Em meio a uma crise financeira, o Jockey Club de São Paulo, instituição centenária à beira do rio Pinheiros, recebeu R$ 83,6 milhões em incentivos fiscais dos governos federal e municipal ao longo dos últimos sete anos, destinados à restauração de sua sede histórica. Contudo, uma investigação do UOL, baseada em notas fiscais e documentos internos, revela que parte desses recursos públicos, incluindo R$ 22,4 milhões da Lei Rouanet e R$ 61,2 milhões contestados pela Prefeitura de São Paulo, foi canalizada para uma rede de empresas com ligações familiares e políticas com o conselheiro da instituição e presidente nacional do PSDB, Marconi Perillo.

As despesas, apresentadas como justificativa para os repasses, incluem pagamentos a uma construtora fantasma, jantares em restaurantes de luxo com consumo de vinho, despesas em farmácias e até mesmo o aluguel de um equipamento enviado para uma cidade sem qualquer relação com as obras do hipódromo.

No centro da controvérsia está a produtora cultural Elysium, que se tornou a procuradora do Jockey em 2020. Curiosamente, a Elysium foi transformada em uma Organização Social de Cultura (OSC) em 2014 por meio de um decreto assinado pelo então governador de Goiás, Marconi Perillo. 

Desde então, a organização experimentou um crescimento exponencial, atingindo o ápice em 2025 com quatro aprovações simultâneas via Lei Rouanet, todas vinculadas ao Jockey Club.

Documentos analisados pela reportagem do UOL demonstram que a Elysium atuou como um eixo central, coordenando o restauro e contratando fornecedores. Subsequentemente, uma série de pagamentos foi direcionada a empresas intimamente ligadas à família de Débora Perillo, prima de Marconi Perillo.

Por exemplo, a Sapé, uma empresa de administração de imóveis de Goiânia da qual Débora é sócia “por herança”, fica no mesmo endereço da Elysium e foi contratada para o aluguel de um “kit gerador”. No entanto, o equipamento foi enviado para Santo Antônio de Goiás, na região metropolitana de Goiânia, em um serviço sem qualquer conexão aparente com o canteiro de obras em São Paulo.

Paralelamente, outra fornecedora frequente foi a Biapó Construtora. O fundador da construtora é sócio dos irmãos Unes, tios dos proprietários da Elysium, em outra empresa, a Biapó Urbanismo. Em nota ao UOL, a Elysium defendeu a escolha da Biapó Construtora citando sua “experiência de 35 anos em restauro”.

Notas fiscais questionáveis e serviços fantasmas

A investigação expõe, ademais, inconsistências na prestação de contas. O Jockey Club declarou à Prefeitura de São Paulo, através do mecanismo de Transferência do Direito de Construir (TDC), ter pago R$ 20,4 milhões a três fornecedores específicos. Contudo, a realidade desses pagamentos é contestada.

Primeiramente, o escritório Ambiência Arquitetura e Restauro, de São Paulo, foi citado como receptor de R$ 1 milhão. A arquiteta Ana Ditolvo, porém, negou ao UOL categoricamente ter executado serviços nesse valor e escopo para o projeto do TDC, confirmando ter realizado outros trabalhos para o Jockey, mas nunca na magnitude mencionada.

Em segundo lugar, a Construtora Vidal foi apontada como a principal executora, responsável por serviços avaliados em R$ 11,2 milhões. A reportagem do UOL, no entanto, não conseguiu localizar a empresa em nenhum dos endereços fornecidos, em São Paulo e Goiânia. O endereço paulistano, localizado no nobre bairro do Itaim Bibi, corresponde a um apartamento residencial, cujo condomínio, no valor de R$ 1.735, foi curiosamente incluído como despesa do projeto de restauro nas contas apresentadas ao Ministério da Cultura (MinC) e à prefeitura.

O condomínio é pago em nome de Wolney Unes, diretor técnico da Elysium, e o imóvel é ocupado por sua filha. Em Goiânia, a situação se repete: o suposto escritório também funciona em um prédio residencial.

A Construtora Vidal, que emitiu apenas três notas fiscais desde sua abertura em 2021, teve seu CNPJ registrado em nome da advogada Mariana Pinha Stersi, que não foi localizada pela reportagem. A Elysium, por sua vez, afirmou em nota ao UOL  ter contratado a Vidal “pela experiência técnica” e disse não ter informações sobre seus proprietários.

A terceira empresa, a Construtora Biapó, confirmou ao UOL ter prestado serviços, mas não revelou o valor cobrado, que foi declarado como R$ 3,5 milhões pelo Jockey.

Um dos aspectos do caso é a aparente dupla prestação de contas. A gestão municipal, comandada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), rejeitou as contas do Jockey referentes ao TDC após o clube apresentar, para justificar o uso de recursos municipais, as mesmas notas fiscais já utilizadas para comprovar o uso dos recursos federais da Lei Rouanet.

A advogada Flavia Manso, especialista em incentivos fiscais, explicou ao UOL a ilegalidade da ação e disse que “um projeto pode ter diferentes fontes de fomento, mas uma mesma nota não pode ser usada duas vezes para prestar contas”. O Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da prefeitura concluiu que o clube pode ter desviado parte dos valores para quitar dívidas, o que é expressamente proibido, já que o incentivo do TDC exige que 100% do valor seja aplicado na preservação do patrimônio tombado.

Despesas pessoais e a justificativa da administração

Os comprovantes obtidos pelo UOL pintam um quadro de utilização de recursos públicos para custear despesas de natureza pessoal ou, no mínimo, questionável. Entre os itens apresentados na prestação da Lei Rouanet estão:

  • Compras em farmácias, como chá-mate, sal de frutas e o medicamento Eparema (R$ 21).
  • Jantares em restaurantes badalados, como Dom Mariano (R$ 482) e Aze Sushi (R$ 385), com consumo de vinho.
  • Uma refeição no requintado Osaka, nos Jardins, com sobremesa e gorjeta (R$ 803).
  • Despesas em Goiânia, como dedetização (R$ 200), higienização de tapete (R$ 300), conta de água (R$ 499) e IPTU (R$ 975).

A Elysium justificou tais gastos como “despesas administrativas”, alegando que a Lei Rouanet permite um limite de 15% para este fim. O MinC, porém, ressalvou que esses custos são permitidos apenas quando estritamente necessários à gestão do projeto e proporcionais a ele.

Além disso, o ministério é taxativo ao proibir o reembolso de bebidas alcoólicas. A produtora, em contrapartida, afirmou que “não houve consumo de álcool pago com recursos públicos”.

A defesa dos envolvidos e as investigações

Diante das acusações, os envolvidos adotaram posturas de negociação. Marconi Perillo, contactado pelo UOL, “negou veementemente” ter indicado a Elysium para o Jockey. Afirmou conhecer Débora Perillo “apenas de vista”, classificando-a como “prima de terceiro grau”, e atribuiu qualquer ligação a uma “coincidência” por ambos serem de Goiás. “Não participei de nenhuma escolha e não sou responsável por acompanhar esse trabalho. Qualquer ligação com meu nome é uma leviandade absurda”, declarou.

O presidente do Jockey, Marcelo Motta, adotou uma linha de defesa diferente. Ele afirmou ao UOL que “devido ao seu caráter privado, quem o Jockey contrata diz respeito apenas a ele”. Em nota oficial, o clube alegou que seus processos de prestação de contas estão regulares e criticou o que chamou de “interesses nada republicanos” e uma tentativa de desvalorizar o imóvel para justificar uma desapropriação.

A Elysium, por meio de sua assessoria, emitiu uma nota na qual nega atuar com recursos do TDC e reafirma a legalidade de seus procedimentos dentro dos limites da Lei Rouanet.

O Jornal Opção também entrou em contato com o ex-governador de Goiás, Marconi Perillo, para comentar sobre as suspeitas envolvendo a destinação de verbas da Lei Rouanet no Jockey Club de São Paulo. Em nota, ele afirmou que a reportagem do UOL que o cita seria, segundo suas palavras, “para ser delicado, desonesta”. Ele destacou que todas as informações já teriam sido esclarecidas e criticou o fato de o portal “insistir em publicar ilações” mesmo após as explicações.

Perillo também negou qualquer vínculo com a empresa mencionada na investigação. Segundo ele, a suposta relação se resumiria a “duas coincidências”: o fato de a companhia ser de Goiás e de uma das sócias ter o mesmo sobrenome que o seu. O ex-governador reforçou que não possui qualquer parentesco ou relação com a empresária citada e afirmou que a empresa já prestava serviços ao Jockey “três anos antes de eu me tornar sócio”.

Em sua defesa, Marconi declarou ainda que a empresa “é uma das melhores do Brasil do ponto de vista técnico para projetos de restauro” e encerrou a nota dizendo que a reportagem teria “transformado informações técnicas em panfleto político”, completando: “Eu não posso me calar.”

Obras inacabadas

Apesar dos milhões injetados, a realidade física do Jockey Club conta uma história diferente dos relatórios financeiros. Enquanto o clube divulga em seu site os avanços em áreas nobres, como o salão nobre e a tribuna dos sócios, a reportagem constatou o abandono em outras partes do complexo.

A Tribuna 1, que recebeu R$ 7,7 milhões via Lei Rouanet, ainda exibe vidros quebrados, portões trancados, bancos danificados, buracos no teto e fiações expostas. Placas do próprio projeto de restauração estavam abandonadas sobre as arquibancadas, ilustrando a desconexão entre o investimento declarado e a obra executada.

A Controladoria-Geral do Município confirmou que a ausência de comprovação adequada pode resultar em punições ao Jockey, incluindo a exigência da devolução integral dos recursos. Paralelamente, o Ministério da Cultura (MinC) informou que, em conjunto com a prefeitura, apura possíveis irregularidades, mas afirmou que “até o momento não foram identificadas inconsistências financeiras graves nos projetos concluídos”.

Confira nota completa de Marconi Perillo:

“A reportagem do UOL que cita meu nome é, para ser delicado, desonesta. Tudo foi esclarecido e, mesmo assim, eles insistiram em publicar ilações.

Há duas coincidências no caso: o fato da empresa que eles afirmam ter ligação comigo ser de Goiás e uma das sócias ter meu sobrenome. A pessoa com meu sobrenome, com quem não tenho nenhum relacionamento, é herdeira da empresa, sobrinha dos proprietários.

Também tentam atribuir a mim a indicação da empresa sendo que, quando me tornei sócio do Jockey, ela já prestava os serviços fazia três anos. Pelo que conheço, a empresa citada é uma das melhores do Brasil do ponto de vista técnico para projetos de restauro.

A reportagem transformou informações técnicas em panfleto político. Eu não posso me calar.”

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