Quando o cargo público vira arma contra a democracia
26 dezembro 2025 às 17h40

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A democracia não se rompe apenas com tanques nas ruas ou quartéis insurgentes. Ela também pode ser corroída por atos administrativos, por ordens travestidas de rotina e por decisões tomadas à sombra da legalidade formal.
O caso envolvendo Silvinei Vasques, ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, é emblemático desse tipo de ameaça silenciosa. Em 2022, durante o segundo turno das eleições presidenciais, operações da PRF se intensificaram de maneira atípica em rodovias do Nordeste, justamente a região onde Luiz Inácio Lula da Silva historicamente concentra maior votação.
Ônibus foram parados, eleitores atrasados, viagens dificultadas. Não se tratava de uma blitz isolada ou de uma ação pontual de segurança viária. O contexto político, o timing e o direcionamento das operações levantaram uma suspeita grave: o uso da máquina pública para interferir no direito fundamental ao voto.
Quando um dirigente de órgão de Estado mobiliza sua estrutura para criar obstáculos ao exercício do sufrágio, o problema deixa de ser administrativo e passa a ser moral, político e institucional. O cargo, nesse caso, deixa de servir ao interesse público e passa a funcionar como arma.
Arma contra cidadãos comuns. Arma contra regiões inteiras do país. Arma, sobretudo, contra a democracia. Não é irrelevante que o foco das ações tenha sido o Nordeste. A história brasileira é marcada por desigualdades regionais profundas e por tentativas recorrentes de deslegitimar a participação política de determinadas parcelas da população.
Impedir ou dificultar o voto de eleitores nordestinos não é apenas uma infração eleitoral: é a reedição de um velho preconceito, agora com farda, viatura e ordem institucional. O episódio escancara um risco estrutural: o de autoridades públicas confundirem lealdade institucional com alinhamento ideológico.
Em democracias maduras, o servidor do Estado serve à Constituição, não a projetos de poder. Quando essa fronteira se rompe, abre-se um precedente perigoso, hoje contra um grupo específico, amanhã contra qualquer outro.
Mais grave do que a conduta individual é o que ela revela: sem controles firmes, transparência e responsabilização, cargos estratégicos podem ser instrumentalizados para deformar o jogo democrático por dentro.
Não é preciso fechar o Congresso ou cancelar eleições. Basta atrasar ônibus, montar barreiras seletivas e apostar que o silêncio institucional fará o resto. O fortalecimento da democracia exige mais do que eleições regulares.
Exige que quem ocupa funções públicas compreenda que o poder que lhe é confiado tem limites claros. Quando esses limites são ultrapassados, não se trata de opinião política, trata-se de abuso. E abuso de poder, em qualquer democracia que se pretenda digna desse nome, não pode ser normalizado, relativizado ou esquecido.
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