COMPARTILHAR

O voto do ministro Luiz Fux no julgamento da tentativa de golpe de Estado, envolvendo Jair Bolsonaro e outros sete réus, trouxe à tona questões centrais sobre a interpretação do direito penal, a responsabilidade política e a proteção do Estado democrático de direito no Brasil. Divergindo abertamente de Alexandre de Moraes e Flávio Dino, Fux desenvolveu uma postura que, para muitos, minimiza a gravidade dos atos praticados em 8 de janeiro de 2023.

Ao afirmar que não há golpe de Estado sem a deposição de um governo legitimamente eleito, Fux estabelece um planejamento formalista para a configuração do crime de abolição violenta do Estado democrático de direito. Na prática, isso reduz a possibilidade de responsabilização de atos preparatórios ou de conspirações políticas organizadas — mesmo quando envolvem manifestações, acampamentos e planos de uso de força contra instituições democráticas. Para o ministro, turbas desordenadas e “bravatas” não se enquadraram como tentativa de golpe, o que, na avaliação de juristas, ignora a intenção e o contexto de ameaças específicas à democracia.

Além disso, Fux questionou a competência da Primeira Turma para julgar os réus, defendendo que o caso deveria tramitar no plenário do STF. Curiosamente, esta crítica se choca com a sua posição de 2014, quando votou a favor da descentralização de julgamentos de autoridades com foro privilegiado para as turmas, decisão que visava justamente desafogar o plenário do Supremo. Hoje, a mesma estrutura que ele ajudou a criar é criticada, justamente quando beneficia a defesa de Bolsonaro. Essa mudança de interpretação expõe uma possível conveniência circunstancial, alimentando a percepção de que decisões jurídicas podem, em determinadas circunstâncias, se alinhar a interesses políticos.

Outro ponto relevante é a abordagem de Fux sobre o crime de organização criminosa. Segundo o ministro, a reunião de vários agentes ou a existência de um plano delitivo não configurava, por si só, crime de associação, deixando de lado a caracterização de que os governantes atuaram de forma organizada para consolidar o golpe. Do ponto de vista jurídico, o argumento é formalmente consistente — a lei exige tipicidade concreta e prova de objetivos duradouros — mas politicamente frágil, dado que ignora a complexidade da articulação golpista e dos atos preparatórios documentados.

O voto de Fux também abre brechas para questionamentos sobre a colaboração premiada de Mauro Cid, embora tenha decidido mantê-la, e pode gerar precedentes para recursos futuros, inclusive tentando levar o caso para o plenário. Essa decisão reforça a percepção de que a interpretação da lei pelo STF pode ser seletiva, com impactos não apenas jurídicos, mas políticos, ampliando o espaço de defesa de ex-presidentes e aliados no contexto de crises institucionais.

Em suma, o voto de Fux é uma demonstração clara dos desafios enfrentados pelo Supremo: equilibrar a legalidade estrita com a proteção da democracia em momentos de risco institucional. Embora seja juridicamente defensável em alguns aspectos, seu impacto político é inegável, pois oferece argumentos para minimizar a gravidade da trama golpista e servir como aceno aos bolsonaristas. A democracia brasileira, nesse contexto, fica diante de uma tensão delicada: a necessidade de rigor jurídico versus a urgência de proteger as instituições contra ataques organizados e planejados.

Leia também: “STF já tinha entendido pela competência de analisar o processo do Bolsonaro”, avalia Bartira Miranda sobre fala de Fux

“Declaro a nulidade de todas as ações do STF sobre esse processo”, afirma Fux em julgamento da trama golpista