Uma terapia genética que até poucos anos atrás soaria como ficção científica está transformando o tratamento de cânceres sanguíneos agressivos. O procedimento, que reprograma glóbulos brancos para agir como um “medicamento vivo” capaz de localizar e destruir células doentes, já levou 64% dos pacientes com leucemia linfoblástica aguda de células T à remissão.

A nova técnica foi criada pela equipe do Great Ormond Street Hospital, da University College London (UCL) e do King’s College Hospital, que publicaram os resultados promissores dos pacientes na revista New England Journal of Medicine.

Depois de enfrentar meses de isolamento hospitalar, a primeira paciente do tratamento, Alyssa Tapley permanece livre do câncer desde 2022 e agora sonha em seguir carreira como pesquisadora em oncologia. Ela foi a primeira pessoa no mundo a receber essa intervenção inédita, que exige desmontar o sistema imunológico e reconstruí-lo praticamente do zero.

Hoje, passados três anos desde o início das aplicações clínicas, oito crianças e dois adultos já foram submetidos ao tratamento. Destes, nove atingiram remissão profunda, o que lhes permitiu realizar o transplante de medula óssea necessário para restabelecer a imunidade após a terapia genética. Sete continuam sem sinais da doença, com períodos que variam entre três meses e três anos.

Transformando células T em solução de combate

A leucemia linfoblástica aguda de células T é uma das formas mais complicadas da doença, porque afeta justamente os glóbulos brancos responsáveis por defender o organismo. As células T saudáveis identificam ameaças e as destroem; porém, quando se tornam cancerosas, elas se multiplicam de maneira descontrolada, invadindo à medula e anulando a capacidade natural de defesa.

Nos casos analisados pelo estudo britânico, terapias tradicionais, inclusive quimioterapia intensiva e transplante de medula, já tinham falhado. Isso significava que restava apenas oferecer cuidados paliativos. Entretanto, a tecnologia de “base editing” abriu uma porta até então inexistente.

Essa técnica permite que cientistas acessem um ponto exato do código genético e alterem a estrutura molecular de uma única base, trocando-a por outra. Como explicou a equipe, as bases – adenina (A), citosina (C), guanina (G) e timina (T) – funcionam como as letras que compõem as palavras do manual biológico humano. Modificar uma base específica significa reescrever o trecho do DNA responsável por determinada função.

Com isso, pesquisadores conseguem reprogramar células T doadas para que:

  • não ataquem o corpo do paciente;
  • não se autodestruam durante o tratamento;
  • se tornem invisíveis à quimioterapia;
  • reconheçam e destruam qualquer célula com o marcador CD7, presente nas células T doentes.

    O resultado é um tipo de célula imune totalmente redesenhada para atacar a leucemia.

    O caso Alyssa: reconstrução completa do sistema imunológico

    Alyssa Tapley, hoje com 16 anos, foi diagnosticada à época com uma leucemia tão agressiva que havia resistido a todos os tratamentos disponíveis. Ela acreditava que não teria a chance de crescer. Em suas palavras: “Eu realmente achava que ia morrer e que não teria a chance de crescer e fazer tudo o que qualquer criança merece fazer”.

    Alyssa Tapley completamente curada após remissão em 2022 | Foto: Reprodução/BBC

    Para tentar salvá-la, os médicos precisaram eliminar completamente seu sistema imunológico. Durante quatro meses de internação, Alyssa não pôde ver sequer o irmão, já que qualquer infecção poderia ser fatal. Depois da infusão das células T editadas e da remissão, ela recebeu um transplante de medula óssea para reconstruir as defesas naturais.

    Hoje, leva uma vida normal: faz os exames finais do ensino médio e planeja tirar carteira de motorista e sonha com o futuro. “Estou pensando em fazer um estágio em ciências biomédicas e espero, um dia, também trabalhar em pesquisas sobre câncer no sangue”.

    Resultados impressionam especialistas

    Os especialistas responsáveis pelo tratamento também têm destacado a complexidade e o impacto do avanço. O professor Waseem Qasim, da UCL e do Great Ormond Street, sintetiza o feito dizendo que “até poucos anos atrás, isso seria ficção científica”. Para ele, embora o procedimento seja extremamente intenso e exija desmontar praticamente todo o sistema imunológico do paciente, quando funciona, “funciona muito bem”.

    Entretanto, apesar dos avanços, há riscos. O período em que o sistema imunológico está totalmente destruído é crítico, pois infecções podem se tornar fatais. Além disso, houve dois casos em que o câncer reapareceu porque conseguiu escapar ao perder as marcações CD7, escondendo-se efetivamente das células modificadas.

    Mesmo assim, os resultados impressionam especialistas independentes. “Considerando quão agressiva é essa forma específica de leucemia, esses resultados clínicos são bastante impressionantes e, obviamente, fico muito feliz por termos conseguido oferecer esperança a pacientes que, de outra forma, a teriam perdido”, afirmou Robert Chiesa, do Great Ormond Street Hospital.

    No King’s College Hospital, a hematologista Deborah Yallop destacou que sua equipe viu “respostas impressionantes na eliminação de leucemias que pareciam incuráveis; é uma abordagem muito poderosa.”

    Já Tania Dexter, médica sênior da ONG Anthony Nolan, reforçou o impacto global do estudo ao afirmar que, diante da baixa chance de sobrevivência dos pacientes antes do tratamento, “esses resultados trazem esperança de que tratamentos como este continuem a avançar e fiquem disponíveis para mais pacientes”.

    Leia também:

    Câncer de pele é o tipo de tumor mais frequente no Brasil; médico alerta sobre riscos e a importância da fotoproteção

    Homem é preso em Goiânia após tentar matar a companheira queimada; mulher está em estado grave na UTI