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A polêmica sobre o que matou mais, o nazismo ou o comunismo, vez ou outra reaparece em debates públicos e redes sociais. Mas, para historiadores, essa comparação baseada apenas em números é uma forma limitada e distorcida de compreender dois dos regimes mais brutais do século XX.

Em entrevista ao Jornal Opção, o historiador Rainer Sousa afirma que “essa é uma questão que tende mais a distorcer do que a esclarecer quando se reduz tudo a elementos numéricos”. Segundo ele, tratar o tema como uma disputa de cifras empobrece o debate histórico e desvia o foco da natureza ideológica e política dos regimes.

“Quando vira uma mera disputa por números, a gente empobrece demais a análise”, observa. “É como quando chamam a ditadura brasileira de ‘ditabranda’ porque matou menos que as da Argentina ou do Chile. Isso não torna o regime menos autoritário.”

Sousa explica que o termo “comunismo”, no contexto da comparação, costuma ser usado de forma imprecisa. “Não se trata do comunismo em tese, mas de um regime socialista autoritário que se estabeleceu sob Stalin. E há historiadores que afirmam que ele regrediu na agenda do socialismo”, explica.

Ainda assim, o historiador destaca o papel crucial da União Soviética na derrota do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. “Quando olhamos apenas para os números, perdemos de vista o que está sendo derrotado. Ainda que o estalinismo tenha seus problemas, sua contribuição foi decisiva para conter um regime baseado na pureza étnico-racial.”

Para o pesquisador, a diferença fundamental entre as duas ideologias está em suas bases teóricas. “O Estado nazista era um Estado étnico. Já o socialismo e o comunismo, em seus princípios, têm uma visão universalista da humanidade. Enquanto o nazismo exclui e elimina por raça, o comunismo, em tese, busca a igualdade social, por mais que, na prática, experiências autoritárias tenham traído esses ideais.”

Sousa enfatiza que é necessário distinguir entre teoria e prática. “As experiências socialistas autoritárias existiram e foram catastróficas, mas, quando olhamos para o que está na base teórica do socialismo. em Marx, em Lenin, não há defesa de perseguição racial. O nazismo, ao contrário, faz isso abertamente. Quando um regime se autodeclara nazista e mata por questões raciais, está sendo coerente com sua ideologia. Já um regime socialista que faz isso está se contradizendo completamente.”

Ao comentar a condenação moral dos dois regimes, o historiador é categórico: “O nazismo é mais amplamente condenável porque condenava pessoas à morte simplesmente por serem quem são: judeus, negros, homossexuais, ciganos. Tinha um ideal de sociedade altamente excludente e autoritário.”

Sousa critica o uso político da comparação entre os regimes: “Comparar ‘quem matou mais’ é uma estratégia política medíocre, rasa, pobre mesmo, que evita discutir o conteúdo das ideologias. Reduzir tudo a números é uma forma obtusa de análise.”

Foto: Arquivo pessoal

Apesar disso, o debate sobre os números não pode ser completamente ignorado. O editor do Jornal Opção Euler de França Belém, historiador pela PUC Goiás , reconhece que ambas as experiências foram tragédias humanas de proporções gigantescas.

“As duas grandes tragédias do século 20 são o comunismo, iniciado em 1917 com a Revolução Russa, e o nazismo, começado em 1933 com Adolf Hitler”, afirma.

Para Euler Belém, é difícil definir qual foi pior. “Fica mais próximo da verdade sugerir que os dois totalitarismos são ruins. Inomináveis”, diz. Ele recorda que “o comunismo matou, tão-somente em dois países, cerca de 100 milhões de pessoas, 30 milhões na União Soviética de Stálin e 70 milhões na China de Mao Tsé-tung”.

Além disso, lembra o caso do Camboja, “onde quem usava óculos poderia ser condenado à prisão ou à morte pelo regime de Pol Pot”.

“O nazismo matou menos, é certo, mas é responsável pelo Holocausto, a matança sistemática de judeus”, destaca Belém. “Cerca de seis milhões de judeus foram exterminados, além de opositores, testemunhas de Jeová, ciganos e homossexuais. Somando os campos de extermínio e o front de guerra, o nazismo pode ter matado cerca de 20 milhões de pessoas (ou muito mais), e foi o principal responsável por uma guerra que tirou a vida de 60 a 80 milhões.”

Rainer Sousa reforça que o aprendizado deixado por essas experiências deve ir além da contagem de mortos. “A história não é uma varinha de condão que salva a humanidade, mas pode nos ajudar a construir algo mais humano e inclusivo”, afirma.

“O debate honesto sobre essas experiências, com seus lados negativos e deletérios, é essencial para que a gente possa olhar para o passado e projetar um futuro melhor.”

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