O que a ciência descobriu nos últimos 20 anos que permitiu criar a primeira vacina preventiva contra o câncer
30 novembro 2025 às 13h30

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A ciência se prepara para testar uma das ideias mais ambiciosas já propostas na oncologia: impedir que o câncer de pulmão surja antes mesmo de existir.
A Universidade de Oxford e a University College London (UCL) iniciarão, no verão de 2026, o primeiro ensaio clínico humano da LungVax, a primeira vacina preventiva do mundo direcionada ao câncer de pulmão.
O projeto nasce de uma aposta ousada: transformar décadas de pesquisa sobre mutações iniciais em uma intervenção capaz de identificar e destruir células anormais no momento zero da doença, quando o corpo ainda não apresenta sintomas e nenhum tumor pode ser detectado.
“Menos de 10% das pessoas com câncer de pulmão sobrevivem 10 anos ou mais. Isso precisa mudar — e essa mudança virá do combate ao câncer nos estágios iniciais”, disse a pesquisadora Mariam Jamal-Hanjani, líder do ensaio no UCL Cancer Institute e no Francis Crick Institute.
Como funciona a LungVax
A LungVax utiliza uma plataforma muito semelhante à vacina Oxford/AstraZeneca contra a Covid-19 — um vetor viral não replicante que leva, até as células, um conjunto de instruções genéticas.
Essas instruções fazem o corpo produzir proteínas que funcionam como marcadores de risco, como o NY-ESO-1, presentes em células pulmonares que começam a acumular mutações iniciais.
Esses marcadores são chamados de neoantígenos ou antígenos associados a tumores — sinais moleculares que surgem muito cedo, quando a célula ainda não se tornou cancerosa, mas já está se desviando do comportamento normal.
Ao apresentar esses sinais ao sistema imunológico antes que a doença apareça, a vacina o treina para criar uma vigilância contínua no pulmão, capaz de identificar e eliminar essas células alteradas logo no começo.
É um roteiro inverso ao da maioria das vacinas contra câncer já estudadas, que são terapêuticas: usadas em pessoas que já têm tumores. Esta, ao contrário, é preventiva para grupos específicos de risco.
Quem deve receber a vacina no início
Segundo o protocolo aprovado, a LungVax será testada inicialmente em dois públicos:
Pessoas com câncer de pulmão em estágio inicial
Que removeram o tumor com cirurgia, mas ainda apresentam alto risco de recidiva.
Participantes do programa de rastreamento do NHS
Indivíduos que realizam tomografias periódicas por apresentarem nódulos suspeitos ou alterações pulmonares que exigem acompanhamento.
Especialistas brasileiros destacam que, caso futuramente seja aprovada, o público-alvo deve incluir:
- fumantes e ex-fumantes com alto risco acumulado;
- pessoas com forte histórico familiar;
- imunossuprimidos;
- sobreviventes de câncer de pulmão.
Mas reforçam que essa discussão só acontecerá após várias fases clínicas.
As fases do estudo
O ensaio clínico recebeu 2,06 milhões de libras da Cancer Research UK, com apoio da CRIS Cancer Foundation, e terá duração inicial de quatro anos.
Fase 1 – Segurança e dose ideal (30 voluntários)
- determinar a dose mais segura;
- avaliar efeitos colaterais;
- observar se há ativação de células de defesa.
É a primeira vez que a vacina será administrada em humanos.
Fase 2 – Resposta imunológica e primeiros sinais de eficácia (aprox. 560 pessoas)
Após confirmar que é segura, a vacina será testada em grupos maiores para responder:
- A vacina reduz a chance de o câncer voltar?
- Ela previne a formação de novos tumores em pessoas de alto risco?
- O efeito imunológico é consistente?
Ainda não é a etapa definitiva — essa será a fase 3, de larga escala.
“Anos de pesquisa sobre a biologia do câncer, compreendendo as mudanças fundamentais nos estágios iniciais da doença, serão agora colocados à prova”, disse Sarah Blagden, cofundadora do LungVax pela Universidade de Oxford.
Por que o câncer de pulmão é o alvo da primeira vacina preventiva
O câncer de pulmão é:
- o que mais mata no mundo há 30 anos;
- um dos mais difíceis de detectar cedo;
- silencioso nos estágios iniciais;
- altamente associado ao tabagismo (72% dos casos no Reino Unido).
Além disso, seus tumores possuem neoantígenos bem definidos, o que facilita a criação de vacinas que treinam o sistema imune a identificá-los.
“Se a vacina mostrar eficácia, será revolucionária”, afirma o oncologista brasileiro Stephen Stefani.
A ciência, as vidas envolvidas e o impacto esperado
O estudo também ganha força com histórias como a de Graeme Dickie, 55 anos, que ajudou os pesquisadores na preparação do ensaio. Diagnosticado em 2013 e novamente em 2017, ele nunca fumou e passou por cirurgias, mais de 80 sessões de quimioterapia e tratamentos-alvo.
“Sou a prova de que a pesquisa salva vidas”, diz ele. “Não vou me beneficiar diretamente da LungVax, mas espero que outras pessoas possam.”
Embora considerada promissora, a vacina não substitui o que mais reduz o risco de câncer de pulmão:
parar de fumar.
As cientistas ressaltam que a vacina poderá ser uma nova ferramenta, mas não um substituto para mudanças de comportamento.
O próximo passo
Se a fase 1 e a fase 2 mostrarem resultados promissores, o Reino Unido deverá avançar para testes em larga escala, que podem incluir milhares de participantes.
A diretora da Cancer Research UK, Michelle Mitchell, resume a expectativa:
“Chegamos a um ponto em que o conhecimento acumulado sobre a biologia do câncer abre novas oportunidades para preveni-lo. Este ensaio é o primeiro passo sério rumo a um mundo onde as pessoas vivam mais, sem o medo do câncer de pulmão.”
