Período pré-eleitoral, indústria do café e carne forçaram recuo tático das relações entre Brasil e EUA

11 outubro 2025 às 21h00

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Especialistas em relações internacionais observam o movimento de reaproximação diplomática do governo norte americano ao Brasil como um avanço positivo para ambas as nações. Um encontro entre os presidentes Lula e Trump está previsto para acontecer durante a Cúpula da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), na Malásia, em outubro. O momento de fim das hostilidades diplomáticas e comerciais foi iniciado durante breve encontro na Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), e reforçado por um telefonema e a conversa entre Mauro Vieira, chanceler brasileiro, e o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio.

Apesar dos avanços, há temor, tanto no Itamaraty quanto de especialistas, de que a imprevisibilidade de Donald Trump. Recentemente, os Estados Unidos impuseram humilhações públicas a outros chefes de estado, como Canadá, Coreia do Sul, Ucrânia e África do Sul.
A internacionalista Danyelle de Lima Wood, professora e no Centro Cultural Brasil e Estados Unidos Goiânia, reforça que a estatégia do Itamaraty de fazer o contato por videoconferência e de tentar um encontro em país neutro pode evitar constrangimentos. “O gesto, diplomaticamente, é muito imoprtante. O Itamaraty é uma isntituição muito sólida no Brasil e eles programaram o encontro desta forma para conseguir controlar eventuais constrangimentos. A escolha de fazer a reunião em um território neutro se deu para tornar menos instáveis as reações de Trump”, aponta.

Wood explica que o desconforto público imposto a outros chefes de estado, que se reuniram com o presidente americano em Washington, está diretamente ligado ao local onde essas reuniões ocorreram. “Em uma reunião na Sala Oval, na Casa Branca, percebemos que presidentes ficam sucetíveis a armadilhas do governo Trump. Isso aconteceu não só com o Zelensky, da Ucrânia, mas também com o presidente da Coreia do Sul, Lee Jae Myung”, afirma.
Imprevisibilidade
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Goiás (UFG), Diego Trindade D’Ávila Magalhães, Trump tem uma postura anti-intelectual, que implica na desvalorização do profissionalismo diplomático, além de um perfil centralizador. “Com isso, Trump tende a tomar decisões a partir de convicções pessoais, ignorando o Departamento de Estado, a embaixada pertinente e até conselheiros da Casa Branca”, aponta o professor.
Essa imprevisibilidade, segundo Magalhães, quebra princípios e padrões históricos de comportamento diplomático com efeitos duradouros. “Uma das consequências disso é um conjunto de problemas para os próprios cidadãos e empresas dos EUA. Isso tem se tornado claro a cada dia. E a causa fundamental é realmente o menosprezo da profissão de diplomata na formulação da política externa”.
O que esperar
O futuro das relações entre Brasil e Estados Unidos será marcado por uma combinação de cautela extrema do Itamaraty e pela expectativa de resultados moderados, mas que leve a uma negociação mais efetiva sobre o conjunto de temas da agenda bilateral.

Magalhães diz que a previsão não é de grandes rupturas ou decisões impactantes. A leitura é de que o cenário continuará instável e de alto risco. “Espera-se resultados moderados”. Ele explica ainda que a reunião entre os equivalentes diplomáticos carrega a mesma imprevisibilidade com Trump.
Após o telefonema entre Veira e Rubio, o presidente Lula indicou que pode haver conversas a partir de agora. “E vamos ver se a gente consegue se acertar, porque o Brasil não quer briga com os EUA”. Segundo o Itamaraty, ambos tiveram uma “conversa positiva”, na qual acertaram quais equipes técnicas de ambos os governos devem se reunir em Washington, em data indefinida.
A informação foi confirmada pelo porta-voz do Departamento de Estado, Tommy Pigott, que declarou que ambos concordaram “em se reunir em breve e estabelecer um mecanismo bilateral para promover interesses econômicos mútuos e outras prioridades regionais importantes”.
Período pré-eleitoral e pressão do café e carne motivaram recuo
O recuo no enfrentamento do presidente Donald Trump ao governo brasileiro, apontam os especialistas, pode estar ligado a dois fatores: a pressão das indústrias de café e carne e a aproximação do período eleitoral nos dois países. Ao anúnciar a sobretarifa de 50% sobre os produtos brasileiros, o presidente americano citou, em carta enviada ao governo brasileiro em julho deste ano, o tratamento dado ao ex-presidente Jair Bolsonaro, além de uma injusta balança comercial
Wood lembra que os Estados Unidos têm pela frente as midterm elections, as eleições de meio de mandato, que ocorrem a cada quatro anos, sempre na metade do mandato presidencial. Nelas, são são renovadas todas as cadeiras da Câmara dos Representantes, um terço do Senado e diversos cargos estaduais, como governadores e asseambleias locais. Tradicionalmente, essas eleições funcionam como um “termômetro político” para o governo em exercício, influenciando diretamente a agenda econômica e comercial do país.

“Quando o presidente não está indo bem, geralmente ele perde a maioria nas duas casas. Nas últimas pesquisas, Trump vem sofrendo com a desaprovação, e seu ponto de maior rejeição é a economia. Em especial, a inflação, que vem de uma alta histórica mas em aumento desde que ele assumiu a presidência”, explica. Ela pontua que um dos fatores que levam à inflação é justamente a guerra tarifária.
A internacionalista aponta ainda que reação do Brasil ao anúncio das tarifas norte-americanas foi interpretada como uma demonstração de força diplomática e estratégica. Ao convocar uma videoconferência emergencial com os países membros do BRICS, o governo brasileiro sinalizou que não enfrentaria isoladamente a pressão dos Estados Unidos e que contava com respaldo político e econômico de um bloco relevante no cenário internacional. O gesto reforçou a mensagem de que o Brasil mantém capacidade de articulação global, atuando de forma coordenada com China, Índia, Rússia e África do Sul, e que sua política externa busca preservar autonomia e equilíbrio em meio às disputas comerciais e geopolíticas entre as grandes potências.
Lula e PT surfaram no Tsunami
Domesticamente, o presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) surfam o tsunami do tarifaço com vantagem sobre a oposição. A pesquisa Quaest divulgada na primeira quinzena de outubro, exatamente um ano antes das eleições, revelou que o presidente brasileiro saiu mais forte após o encontro com Trump. Lula capitalizou eleitoralmente o discurso de defesa da soberania ante a ofensiva americana, bem como reforçou a imagem de negociador ao reaproximar os países com a promessa de menores tarifas.

Magalhães pontua que essa tensão acendeu um fervor nacionalista no Brasil e que o “PT fez o que faria um partido brasileiro capaz de defender a soberania nacional. Mais que isso, o presidente tem conseguido instrumentalizar a diplomacia como ferramenta de aumento da autonomia e influência, e como meio de conseguir insumos para o desenvolvimento econômico”, diz o professor da UFG.
Magalhães avalia ainda que o cenário político interno tende a permanecer favorável ao governo brasileiro nos próximos meses. Segundo ele, o desgaste internacional dos Estados Unidos e a narrativa de defesa da soberania nacional reforçaram o discurso do Palácio do Planalto. “A tendência de Lula e o PT aumentarem o seu apoio continua, sem sinal de enfraquecimento”, afirma. Para o especialista, o episódio do tarifaço acabou se convertendo em um ativo político para o governo, ao consolidar a imagem de um Brasil que reage a pressões externas e busca reposicionar-se de forma mais autônoma nas relações internacionais.
Café, carne mais caros e papel da indústria goiana na distensão
Durante o período do “tarifaço” imposto pelos Estados Unidos, o Brasil, e em especial Goiás, sofreram prejuízos expressivos que colocaram em risco cadeias produtivas inteiras do agronegócio e da indústria. O estado, segundo maior exportador nacional de carnes e açúcar para o mercado americano, viu a competitividade de seus produtos cair drasticamente após a imposição de tarifas adicionais de até 50%, tornando as vendas para os EUA praticamente inviáveis.

Nesse contexto, o papel da Federação das Indústrias do Estado de Goiás (FIEG) foi central na resposta brasileira. A entidade, em parceria com o Instituto Mauro Borges (IMB), realizou estudos técnicos que quantificaram os impactos da medida, estimando um prejuízo próximo de R$ 1,4 bilhão no PIB goiano, sendo R$ 554 milhões de perdas diretas e R$ 802 milhões em efeitos indiretos. As análises demonstraram que o setor de carnes foi o mais afetado, com risco de retração superior a R$ 340 milhões e ameaça real de demissões em larga escala. Munido desses dados, o governo brasileiro pôde articular, por meio do Itamaraty e da FIEG, uma reação diplomática embasada, que incluiu negociações diretas, propostas de redirecionamento das exportações e medidas de compensação econômica interna.
Ao mesmo tempo, a indústria do café desempenhou um papel distinto, mas igualmente decisivo, na construção do cenário de distensão entre Brasília e Washington. O café brasileiro, insumo essencial para o mercado consumidor americano — responsável por cerca de um terço dos grãos moídos nos Estados Unidos —, tornou-se o ativo político que pressionou diretamente a Casa Branca. A tarifa de 50% sobre o produto elevou em 3,6% o preço do café no varejo americano já no primeiro mês da medida, a maior alta em 14 anos, intensificando a inflação e a insatisfação popular em um período de pressão econômica.
Economia americana sentiu
O impacto no bolso do consumidor fez com que o tema ganhasse relevância doméstica nos EUA, levando o próprio Donald Trump a reconhecer publicamente a “falta de alguns produtos brasileiros”, citando o café como exemplo. Essa mudança de postura foi resultado da diplomacia do setor privado, articulada entre o Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé) e a National Coffee Association (NCA), que apresentaram estudos mostrando que cada dólar gasto na importação de café brasileiro gera até US$ 43 na economia americana, movimentando US$ 343 bilhões e sustentando mais de 2 milhões de empregos.
A combinação dessas frentes — a ação técnica da FIEG e a pressão política exercida pelo setor cafeeiro — criou o ambiente necessário para que a distensão diplomática entre Brasil e Estados Unidos ganhasse força. De um lado, Goiás forneceu ao governo federal a base de dados que dimensionou o impacto real do tarifaço, legitimando a reação diplomática; de outro, o café brasileiro se tornou o símbolo do custo político das tarifas dentro dos próprios Estados Unidos.
O resultado foi uma mudança gradual de tom nas negociações e a reabertura de canais de diálogo entre os dois países, reforçando a percepção de que o Brasil, apoiado por seus setores produtivos e por blocos como o BRICS, ainda é um ator de peso capaz de mobilizar tanto argumentos econômicos quanto influência política no cenário internacional.
Exportação brasileiras e goianas no período do tafiraço
Produto | Âmbito | Período | Valor (US$ FOB) | Peso Líquido (kg) |
Café (0901) | Brasil | 2024 | 1.901.497.062 | 454.038.146 |
Café (0901) | Brasil | 2025 | 1.518.645.853 | 237.567.531 |
Café (0901) | Goiás | 2024 | 11.563.281 | 2.579.980 |
Café (0901) | Goiás | 2025 | 9.145.016 | 1.228.936 |
Carne Congelada (0202) | Brasil | 2024 | 885.030.540 | 179.737.971 |
Carne Congelada (0202) | Brasil | 2025 | 859.292.322 | 172.494.532 |
Carne Congelada (0202) | Goiás | 2024 | 150.384.035 | 29.882.996 |
Carne Congelada (0202) | Goiás | 2025 | 236.393.866 | 47.578.298 |
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