Colaborou Amanda Costa

Um dos maiores paradoxos da sociedade contemporânea é a forma como o corpo feminino, simultaneamente hipererotizado e represado, navega entre a exploração e o apagamento do desejo. Enquanto a mídia frequentemente vende uma sexualidade feminina performática e voltada para o outro, a realidade íntima de milhões de mulheres conta uma história diferente, marcada por desconhecimento, culpa e silêncio.

Dados da Associação Brasileira de Estudos em Medicina e Saúde Pessoal (ABEMSS), de 2023, mostram que mais de 50% das mulheres brasileiras nunca experimentaram um orgasmo na vida. E este não é apenas um dado estatístico, mas sim um reflexo de uma herança misógina que trata o prazer feminino como tabu, um território proibido mesmo para quem o habita.

Contudo, a força da resistência feminina, que permeia como as flores entre o cimento, silencioso e potente, ganha força a partir do autoconhecimento, e, curiosamente, do auxílio de pequenos objetos vibrantes.

A fala descontraída da apresentadora Angélica, de 52 anos, na última quarta-feira, 10, sobre sua coleção de vibradores e sobre a abertura do marido, Luciano Huck, ao tema, abriu espaço para uma conversa que já acontece em consultórios, lojas especializadas e, cada vez mais, nos grupos de amigas.

Para entender as camadas dessa transformação, o Jornal Opção conversou com duas mulheres que, de frente distintas, trabalham para ressignificar a sexualidade feminina: a psicóloga e sexóloga clínica Flávia Nascimento e a empreendedora Calianer Paglia, fundadora da rede de sex shops Quente Caliente, eleita seis vezes a melhor do Brasil.

Cuidar da saúde sexual feminina é um passo de libertação

Flávia Nascimento, psicóloga e sexóloga clínica com 16 anos de atuação, 14 deles dedicados ao estudo da sexualidade humana, observa na prática o peso histórico que as mulheres carregam. Para ela, a fala pública de uma figura como Angélica não é um ponto isolado, mas parte de um movimento mais amplo e necessário. “A sexualidade feminina foi historicamente controlada e silenciada, com o corpo da mulher sendo tratado como propriedade do homem e não como fonte de autonomia e prazer”, analisa.

“Falar de empoderamento feminino associado à sexualidade ainda é um tema sensível, carregado de tabus. Hoje – especialmente quando nomes públicos como Angélica trazem o tema à tona – é possível continuar um movimento de libertação que vem sendo construído há séculos.”

Flávia Nascimento | Foto: Divulgação

Esse movimento, segundo Nascimento, passa inexoravelmente pelo autoconhecimento. Ela percebe um crescente número de mulheres buscando essa reconexão consigo mesmas, embora o caminho esteja pavimentado por obstáculos internos.

“Ainda é um tema permeado por muitas crenças disfuncionais, como culpa, pecado, e sensação de não permissão”, explica. Essas vozes internalizadas, muitas vezes ecoando frases de gerações passadas, como “fecha as pernas”, “tira a mão daí”, “homem não gosta de mulher oferecida”, criam uma barreira entre a mulher e o próprio prazer.

É nesse contexto que a sexóloga observa a crescente popularidade dos vibradores. “O uso de vibradores tem aumentado, e isso está diretamente ligado à autonomia feminina, ao acesso à informação, à quebra de tabus, e ao entendimento de que é possível sim sentir prazer, e não apenas ser objeto de prazer”, afirma.

Ela ressalta a importância de desconstruir a ideia de que o acessório é um rival. “Sozinha ou com o parceiro (a), o vibrador não representa substituição, mas expansão da experiência sexual. Quanto mais a mulher investe no autoconhecimento corporal e na exploração de áreas erógenas, melhor será o encontro sexual”. O objetivo, inclusive, pode ser algo muitas vezes idealizado: o orgasmo simultâneo à penetração. “É importante repensar o vibrador como aliado, não como um invasor, ou inibidor do clima sexual”, aconselha.

Mas e aquela mulher que, criada sob esses estigmas, sente um frio na barriga só de pensar no assunto? Flávia Nascimento recomenda, antes de tudo, acolhimento. “Para a mulher que se sente mais reservada… a primeira coisa é acolher o sentimento que surgir (estranheza, receio, desconforto, culpa, etc). O desconforto pode ser o reflexo de crenças antigas, falta de informação ou medo do desconhecido”.

O caminho proposto é gentil, não coercitivo. “Não existe obrigação em usar vibrador, existe possibilidade. O caminho é o da curiosidade, e da liberdade de se permitir, não o da pressão”. Ela sugere psicoterapia, leituras de fontes confiáveis e, sobretudo, paciência. “Estar no lugar de ‘adulta’, é um caminho possível para a conexão da sexualidade feminina”.

Sobre o caso Angélica, a profissional vê seu relato com extrema relevância para o mundo feminino. “Achei importantíssimo Angélica falar de forma autêntica, leve e natural sobre o uso de vibradores, pois temas como estes precisam ser mais discutidos, sem estigmas, ou retrocessos culturais”.

Vibradores e objetos sexuais da Quente Caliete | Foto: Jornal Opção/ Fábio Chagas

Para Nascimento, a menção ao apoio do parceiro é um sinal positivo de mudança. “Quando um parceiro é capaz de olhar para acessórios eróticos sem insegurança ou competição, isso pode ampliar a intimidade e a comunicação sexual do casal – aspectos que a literatura em sexologia clínica associa a maior satisfação sexual e a relações mais equilibradas”.

No entanto, ela faz uma ressalva realista: “Nem todo homem consegue lidar naturalmente com a ideia… isso tende a chocar com as crenças/pensamentos de uma educação sexual masculina tóxica”. A solução, mais uma vez, reside na comunicação. “Assim, é imprescindível exercitar a comunicação assertiva, acessório fundamental para o sucesso da relação conjugal”.

A revolução no ambiente de vendas de produtos para o prazer sexual

Se Flávia Nascimento atua na esfera privada dos consultórios, Calianer Paglia promoveu sua revolução no espaço físico e comercial. A CEO da Quente Caliente não herdou apenas um negócio familiar, herdou um modelo que já não dialogava com seus anseios e com o mundo que via surgir.

“A Quente Caliente surgiu do meu desejo de transformar um sex shop num lugar onde as pessoas sentissem orgulho de estar”, conta. O modelo herdado era o das antigas videolocadoras com cabines de peep-show, um ambiente que ela descreve como “muito promíscuo, muito ruim de se trabalhar como mulher nova… muito masculinizado e muito obscuro”.

Calianer Paglia | Foto: Jornal Opção/ Fábio Chagas

Formada em marketing, Calianer colocou no papel, no seu TCC, o projeto de um sex shop de luxo. O sonho era transformar aquele universo opaco em um espaço de acolhimento. “Eu sonhei muito alto, eu realmente queria um lugar onde as pessoas tivessem orgulho de estar, um lugar descolado, um lugar bacana mesmo… Por que as coisas precisavam ser empilhadas, penduradas? Por que não podia ser um estilo boutique mesmo? Até pra poder valorizar aquele objeto que ainda é tão deturpado, estigmatizado”.

Com essa missão, ela se considera uma pioneira em Goiânia. “Eu meio que capinei o lote pra eles passarem”, brinca, referindo-se a outros lojistas que depois seguiram o conceito.

Seu propósito é “ressignificar o mercado erótico”. E os resultados desse trabalho são perceptíveis no comportamento das clientes. A vergonha, ela admite, ainda existe. “As pessoas entram cheia de medos, com mil preocupações. ‘Ah e se alguém me ver aqui dentro”.

Mas algo mudou profundamente. “Eu percebo que as mulheres, hoje, elas entram mais informadas dentro da loja… Já é mais fácil e mais aberto as amigas conversarem sobre esses assuntos”. Ela observa um amadurecimento coletivo. “As pessoas estão mais preparadas. Essa é a palavra”.

Cenas impensáveis há duas décadas agora fazem parte da rotina da Quente Caliente. “Eu também vejo mãe e filha entrando juntas.  Várias vezes eu recebi uma avó, mãe e filha. Três gerações indo juntas. Eu também vejo, com muito mais frequência, uma filha presentear a mãe com um vibrador”.

Para Calianer, esse é um sinal poderoso de que o tabu está sendo corroído, não por uma revolução barulhenta, mas por uma infiltração gradual de informação e naturalidade.

A mudança não está apenas no perfil do público, mas também nos produtos. A empresária revela que as vendas de artigos para o prazer feminino quintuplicaram, mas a verdadeira transformação está no design e na tecnologia. “Antes, quem procurava ia especificamente procurando algo no formato fálico… Hoje em dia, raramente a gente vende esse tipo de vibrador… A gente vende mais aqueles mais coloridos, mais criativos, de formatos bem mais modernos”.

Silicone cirúrgico, conectividade por aplicativo e uma estética lúdica tomaram o lugar dos modelos realistas e frágeis. A acessibilidade aumentou, e com ela a necessidade de curadoria para garantir qualidade e segurança.

Um conselho aos homens? “Não é um concorrente e sim um ajudante”

Ambas as entrevistadas convergem em um ponto: necessidade de desarmar os homens em relação ao vibrador. Calianer Paglia usa uma analogagem. “Fiquem calmos e tranquilos, porque o vibrador apenas vai agregar, como se fosse um look bonito para sua esposa. Como se fosse um acessório a mais no look da sua esposa. O vibrador, ele não é um concorrente, ele é um ajudante, ele é um amigo, ele vai te dar as mãos”.

Ela desenvolve a ideia: “É como se você pegasse um carro pra ir em direção ao destino que você quer chegar. Você chegaria lá de qualquer forma… Mas você escolhe o veículo, né? Você pode ir de Ferrari… Se os homens soubessem o quanto é maravilhoso que a mulher tenha um acessório estimulante na relação… Nossa, eles iam levantar as mãos pro céu e agradecer de tão mágico que é. Porque isso tira um peso das costas deles”.

Objeto sexual da Quente Caliete | Foto: Jornal Opção/ Fábio Chagas

A fala de Calianer vai ao cerne de uma expectativa culturalmente construída e onerosa: a de que o homem é o único responsável pelo prazer feminino. “A grande verdade é que eles realmente não são responsáveis pelos nossos prazeres. Nós mesmas somos responsáveis… Eles podem tirar esse piano das costas porque é muito pesado carregar esse peso”.

A empreendedora finaliza com um desafio. “Para que ter medo de um negócio de plástico pequetitinho, bem pequeno? A sua masculinidade se resume a isso? Eu acho que a autoestima tem que melhorar, e muito, porque os tempos mudaram demais e autoconhecimento tá aí pra isso, pra nos ajudar. A própria medicina já atribuiu ao vibrador uma necessidade terapêutica em tratamento. Então já tá na hora de evoluir.”

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