Os estudos acadêmicos voltados aos feminismos negros surgem como resposta à exclusão das mulheres negras tanto do movimento feminista branco, que negligenciava a questão racial, quanto do movimento negro, que não priorizava as questões de gênero. No Brasil, os coletivos de mulheres negras passam a dar visibilidade a essas mulheres na luta pelas próprias pautas políticas.

Mulheres negras, pesquisadoras e construtoras de alicerces capazes de “aliviar dores” de outras que virão: é a elas que o Jornal Opção se refere ao apresentar Luciana de Oliveira Dias, Anna Benite e Valéria Oliveira. Elas são representantes de melhorias sociais que partem de inquietações pessoais — seja o estranhamento de ver poucas como elas nos bancos das universidades públicas antes do surgimento das cotas, seja a indignação diante de mulheres competentes sendo impedidas de assumir cargos legitimamente conquistados.

A professora de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG), Luciana Dias, é a atual secretária de Inclusão da instituição. Ela relata ter tido uma formação tardia justamente por ser uma mulher negra. Enfrentou várias barreiras até garantir o ingresso no curso superior. “Fiz Ciências Sociais na UFG e, logo depois, fiz mestrado e doutorado também em Ciências Sociais, sendo que o pós-doutorado é em Direitos Humanos e Interculturalidade”, contextualiza.

Luciana Dias é a atual secretária de Inclusão da UFG | Foto: Arquivo Pessoal

Segundo Luciana Dias, o período da graduação foi marcado pela inquietação profunda ao perceber a quase ausência de pessoas negras nos corredores da UFG. “Eu era praticamente a única aluna da turma. Tinha um outro colega, então éramos nós dois — esse colega negro e eu —, e essa inquietação foi aumentando à medida que eu subia de grau na minha formação”, explica.

Durante o mestrado e doutorado na UnB, não teve colegas negros. Com isso, sua inquietação se aprofundou. Desde o TCC, em que estudou o grupo de dança “Pérola Negra”, passou a ter consciência sobre seu papel na sociedade. “Há 15 anos ministro aulas nos cursos de graduação e pós-graduação, sempre tematizando essa questão que envolve as mulheres negras […]. Elas têm mais dificuldade de garantir os seus direitos assegurados.”

O racismo experimentado pelas mulheres negras é qualificado pelo machismo, já que a sociedade brasileira, além de racista, é também machista. A lei que vigora nesse país e que é a mais antiga é a lei do patriarcado

A professora trabalha com antropologia jurídica e antropologia da saúde — áreas que impulsionam reflexões sobre o lugar de opressão que as mulheres negras ainda ocupam na sociedade brasileira.

Naturalmente, a professora passou a se guiar pela corrente de pensamento do feminismo negro. “Trago escritoras negras para comporem a bibliografia que constitui os meus planos de ensino, e essas mulheres negras, como autoras no momento das aulas, têm colaborado bastante para que a gente emoldure o que podemos chamar de pensamento feminista negro, que é o que hoje eu estudo.”

Atualmente, ela observa que, mesmo recente, o feminismo negro tem ganhado espaço. “A Lélia Gonzalez, na minha opinião, é talvez a intérprete do Brasil mais proeminente que a gente tem hoje.” Seu pensamento perpassa temas que tratam da invisibilidade e da denegação. “O racismo que acontece no Brasil é uma espécie de racismo por denegação, que é quando o sujeito que opera o racismo nega ser racista”, explica.

A presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, Anna Benite, é outra pesquisadora “fincada com os dois pés” nos feminismos negros. Tudo começou durante sua formação acadêmica na área de Química. “Sou estudante de escola pública, fiz mestrado e doutorado em Química e comecei a trabalhar com pesquisas em modelagem de fármacos. Quando começo a fazer isso, percebo que quase não há mulheres negras fazendo esse tipo de pesquisa”, detalha.

“Investiga Menina” é o grupo de pesquisa liderado pela Anna Benite | Foto: Talis Martins

Como professora titular do Instituto de Química da UFG desde 2006, passou a conduzir pesquisas que tivessem impacto direto na trajetória de mulheres negras. “Hoje atendemos cerca de 4 mil estudantes, e o grupo de pesquisa que coordeno — credenciado no CNPq — conta com cerca de 100 bolsistas, sendo 35 estudantes de Iniciação Científica Júnior.”

Sobre feminismo, Anna explica que ele precisa ser racializado. “Isso significa pensar a ciência não como um cinturão de proteção ou como hipóteses, mas como algo que lida diretamente e influencia as relações sociais. É preciso ultrapassar essa visão de ciência neutra e construir uma ciência que dialogue com a existência dos corpos negros femininos”, contextualiza.

A doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Rio, Valéria Oliveira, iniciou suas pesquisas voltadas aos feminismos negros aos 19 anos. “Foi um movimento de tentar encontrar espaço no feminismo para mulheres como eu, pois não me sentia representada pelo feminismo tradicional — que chamamos de feminismo liberal, ou feminismo branco”, explica.

Valéria Oliveira é doutoranda em Relações Internacionais | Foto: Arquivo Pessoal

Esse início foi marcado por indagações: por que não há outras pessoas negras na universidade? Por qual motivo são tão poucas? As respostas buscou em pensadoras negras como Sueli Carneiro, Carla Akotirene e Patricia Hill Collins, e também em autores negros como Abdias Nascimento, James Baldwin, Frantz Fanon, Achille Mbembe e muitos outros.

“Agora, no doutorado, estou fazendo uma pesquisa de arquivos sobre a produção de feministas negras, como Christina Sharpe e Hortense Spillers, buscando entender como suas teorias podem mudar nossa visão do internacional”, relata.

Nessa conjuntura, Valéria passou a lutar também para criar ambientes acadêmicos plurais.

Para que mais pessoas negras ingressassem na pós-graduação e, também, para que fosse um espaço mais acolhedor do que foi para mim no primeiro momento. É essa a importância do aquilombamento.

A pesquisadora observa o crescimento do número de estudos que levam em consideração a raça enquanto categoria analítica nos mais diversos campos do conhecimento.

“As transformações produzidas pelo pensamento negro nas humanidades são profundas, mas a academia ainda é um espaço em disputa. Um dos casos que deixam isso claro é o da doutora Érica Bispo, doutora em Literatura Africana, aprovada em concurso na USP, que teve sua posse impedida após recurso de outros participantes — inclusive de pessoas que haviam sido reprovadas por nota”, informa.

Novembro negro

O dia 20 de novembro é o Dia Nacional da Consciência Negra e também o Dia Nacional de Zumbi, estabelecido por decreto desde 2023. Para a professora Luciana de Oliveira, é preciso mais do que um dia — e sim um mês — de conscientização.

Marcha das Mulheres Negras de 2015 | Foto: Talis Martins

Ainda de acordo com a pesquisadora, é preciso seguir em luta e em marcha por reparação e pelo bem viver. “O dia 20 de novembro vem se mostrando absolutamente insuficiente para discutir o racismo à brasileira, que é um racismo extremamente qualificado e cruelmente perverso com as pessoas negras”, enfatiza.

Para esse período de reflexões voltadas à consciência negra, a professora Anna Benite diz que é possível sonhar e buscar uma rede de apoio. “Nós estaremos aqui na universidade para acolher mais meninas negras e para que possamos ser ponto de apoio umas para as outras.”

Na visão de Valéria Oliveira, é preciso que a sociedade busque se educar para transformar a forma como olha para o outro. “Existem livros simples, como O pequeno manual antirracista, que são uma abertura para o letramento racial. É um processo que todos nós precisamos fazer, independente de quem sejamos”, indica.

Outro livro recomendado pela pesquisadora, especialmente aos professores, é Como ser um educador antirracista, de Bárbara Carine. Segundo Valéria, é leitura obrigatória para munir educadores com as ferramentas necessárias para lidar com a pluralidade na sala de aula.

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