentam dificuldades significativas, como evidenciado por um caso recente em que o Ministério Público foi acionado devido à falta de profissionais na rede municipal.
No que diz respeito à Lei Brasileira de Inclusão, ela não menciona especificamente o professor de apoio, mas sim um profissional especializado. Este profissional deve possuir um conhecimento aprofundado sobre as questões relacionadas às pessoas com deficiência, incluindo organização de material escolar, aspectos pedagógicos e adaptações necessárias. Infelizmente, tanto em escolas particulares quanto em públicas, isso não tem sido uma prática comum.
A associação almeja oferecer cursos de capacitação para profissionais nesse campo, não apenas no ambiente escolar, mas em diversas áreas. Há uma lacuna de preparo em setores como a saúde, onde muitas vezes não há leitos especializados ou profissionais capacitados para atender pessoas com deficiência. A legislação garante o acompanhamento, mas a falta de conhecimento muitas vezes impede a entrada do acompanhante nos hospitais.
Além dos desafios, é importante destacar as conquistas dos últimos anos nesse setor, como a Lei Brasileira de Inclusão e a ampliação das terapias cobertas por planos de saúde. A nível municipal, embora desafiador, existem projetos de lei em andamento para garantir um tratamento diferenciado e profissionais de apoio verdadeiramente especializados. A luta persiste, e é crucial reconhecer tanto os problemas quanto as soluções para não se concentrar apenas na desesperança.