Enquanto as campanhas do Dezembro Vermelho, mês de conscientização sobre HIV/Aids instituído pela Lei nº 13.504/2017, tradicionalmente miram o público jovem, um grupo demográfico enfrenta uma epidemia silenciosa e crescente: os idosos brasileiros. Segundo o Boletim Epidemiológico sobre HIV/Aids do Ministério da Saúde, entre 2012 e 2022, a população de faixa etária acima de 60 anos registrou um salto de 441% no número de diagnósticos de HIV, contrastando com a tendência de estabilização ou queda em outros grupos.

Entre 2011 e 2021, foram notificados 12.686 diagnósticos de HIV em pessoas com 60 anos ou mais, além de 24.809 casos de Aids e 14.773 mortes nessa faixa etária. Os números, contudo, são apenas a face mais visível de um problema estrutural. Segundo a geriatra Alessandra Tieppo, da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), a raiz do crescimento está num “preconceito” arraigado. “Existe o preconceito de que a pessoa idosa não tem uma atividade sexual ativa e tampouco se coloca em comportamento de risco. Isso é uma inverdade”, afirma a especialista em entrevista ao Jornal Opção.

Consequentemente, conforme explica Alessandra, a ausência de diálogo gera falta de educação e prevenção. “Se a gente tem esse preconceito, a gente não tem a conversa sobre o assunto, não tem diálogo e, não tendo o diálogo, não tem educação. Então, acaba que aumenta o número, eles acabam se expondo mais”, analisa.

Nesse contexto, o diagnóstico frequentemente ocorre apenas quando a doença já está avançada. “Existem casos de pacientes que começam a ter infecções oportunistas e, num certo momento, alguém lembra que existe essa possibilidade. Mas essa demanda [por teste], infelizmente, não existe justamente porque não tem esse hábito, essa educação da população em si e até mesmo dos funcionários de saúde, de pensar que essa população pode estar sendo exposta a esse risco”.

O médico infectologista Marcelo Daher corrobora a análise ao destacar que a suposição de que idosos não se infectam é um “ledo engano”. “Se ela tem atividade sexual, se ela não tem um parceiro fixo, ela pode se infectar e, às vezes, essa negativa de não pensar no diagnóstico faz com que o paciente chegue para a gente numa forma avançada da doença e muitas vezes com um quadro grave, podendo inclusive chegar a óbito”, alerta.

Mudanças sociais e comportamentais ampliam risco

A geriatra Alessandra Tieppo observa uma transformação nos hábitos de relacionamento da terceira idade. “Houve um impacto enorme sobre a vida sexual da pessoa idosa… até esses sites de relacionamento. Há 15, 20 anos atrás, o relacionamento era restrito a pequenos grupos… Hoje, o leque de oportunidades se ampliou”, contextualiza.

No entanto, essa nova liberdade não veio acompanhada de uma cultura de prevenção adaptada. “Como não tem esse processo de educação, nem um comportamento de se prevenir, até ele mesmo se acha imune”, complementa.

Dra. Alessandra Tieppo, geriatra da SBGG | Foto: Arquivo pessoal

Nesse ponto, o uso do preservativo esbarra em barreiras geracionais e práticas. “O uso de preservativo é uma coisa muito restrita, até ou por dificuldade de manuseio, ou por preconceito, e acaba se expondo ao risco”, destaca geriatra.

A educação sexual inexistente para essa geração criou uma objeção cultural ao método. “Os adultos não tiveram a educação, a oportunidade, isso nunca foi discutido na sua casa, em escola, e até mesmo com o seu médico. Então, isso faz com que ele tenha a objeção de usar o preservativo”, explica.

Vulnerabilidade biológica e a sobreposição de comorbidades

Paralelamente, aspectos fisiológicos do envelhecimento tornam os idosos mais suscetíveis às consequências da infecção. A especialista da SBGG cita a imunossenescência, o declínio natural do sistema imunológico.

“Por isso que uma vacina poder precisar ser repetida várias vezes nessa faixa etária”, exemplifica. Ademais, a presença de comorbidades comuns, como diabetes e hipertensão, interfere no funcionamento imunológico, aumentando a vulnerabilidade a infecções.

“Ele acaba sendo mais vulnerável às infecções. Não quer dizer que é o envelhecimento, mas, sim, consequência das doenças que aparecem ao longo da vida”, pondera.

Os desafios do tratamento na terceira idade

Posteriormente, quando o diagnóstico é finalmente estabelecido, o manejo do HIV no idoso apresenta complexidades adicionais. Leonardo Oliva, geriatra e presidente da SBGG, enfatiza a necessidade de uma abordagem integral. “É essencial garantir a adesão à terapia antirretroviral (TARV), tratar as infecções oportunistas e manter o acompanhamento médico. Outro ponto que não pode ser esquecido é a saúde mental desses pacientes, que frequentemente enfrentam estigma, baixa autoestima e sofrimento emocional”, ressalta.

Alessandra Tieppo concorda e acrescenta que a polifarmácia – uso de múltiplos medicamentos para outras condições crônicas – pode complicar a terapia. “O tratamento que é com antirretrovirais. Às vezes, ele não é possível por causa das outras comorbidades, ou ele é mais difícil por causa das outras comorbidades que uma pessoa idosa pode ter. Por isso, é importante a triagem e o diagnóstico precoce”, argumenta.

Diante desse quadro, a médica defende uma abordagem multiprofissional como fundamental para o cuidado. “Por ser uma doença crônica estigmatizada, a gente tem a necessidade de uma abordagem multiprofissional, como uma equipe completa, onde você vai ter o médico, o enfermeiro, o psicólogo, até o educador físico, nutricionista, para fazer com que essa pessoa não se sinta sozinha”, propõe.

Da mesma forma, o envolvimento da família é importante para combater o isolamento e o preconceito que agravam a progressão da doença.

População envelhece com HIV, e isso também exige atenção

O médico infectologista Marcelo Daher chama atenção para outra questão não tão levada em consideração: o envelhecimento das pessoas que já vivem com HIV há décadas. Ele explica que o avanço dos tratamentos permitiu que muitos pacientes diagnosticados nos anos 1990 e 2000 chegassem à terceira idade com qualidade de vida, mas isso traz novos desafios clínicos.

“As pessoas vivem muito mais com o próprio HIV, qualidade de vida, sobrevida, então com o diagnóstico elas conseguem viver muito tempo e vão viver com HIV.”

Médico infectologista Marcelo Daher | Foto: Arquivo pessoal

Segundo Daher, o problema mais frequente é o diagnóstico tardio entre idosos recém-infectados, já que muitos profissionais não consideram o HIV como hipótese em pessoas mais velhas, o que leva a casos graves e até à morte

Além disso, pacientes idosos vivendo com HIV enfrentam o envelhecimento comum, doenças cardíacas, pulmonares e vasculares, que podem ser agravadas pela presença do vírus. Entretanto, o acompanhamento contínuo costuma ajudar a identificar problemas mais cedo.

Profissionais de saúde precisam de ações mais ativas 

Mudar esse cenário exige, antes de tudo, uma transformação na prática clínica. A geriatra Alessandra Tieppo ressalta que o profissional de saúde precisa ser proativo. “Essas perguntas sobre a vida sexual, sobre o comportamento de risco, precisam ser do profissional de saúde, porque ele atende um ambiente seguro. Ele tem que ter essa expertise também de poder conseguir abordar isso com a pessoa idosa”.

Para ela, é preciso “educar os profissionais de saúde” para que lembrem que o envelhecimento não anula a sexualidade nem a exposição a riscos. 

Segundo Alessandra, o desafio vai além da medicina, ele é, sobretudo, cultural e requer uma escuta ativa e cuidadosa. “É uma fala ativa, mas uma escuta cuidadosa também, por deixar que o paciente idoso fale, que a família tire as suas dúvidas”, finaliza.

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