Considerada o marco zero e o epicentro do poder desde a fundação da capital, a Praça Cívica Doutor Pedro Ludovico Teixeira passa atualmente por mais um capítulo em sua longa história de revitalizações. Com obras recentes concluídas no Palácio das Esmeraldas em abril deste ano e em andamento no Museu Goiano Professor Zoroastro Artiaga, o conjunto patrimonial, tombado nas três esferas (federal, estadual e municipal), recebeu investimentos que ultrapassam os R$ 6 milhões apenas no museu.

A praça, concebida em 1933 pelo urbanista Attilio Corrêa Lima como símbolo máximo da nova Goiás moderna e racional, consolidou-se não apenas como cartão-postal do estilo Art Déco no Brasil, mas também como palco vivo de disputas políticas e apropriações populares.

Este reportagem do Jornal Opção reconstitui as sucessivas intervenções no local, a partir de documentos oficiais e entrevistas exclusivas com gestores e defensores do patrimônio, mapeando os desafios de preservar suas camadas históricas diante do crescimento da cidade.

A gênese monumental e o projeto original

A história da Praça Cívica é indissociável da própria história de Goiânia. Idealizada como o coração administrativo e simbólico da nova capital pelo interventor Pedro Ludovico Teixeira, sua planta foi elaborada por Attilio Corrêa Lima, um discípulo do urbanismo modernista europeu.

Consequentemente, o traçado obedeceu a uma lógica radial e monumental: as largas avenidas Goiás, Araguaia e Tocantins convergem para o espaço cívico, reforçando sua centralidade. “A Praça Cívica ocupa um papel totalmente central na formação urbana e política da cidade, é a partir dela que se inicia-se Goiânia”, explica a historiadora da Secretaria de Estado de Cultura de Goiás (Secult), Mayara Terres.

Ela acrescenta que o projeto “é pensando e construindo com simbolismos da modernidade e do progressismo do início do século XX”, concebido para romper com a antiga capital, Vila Boa (Cidade de Goiás).

Praça Cívica | Foto: Cristiano Oliveira

Além disso, a concepção visava à afirmação do poder estatal. “Seu traçado monumental, a convergência das principais avenidas e a concentração dos edifícios administrativos, demonstram um símbolo do poder estatal e da autoridade pública, mais do que como um espaço voltado à sociabilidade cotidiana”, analisa Terres. 

Sobre lendas que circulam acerca de simbolismos maçônicos ou religiosos no desenho da praça, a historiadora afirma que “infelizmente, nem a documentação ou mesmo a historiografia corrobora uma possível relação com à maçonaria ou a representação de Nossa Senhora dentro do traçado. É realmente uma grande coincidência, mas não há nenhuma comprovação histórica sobre essa teoria”.

As principais intervenções e revitalizações ao longo das décadas

Desde sua inauguração, a Praça Cívica passou por diversas intervenções, com destaque para as ocorridas a partir dos anos 2010. Inicialmente, a grande transformação recente partiu do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Cidades Históricas, coordenado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e executado pela Prefeitura de Goiânia. A obra, entregue em 2015/2016, representou uma requalificação urbana completa.

Posteriormente, a historiadora Mayara Terres detalha as mudanças: “Foram feitos novos calçamentos, recuperação paisagística e instalação de fontes luminosas. A obra… buscou reconquistar elementos idealizados pelo urbanista Atílio Corrêa Lima, seu projetista, respeitando as características do estilo art déco, bem como a recuperação do Monumento às Três Raças, do Pórtico e do Obelisco”.

Monumento das Três Raças | Foto: Alex Martins

Ademais, ela lista outras alterações significativas: “o piso asfáltico foi substituído por pedra portuguesa, dois quiosques foram substituídos por novos, metálicos e com sanitários acessíveis, e foram criados espaços de convivência para a população, além de uma ciclofaixa e de uma rota acessível em toda a área”.

Paralelamente, os edifícios do entorno também foram alvo de ações. “A mudança recente mais significativa… foi justamente a obra de requalificação da Praça Cívica, via PAC Cidades Históricas”, afirma Terres, destacando que o objetivo era “conciliar a recuperação de aspectos arquitetura original exaltando as características do estilo Art Decó, com as demandas urbanísticas arquitetônicas contemporâneas, tal como a acessibilidade por toda a praça”.

Na mesma linha, o presidente da Sociedade Art Déco de Goiânia (SODÉCO), Gutto Lemes, corrobora a importância dessa intervenção: “É uma praça que foi restaurada, depois de um trabalho feito entre a Prefeitura e o Iphan também. E, antes, ela era um estacionamento, então foi entregue do jeito que a conhecemos hoje”.

Foco nos prédios-ícones: Restauros em andamento e recentes

Atualmente, a atenção se volta para os monumentais prédios que circundam a praça. Um dos mais emblemáticos, o Museu Goiano Professor Zoroastro Artiaga, iniciou em 2024 uma restauração completa.

O prédio de 1946, projeto do arquiteto polonês Kazimierz Bartoszewski, já havia passado por uma significativa reestruturação entre 1999 e 2003. No entanto, a obra atual é vista como a mais profunda. 

“Está sendo feito um trabalho bem detalhado, acho que é o primeiro trabalho feito de restauração mais completa do prédio”, comenta Gutto Lemes. Ele ainda informa que “está sendo gasto R$ 6,6 milhões, uma restauração mais detalhada”.

Museu Zoroastro Artiaga | Foto: Marina Adorjan

De forma similar, o Palácio das Esmeraldas, sede do governo estadual, acaba de passar por uma nova restauração. Após uma grande reforma entre 2013 e 2016, seguindo diretrizes do Iphan, uma revitalização focada em reparos estruturais e fachadas foi concluída e entregue em abril de 2025. 

“Esse ano, no primeiro semestre, foi também feita a restauração da fachada do Palácio. O processo de restauro foi na parte da fachada, na parte externa do Palácio das Esmeraldas, que foi a troca do revestimento, mas conservando a cor verde ainda”, detalha Lemes.

Restauração devolveu ao Palácio das Esmeraldas suas características originais | Foto: Walter Folador e Júnior Guimarães)

Outros imóveis também estão no radar. “Tem um outro prédio ao lado do palácio, que é o antigo Fórum Tribunal de Justiça, que está sendo restaurado também. Então, o Estado está fazendo o dever de casa dele, que é restaurar os prédios. Esse ano é o centenário, então está bem adiantado com essa questão dos prédios da Praça Cívica”, observa o presidente da SODÉCO.

A lista de obras inclui ainda a antiga Chefatura de Polícia (1937), hoje sede da Organização das Voluntárias de Goiás (OVG), e o Cine Cultura.

O conjunto Art Déco e seu valor excepcional

A singularidade da Praça Cívica reside na concentração e qualidade de seu acervo arquitetônico. “É uma das praças mais importantes, que tem o maior aglomerado de Art Déco do Brasil, a nível nacional. Ali tem quase 11 prédios tombados de Art Decó em volta da praça”, afirma Gutto Lemes.

Para ele, o traçado urbano reforça essa importância: “tem também a questão do traçado, que foi inspirado no Palácio de Versalhes, em Paris… convergindo para a praça onde sempre foi o poder”.

Além disso, Lemes defende um título honorífico que está em tramitação: “nós somos hoje uma capital Art Déco do Estado de Goiás… Esse ano nós já tivemos aprovação na Câmara Federal e agora está em trâmite no Senado, isso para que Goiânia seja reconhecida como Capital Nacional do Art Deco”.

“Ela foi toda uma capital construída nesse estilo. Nenhuma outra no mundo teve essa honraria. Então, no mundo inteiro, nas minhas pesquisas, Goiânia foi a única a ser construída nesse estilo”, fundamenta. 

Acompanhamento e fiscalização

Um ponto levantado por Gutto Lemes é a transparência e o acompanhamento das obras de restauro. “Acompanhamento é visto, é só feito só por fora. A olho nu. Não tem nenhuma autorização para que a gente possa entrar e acompanhar essas obras. Até hoje eu, ao longo do tempo, estou lutando pela preservação, restauração e tudo mais, mas até hoje nunca me convidaram”, relata.

Ele continua: “A população não tem nenhuma abertura para esse tipo de ação. O que acontece é o que a gente vê. A transformação que está acontecendo é fora dos tapumes… falta uma abertura para que as pessoas conheçam o andamento também”.

Por outro lado, ele avalia positivamente a condução técnica dos trabalhos. “O  nosso Art Déco é muito simples, mas não sem perder a riqueza dele. Então, eles tentam preservar ao máximo a originalidade do prédio. E se adaptando também à questão atual”.

Monumentos da Praça Cívica e sua narrativa pública

Os monumentos da praça são componentes essenciais na construção de sua narrativa. Os edifícios originais – Palácio das Esmeraldas, Centro Cultural Marietta Telles (antiga Secretaria Geral) e o antigo Fórum – materializam o projeto de poder. 

Já as esculturas contam uma história posterior. O Monumento às Três Raças, da artista Neusa Moraes, foi instalado em 1969 no local onde havia um grande obelisco, parte da concepção original. “Para mim, o obelisco que tinha lá, o original, já era um monumento. Porque ali é o marco zero… o Atílio se enganou nessa questão de ter que tirar de novo”, opina Lemes. A escultura equestre de Pedro Ludovico Teixeira, da mesma artista, foi instalada por volta de 2010.

Mayara Terres analisa que “todos esses marcos e monumentos históricos-arquitetônicos constroem e comunicam uma história pública oficial de Goiânia, marcada pela ideia de modernidade, planejamento e centralização do poder político”.

Museu Pedro Ludovico | Foto: Prefeitura de Goiânia

Contudo, ela observa uma evolução no significado do espaço: “com o passar do tempo, especialmente a partir das transformações urbanas e sociais de Goiânia, o espaço da praça foi sendo progressivamente apropriado pela população, adquirindo novos significados. Tornando-se palco de manifestações políticas, atos públicos, disputas simbólicas e expressões de resistência”.

Desafios contínuos e a legislação preservacionista

Apesar dos investimentos, os desafios de manutenção e sinalização persistem. “Eu venho ao longo deste ano também fazendo algumas denúncias em relação às placas de informação. Tem placas que atearam fogo, a própria do Coreto mesmo, atearam fogo, está lá toda queimada. Tem placas que não são legíveis… tem placas pichadas, placas caídas”, alerta Gutto Lemes.

Ele também aponta a necessidade de modernizar a acessibilidade informacional: “essas placas deveriam ter algum QR Code, alguma coisa para deficientes visuais”.

Do ponto de vista legal, a proteção do conjunto é complexa devido ao tombamento tríplice. Mayara Terres explica o papel do Estado: “Compete à Secretaria de Estado da Cultura, por meio de sua Superintendência de Patrimônio Histórico e Artístico… autorizar intervenções em bens tombados, bem como em suas áreas de entorno”. 

Ela cita a Lei estadual nº 8.915/1980 e a Resolução nº 002/2013 – Secult como diretrizes. “Ressalta-se que a Praça Cívica… encontra-se sob condição de corresponsabilidade entre as três esferas públicas (federal, estadual e municipal)”, conclui, enfatizando que as ações são norteadas pelo “intuito de preservar suas características históricas”.

O futuro da Praça Cívica, assim como seu passado, parece destinado a ser um constante diálogo entre a pedra e a história, entre o projeto original e os anseios da sociedade que a habita.

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