Por que o economista André Lara Resende se tornou fundamental para o campo progressista?

10 abril 2023 às 15h52

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Everaldo Leite
Especial para o Jornal Opção
O economista André Lara Resende foi importante na elaboração do Plano Real e é hoje um dos maiores especialistas em moeda e inflação no Brasil. Dos anos 1990 para cá seu entendimento ideológico migrou de uma visão neoliberal para uma perspectiva desenvolvimentista. Suas defesas intelectuais, atualmente, fizeram com que a chamada Teoria Monetária Moderna (MMT) se tornasse arcabouço teórico do campo progressista e fonte de críticas às decisões do Banco Central do Brasil sobre a taxa de juros e à própria política fiscal do Governo Lula. Sim, por mais paradoxal que pareça, existem críticas progressistas ao governo progressista.
Sem dúvida, é importante primeiramente considerar o modelo monetário atual para compreender essas motivações progressistas que levaram os petistas etc. a se manifestar publicamente contra o BC nos últimos meses. A despeito da exclusão de uma menção à MMT na PEC da Transição, pelo Fernando Haddad (antes de ser indicado ministro da Fazenda) e apesar do próprio Haddad afirmar em entrevista (já em posse do cargo) que não acreditava nas premissas desta Teoria, efetivamente, grande parte dos economistas que apoiam o governo vem buscando lacunas na política e na legislação para incentivar o seu uso.

No Brasil, o modelo atual de gestão monetária se baseia numa metodologia macroeconômica anterior à grande crise internacional de 2008, que os economistas denominaram “Regra de Taylor”. John B. Taylor, em 1993, demonstrou que o Banco Central aumenta a taxa de juros básica numa proporção muito maior do que o aumento na taxa de inflação esperada. Se a inflação esperada aumenta 3%, a taxa de juros deve aumentar muito mais que 3% e imediatamente, para ter controle sobre a taxa de inflação. A Regra de Taylor, obviamente, é a responsável pelo Banco Central do Brasil manter uma taxa de juros em 13,75%.
Desde a década de 1990 até 2008, a Regra de Taylor passou a ser o comportamento “ótimo” de todo Banco Central do mundo. À regra de Taylor se junta, então, a máxima de Milton Friedman: a política monetária não deve se preocupar com o desemprego. Nesse sentido, usando os princípios da Regra de Taylor e desconsiderando a taxa de desemprego da economia, a inflação esperada – determinada pelas sugestões do setor financeiro e pelas próprias previsões do BC – produz a taxa de juros básica “adequada” e conservadora, que irá expandir ou retrair a economia.
A Regra de Taylor funciona mediante a inflação esperada, contra a qual o BC precisa atuar até alcançar a meta de inflação preestabelecida pelo Conselho Monetário Nacional. Assim, levando em consideração a crença nas “expectativas racionais” dos agentes econômicos, no “modelo de equilíbrio geral” do macroeconomista Michael Woodford e (o mais chocante) na velha “curva de Phillips” (menos desemprego = mais inflação), o BC equaciona o nível geral de preços e apresenta a combativa taxa de juros ao público. Se as teorias já são uma complicação para não-economistas (e para alguns economistas desavisados), é importante dizer que os pesos de cada membro da equação são mais obscuros que suas incógnitas (desculpem esse uso da matemática).

Aliás, a clareza sobre política monetária não é o forte no Banco Central do Brasil, bastando ler a ata das reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) para se ter essa compreensão. Ainda mais confusas são as análises sobre a ata, publicadas pelos economistas, com cada qual lutando pelo seu ponto de vista ideológico. Quem é monetarista pré-2008 dirá que o presidente do BC, Roberto Campos Neto, age corretamente ao ser fiel à Regra de Taylor e seus apêndices teóricos e práticos. Quem está fora desse conjunto técnico-ideológico fará críticas pujantes às decisões do mesmo, apontando para as motivações absurdas e as consequências imorais de se manter a taxa de juros nas alturas neste momento.
E aqui chegamos ao ponto principal deste texto, aquele que explica por que André Lara Resende se tornou importante para o campo progressista nacional. Na mesma esteira, há algumas perguntas pertinentes: Toda e qualquer inflação deve ser combatida com o mecanismo da taxa de juros? A taxa de crescimento do país e sua taxa de desemprego não tem relevância para a política monetária? Convém ao Banco Central, num momento de grave crise de crédito, focar somente no comportamento inflacionário? A relação dívida/PIB é realmente uma barreira para a queda na taxa de juros?
Nos últimos anos, André Lara Resende tem publicado livros e artigos cujo conteúdo são defesas sólidas pela mudança severa de mentalidade no campo da macroeconomia. De fato, desde 2008 a visão dos macroeconomistas modernos se tornou muito diferente do que vinha sendo colocado em livros-textos até aquela tremenda crise do subprime, que devastou grandes instituições americanas, como o Lehman Brothers e a Seguradora AIG. Em “Juros, Moeda e Ortodoxia” (2017), “Consenso e Contrassenso” (2020) e “Camisa de Força Ideológica” (2022), o economista pai do Plano Real busca desconstruir a lógica que está por trás das concepções monetárias brasileiras.
Na definição do papel da moeda, o velho monetarismo “oficial” ainda se vale da chamada Teoria Quantitativa da Moeda (TQM), uma antiga identidade contábil (o produto nominal é sempre idêntico à quantidade de moeda vezes a velocidade de circulação da moeda), que se transformou numa demanda de moeda como ativo, servindo somente para facilitar as trocas. Subjaz, portanto, a ideia de que quando aumenta a quantidade de moeda, cai o seu preço (seu valor real). “A inflação é um fenômeno monetário”, dizia Friedman. Na forma atual, quando há uma expectativa de demanda maior de bens e serviços do que a oferta, e os preços apontam para cima, o BC atua com aumento da taxa de juros (sua ferramenta monetária), reduzindo o dinheiro disponível com a venda de títulos públicos, reduzindo a expansão do crédito dos bancos comerciais, eliminando o surto de consumo e atacando os investimentos produtivos efetivos.
Parece lógica e útil essa visão, mas não é assim que as coisas têm acontecido na vida prática dos bancos centrais do resto do mundo. Desde 2008, tem ficado claro que a política monetária dos bancos centrais não é uma operação excluída (autônoma ou independente) da política fiscal, sendo as duas, na verdade, essenciais para o movimento anticíclico da política econômica do governo. Ao manter a taxa de juros muito acima do razoável a própria dívida pública se torna um problema fiscal, já que o que explica a manutenção altista dos juros é justamente o chamado “risco fiscal” do serviço da dívida. O cachorro correndo atrás do próprio rabo. Ademais, a alta taxa de juros potencializa o crescimento da desigualdade no país, por financeirizar a economia em detrimento da produção.
O desenvolvimento socioeconômico carece de crédito e investimentos, públicos e privados, especialmente quando o país está estagnado e com desemprego. Essa é uma fórmula antigo de Keynes, que ajudou a superar os países de diversas crises. A MMT, defendida por André Lara Resende, reconhece a importância do crédito (moeda não é uma mera mercadoria, como afirmam os macroeconomistas pré-2008) através da moeda fiduciária (sem lastro em ouro) que o próprio governo emite. De fato, quem emite a própria moeda não precisa ser financiado por ninguém, somente precisa creditar os valores onde achar que deve creditar. Alan Greenspan e Ben Bernanke, dois presidentes do Federal Reserve americano, acreditam nisso. “Não usamos o dinheiro do contribuinte para pagar as contas. Nós simplesmente usamos o computador para registrar o dinheiro que vai para cada conta”, afirmou Bernanke.
Se André Lara Resende e a MMT estão corretos, é ridículo ver o governo brasileiro vivendo preocupado em “apaziguar” o mercado, quando sabemos que o poder do Estado é colossal. O que o Estado precisa fazer é disciplinar o mercado financeiro, incidindo a taxa de juros que achar melhor sobre a sua dívida e aplicando normas claras. No Brasil, o Banco Central define a sua taxa de juros conforme as previsões “convenientes” do mercado financeiro (sua clientela). Ora, o sistema financeiro privado deve a sua existência ao Estado, que institui a moeda oficial e cria as regras.
Por que o Estado precisaria temer as “ameaças” dos bancos credores da dívida pública? “Vão parar de comprar títulos, querido governo”, dizem os ideólogos do mercado e da política obtusa. Independente da taxa de juros real, os credores jamais trocariam títulos públicos por dinheiro, que nada rende, e jamais deixarão de refinanciar a dívida interna federal. O risco em títulos públicos é zero. Aliás, o governo, com autorização do Congresso, poderia pagar hoje a totalidade da dívida sem recolher um real do contribuinte, ou poderia igualar a zero a taxa básica de juros, mantendo-a assim por anos. O Brasil emite sua própria moeda e se endivida em sua própria moeda.
Mas não seria o caso de manter a taxa de juros nas alturas em função da expectativa de inflação? De fato, seria, se a inflação brasileira fosse uma inflação de demanda, que hoje está bastante aviltada pelo desemprego, pela diminuição da renda média, pelo endividamento e pela inadimplência. Consumo e investimento estão bem desanimados por aqui, gerando a necessidade de o governo expandir seus gastos e não retraí-los, como quer o mercado financeiro. A MMT, portanto, traz a possibilidade de retirar o país da prostração que se encontra, eliminando ajustes fiscais e a obrigação de obter superávits primários
Nossos velhos macroeconomistas são o problema, por não admitirem seu atraso teórico, enquanto André Lara Resende sugere uma solução concreta, que o campo progressista hoje acolhe com empolgação. A proposta da MMT já é fato nos países desenvolvidos, enquanto o Brasil continua atolado no superado fiscalismo (austeridade auto-infligida) e na visão monetarista pré-2008. Como mostra André Lara Resende, com o Quantitative easing, utilizado para arrefecer os efeitos da crise de 2008, “foi dado aos bancos centrais um mandato para emitir e gastar, para fazer política fiscal, extraorçamento, por fora das instâncias até então estabelecidas nas democracias representativas”.
Como mostra, ainda, o economista, a MMT não é somente uma ferramenta para gerir o sistema financeiro e sua implementação não leva à tão temida escalada inflacionária: “sim, é possível emitir para financiar outros tipos de gastos, inclusive sociais, como a garantia de emprego, sem provocar inflação”. Em todo caso, “a única limitação à qual os gastos públicos devem estar submetidos, além da obrigatória avaliação de custos e benefícios, é a capacidade de oferta da economia, que, se desrespeitada, pode provocar desequilíbrio nas contas externas e inflação”, afirma. O que quer dizer que a restrição política é que é a fundamental para evitar expansão financeira equivocada, ou seja, além da condição de pleno emprego.
Evidentemente, há muito o que se discutir no âmbito da MMT, sendo impossível fazê-la aqui em toda a sua extensão. O que se pode dizer é que o campo progressista e da esquerda tem em mãos uma alternativa de modelo de política monetária exequível e quer colocá-la em prática. Uma opção que significa redução expressiva na taxa de juros, retomada robusta do crédito, retomada absoluta dos investimentos públicos e privados e do consumo, além de fortalecimento da infraestrutura nacional. O efeito multiplicador dos investimentos levaria ao crescimento contínuo do denominador na relação dívida/PIB e à total irrelevância desse parâmetro atrasado de mercado.
A melhoria da economia real impactaria positivamente a economia financeira, realimentando o estoque de crédito e impulsionando a demanda. Tudo isso, sem causar expectativas inflacionárias apocalípticas e necessidades nada razoáveis de ajuste fiscal.
Everaldo Leite é economista.