Em regiões marcadas por vulnerabilidade social em Aparecida de Goiânia, iniciativas da sociedade civil têm assumido um papel central na proteção de crianças e adolescentes fora do horário escolar. No Setor Madre Germana, o Espaço Amor atende cerca de 175 crianças, de 6 a 13 anos, em regime de contraturno, com oficinas, alimentação e acompanhamento psicossocial. Já no Span Sul, o Instituto Hebrom desenvolve ações nas áreas de esporte, educação, tecnologia e segurança alimentar, alcançando centenas de famílias. Em comum, os projetos disputam o mesmo território simbólico: o tempo livre da criança.

“O Espaço Amor hoje é o que a gente chama de serviço de convivência e fortalecimento de vida. Ele faz parte da política de assistência social”, explica Heitor Arrais, coordenador do projeto.

Segundo ele, a lógica do atendimento é simples e direta: “Atendemos em contraturno escolar. As crianças que estudam de manhã vêm à tarde, e as que estudam à tarde vêm de manhã. É uma atividade lúdica para tirar essas crianças da rua, do tráfico, de todos os problemas que surgem quando o jovem fica solto, e trazer para um espaço de desenvolvimento”.

Heitor Arrais coordena o Espaço Amor | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

O atendimento é concentrado no próprio território. ““Atendemos crianças do Madre Germana e do entorno imediato. Hoje são entre 170 e 175 crianças, divididas em dois turnos”, afirma. As oficinas variam conforme o planejamento e incluem capoeira, bijuteria, leitura e atividades recreativas. “Não é só brincar por brincar. É brincar observando, acompanhando, criando vínculo”, resume Arrais.

A estrutura foi pensada para permanência diária. O espaço conta com salas de atividades, refeitório e oferta de refeições ao longo do dia. “As crianças tomam café da manhã, almoço e lanche. De manhã, a maioria almoça aqui e depois vai para casa. À tarde, alguns já vêm alimentados, mas muitos chegam direto da escola e almoçam aqui”, explica. Há ainda uma horta comunitária, cultivada pelas próprias crianças. “Eles plantam, colhem, acompanham. É uma festa quando a horta produz”, diz.

Refeitório do Espaço Amor | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Uma quadra poliesportiva está em fase final de construção. “A ideia é ampliar ainda mais as atividades esportivas, porque esporte também é ferramenta de convivência”, afirma Arrais.

O financiamento do Espaço Amor vem majoritariamente de doações. “Hoje o espaço é mantido de duas formas: doações particulares e o apoio de uma fundação de São Paulo, a Fundação Francisco e Clara de Assis, que mantém a maior parte das despesas mensais”, explica. Além de contribuições financeiras, o projeto recebe doações de roupas, brinquedos, material escolar e itens do cotidiano. “Em datas como Páscoa, Dia das Crianças e Natal, a comunidade costuma se mobilizar bastante”.

Apesar da demanda, não há planos imediatos de expansão. “Hoje o nosso olhar é desenvolver a comunidade do Madre Germana. Manter uma estrutura dessas já é complexo. O projeto é novo, vai completar três anos, e a gente ainda está organizando equipe, gestão e documentação”, afirma Arrais. Ele não descarta expansão no futuro, mas ressalta: “A longo prazo, muito longo prazo”.

Mais do que oficinas, o Espaço Amor funciona como ponto de escuta e observação. Arrais afirma que o território atendido apresenta alto índice de violência doméstica. “A violência infantil e doméstica é muito presente na casa de quase todas as crianças. Às vezes o pai chega alcoolizado, agride a mãe, a avó, a criança. Isso aparece no comportamento”.

Nesse contexto, as atividades são também instrumentos de leitura do cotidiano. “Não temos interesse em formar a criança em capoeira, por exemplo. A capoeira é um meio. A gente observa como ela reage, o que ela fala, como se relaciona. A partir disso, a psicóloga faz o acompanhamento”, explica.

A psicóloga Joice, que atua no Espaço Amor, afirma que o acolhimento acontece de várias formas. “A porta está sempre aberta. As crianças sabem o que eu faço aqui. Elas vêm até mim quando precisam, mas eu também vou até elas”, diz. Segundo ela, há atendimentos semanais em grupo. “Eu faço grupos duas vezes por semana. A gente brinca, conversa, levanta demandas, trabalha convivência. É um trabalho bem múltiplo”.

Joice atua como psicóloga no espaço | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

As demandas também chegam pelas educadoras. “Elas passam mais tempo com as crianças, então trazem conflitos, mudanças de comportamento, situações que observaram”, relata Joice. O trabalho não é psicoterapia individual. “Como é um serviço de convivência e fortalecimento de vínculos, a gente faz o levantamento das demandas. Quando identificamos algo mais grave, a gente encaminha”.

Segundo a psicóloga, o trabalho é articulado com a assistente social e a coordenação. “Quando percebemos contexto de violência, negligência ou necessidade de atendimento clínico, fazemos relatório e encaminhamento pelo CAPS. Muitas famílias não sabem usar a rede de assistência social”, explica.

Arrais reforça esse ponto. “Tem famílias que convivem anos com sofrimento, com crianças neurodivergentes, por exemplo, sem saber como acessar tratamento. Quando chegam aqui, a gente consegue orientar, acionar a rede e dar um certo equilíbrio para a família”.

Já no Span Sul, o Instituto Hebrom atua em escala maior, com múltiplos projetos. O fundador e presidente do conselho, Heribaldo Egídio, afirma que a organização nasceu da prática. “Antes de ter CNPJ, a gente já distribuía cesta básica. Isso vem de mais de 30 anos, da minha família. Em 2019, decidimos formalizar e estruturar melhor”.

Instituto Hebron | Foto:

Hoje, o instituto atua nas áreas de esporte, educação e tecnologia. “No esporte, temos a escola de futebol, com 300 alunos de 4 a 17 anos. As crianças não pagam nada. Recebem lanche, uniforme, chuteira”, afirma Egídio. Segundo ele, o futebol é ferramenta para além da bola. “A gente trabalha resiliência, disciplina, ética, enfrentamento da frustração. Isso forma cidadão”.

Na educação, o instituto mantém reforço escolar. “Pegamos alunos com desempenho abaixo do esperado e trazemos para estudo complementar, com pedagogas e psicopedagogas”, diz. Há ainda o projeto Jovens Conectados, voltado à robótica. “São alunos que estudam robótica em parceria com o SESI. Nosso objetivo é formar um time competitivo”.

Egídio afirma que o próximo passo é inteligência artificial. “A partir dos 14 anos, muitos jovens abandonam a escola para trabalhar. A gente quer segurar esse jovem, tutorá-lo, mostrar um caminho. Vamos trabalhar IA com tutoria de profissionais de TI e mapear possíveis jovens aprendizes”.

O instituto também atua fortemente na segurança alimentar. “A fome ainda é uma realidade. Nossos projetos de cesta básica e alimentação emergencial alcançam milhares de pessoas”, afirma Egídio. Para ele, o foco é impacto real. “Nosso objetivo é ser relevante na vida dessas famílias, gerar transformação social e deixar um legado”.

Apesar das diferenças de perfil, os dois projetos compartilham o mesmo desafio. “A gente começa pelas crianças, mas a ideia é costurar a comunidade junto”, resume Arrais. Egídio concorda: “Quando você fortalece o jovem, fortalece a família e a sociedade”.

Entre oficinas, bola, robótica e acolhimento psicológico, as iniciativas tentam impedir que a rua seja a principal alternativa para crianças que já crescem cercadas pela vulnerabilidade, e transformar o tempo livre em proteção.

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