Com um faturamento anual que rivaliza com o Produto Interno Bruto (PIB) de nações inteiras, girando em torno de US$ 1,9 trilhão, a indústria de alimentos ultraprocessados é o setor mais lucrativo, e, segundo um crescente consenso científico, o mais nocivo do complexo alimentar global.

No Brasil, esse avanço já é constatado nos dados do Ministério da Saúde, que revelam que, dos 39 mil novos produtos lançados entre 2020 e 2024, 62% são ultraprocessados, enquanto apenas 18,4% são in natura ou minimamente processados. Paralelamente, a participação desses itens na dieta dos brasileiros mais que dobrou desde os anos 1980, saltando de 10% para 23%. 

Em entrevista ao Jornal Opção, a presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia de Goiás (SBEM-GO), Marília Gabriela Zanier Gomes, recorre à classificação científica que embasa o Guia Alimentar para a População Brasileira.

“A gente tem visto muito essa questão de ultraprocessados atualmente, o que a gente observa são várias pesquisas que mostram que esses alimentos podem aumentar o risco de obesidade e várias outras doenças crônicas, incluindo cânceres”, afirma.

Ela explica os quatro grupos da classificação NOVA, desenvolvida pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP). No topo, estão os alimentos in natura e minimamente processados (Grupo 1), seguidos pelos ingredientes culinários de base, que são processados  ou minimamente processados (Grupo 2), como óleos e sal.

“Aí o grupo 3, alimentos processados, e o 4 entraria, então, os alimentos e bebidas ultraprocessados”, detalha. Esses últimos, segundo a endocrinologista, sequer entram na pirâmide alimentar tradicional. “Isso porque o ideal é que a gente evite ao máximo esses alimentos”.

Para ilustrar a diferença, a médica contrasta exemplos: “A gente tem alimentos que são processados, por exemplo, a fruta em calda, queijo, uma conserva de legumes”.

Em oposição, define o ultraprocessado: “Ultraprocessado seria mais refrigerante, comida de saquinho, bolacha recheada… A gente sabe que são coisas que não precisa”.

O que é a “hiperpalatabilidade” que desregula o cérebro e a saúde?

A principal preocupação da endocrinologia, segundo Marília, concentra-se no impacto metabólico desses produtos. “A gente sabe que são alimentos que são muito palatáveis. Começamos a comer e queremos mais”.

Este fenômeno, conhecido como hiperpalatabilidade, interfere diretamente nos centros de saciedade do cérebro. “Então essa comida de saquinho, esse refrigerante, a gente começa a comer, parece que o nosso cérebro não processa tão bem e a gente vai querendo mais e mais e mais”, descreve. Consequentemente, esse ciclo leva ao aumento do consumo calórico, elevando os índices de pessoas acima do peso.

A obesidade, por sua vez, atua como porta de entrada para uma cascata de comorbidades. “Ela traz junto a diabetes, a hipertensão”, alerta a especialista. Além disso, o elo com o câncer é direto e duplo.

Primeiro, por componentes específicos: “A gente sabe que, por exemplo, consumindo mais de 50 gramas por dia dessas carnes processadas podem aumentar o risco de câncer de intestino”. Depois, pela própria condição de obesidade que os ultraprocessados fomentam. “A gente tem isso comprovado, que a obesidade se relaciona também a vários tipos de cânceres”.

Acesso e custo fazem um inversão da riqueza alimentar

Um dos pontos mais críticos destacados pela presidente da SBEM-GO é o viés socioeconômico do consumo. “São alimentos muito baratos. Então, uma bolacha de pacotinho, um biscoito recheado, a gente vê muito mais propaganda do que outros alimentos”, observa.

Ela cita a questão tributária como um fator distorcivo. “Os refrigerantes estavam com preços até melhores que a água, por exemplo. Então isso facilita o consumo”.

A praticidade, somada ao baixo custo, cria uma armadilha. “A gente fala que é muito mais fácil, por exemplo, se você estiver na rua e comprar uma comida de saquinho, um refrigerante, do que você comer um alimento mais saudável”.

Esse fenômeno, segundo ela, reflete-se até na agricultura. “A gente vê alimentos que são muito ricos em distribuição e plantações, como o caso das grandes plantações de soja, milho, e a gente vê até uma queda de plantações de outros alimentos, como feijão e arroz”.

Recentemente, a médica participou de um debate no Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás (Cremego) sobre o tema, que incluiu a exibição do documentário “Comida de Mentira”. O filme, que será veiculado por uma plataforma de streaming, reforça justamente esses dados nacionais sobre o aumento do consumo entre as populações economicamente mais vulneráveis.

Quais os danos os ultraprocessados podem causar? 

A endocrinologista Sandra Fernandes, também entrevistada pela reportagem, aprofunda a explicação sobre os mecanismos fisiológicos dos danos. Ela ressalta que os ultraprocessados são caracterizados por excesso de açúcar, gordura de má qualidade, sal e um grandeza de aditivos, além da carência de nutrientes essenciais. 

Pela hiperpalatabilidade, esse consumo excessivo e rápido provoca picos glicêmicos. Adicionalmente, “são alimentos que alteram a barreira intestinal, então deixam passar substâncias inflamatórias que vão para corrente sanguínea, e isso vai aumentar a quantidade de inflamação no nosso corpo”.

Esse estado inflamatório crônico de baixo grau é o terreno fértil para o desenvolvimento de uma série de doenças. “Aumenta o risco de obesidade, de resistência insulínica e também de diabetes tipo 2, e também contribui para outras doenças, como gordura no fígado, o aumento do colesterol, triglicerídeos, e para o aparecimento da síndrome metabólica”, enumera Sandra.

A síndrome metabólica, por sua vez, é um conjunto de fatores que eleva o risco de eventos cardiovasculares graves, como infarto e AVC.

Dados nacionais confirmam que o excesso é regra nos ultraprocessados

As preocupações das especialistas goianas são validadas por pesquisas de abrangência nacional. Um estudo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em parceria com o Nupens/USP, publicado no periódico Scientific Reports, analisou 10 mil produtos ultraprocessados em supermercados brasileiros.

Os resultados mostram que 98,8% continham aditivos cosméticos (corantes, aromatizantes, espessantes), e 97,1% apresentavam pelo menos um ingrediente crítico em excesso, como o sódio, gorduras ou açúcares livres.

Essa fórmula de sucesso comercial – hiperpalatabilidade, longa duração e apelo visual – esconde uma composição padrão danosa. A praticidade estampada nas embalagens coloridas e no marketing agressivo, especialmente voltado para crianças, tem um preço oculto.

“As pessoas acabam substituindo as refeições saudáveis, que são mais equilibradas, por esse tipo de alimento. Por causa disso, vai surgindo mais doenças, e você trocar isso por hábito saudável depois, é muito difícil”, destaca a endocrinologista.

Apelo global por regulação

No dia 18 de novembro, a revista The Lancet publicou uma série de artigos assinados por 43 especialistas de todo o mundo, incluindo o brasileiro Carlos Monteiro, criador da classificação NOVA. O documento é um apelo por políticas públicas para conter o consumo de ultraprocessados, apontados como drivers globais da pandemia de obesidade e doenças crônicas.

Os pesquisadores destacam que o poder corporativo concentrado, no qual apenas oito empresas controlam cerca de 42% do mercado global, alimenta esse ciclo, com lucros que “ampliam sua produção, influência política e presença de mercado, moldando dietas em escala global”.

Entre as medidas defendidas estão: a sinalização de aditivos e excessos nutricionais nas embalagens; a restrição da publicidade, em especial a infantil; a sobretaxação de produtos ultraprocessados para subsidiar alimentos frescos para populações carentes; e a proibição da venda em instituições públicas.

Neste último ponto, o Brasil é citado como caso de referência positiva. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) estabeleceu que, a partir de 2026, pelo menos 90% dos alimentos ofertados nas escolas da rede pública devem ser in natura ou minimamente processados, reduzindo o espaço para os ultraprocessados no ambiente escolar.

Qual o melhor caminho? 

Questionada sobre uma forma segura de incluir ultraprocessados, Marília é direta: “É melhor evitar”. Sandra complementa: “Não existe recomendação para consumir alimento ultraprocessado. O ideal é que não faça parte da rotina da gente”.

Ambas ressaltam que o consumo eventual, esporádico, tem impacto distinto do consumo habitual, mas a meta deve ser a exclusão.

O caminho apontado retorna à simplicidade. “O ideal é que a gente priorize alimentos naturais, as refeições caseiras”, afirma Sandra.

Já Marília reforça a importância da classificação adequada para guiar as escolhas. “Eu não posso falar que um presunto, que é uma carne processada, e um frango, por exemplo, eles são iguais”.

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