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Para falar sobre a participação no espaço da política, do combate ao machismo violento que mata uma mulher a cada seis horas no País e sobre os diferentes papéis que as mulheres exercem na vida cotidiana, o Jornal Opção entrevistou a única senadora eleita da história de Goiás: Lúcia Vânia. Trata-se de uma desbravadora para as mulheres goianas e pioneira em muitos cargos políticos. Uma das primeiras-damas mais jovens do País, mãe de três filhos, deputada federal por Goiás, em 1986, integrante da Assembleia Nacional Constituinte, e muito mais.

Em conversa de mais de duas horas, Lúcia Vânia assinala que, para enfrentar o machismo e aumento de femicídios algumas ações são necessárias: promover a independência financeira das mulheres, fornecer espaços seguros para que deixem os filhos, chamar os homens para o diálogo de gênero e ampliar a participação delas na política.

Contando sua história e os desafios que precisou enfrentar para se sentar à mesa de decisão no País, Lúcia Vânia pontuou: “Os políticos me chamavam de ‘encrenqueira’”. Os espaços de atuação na política normalmente são conseguidos a cotoveladas — comum aos gêneros — mas, ao longo da história, mulheres corajosas e destemidas foram vistas como perigosas, encrenqueiras, temperamentais. Usa-se esses adjetivos como forma de diminuir a participação delas. 

Mas, como ensina Lúcia Vânia, a coragem parece ser condição da independência: aquilo que possibilita às mulheres serem donas de sua própria história. Durante as discussões da Assembleia Constituinte, em 1988, a ex-parlamentar recorda que foi essa coragem da “bancada do batom” que garantiu o inciso primeiro do artigo 5º da Constituição Federal: homens e mulheres são iguais perante a Lei.

“Para conseguir colocar essa frase na Constituição foi uma luta. E uma luta muito importante que realmente permitiu e está permitindo que as mulheres avancem na direção da igualdade. Mas não paramos aí, fomos além e reivindicamos os direitos no trabalho, a licença maternidade e outros”, sublinha Lúcia.

As constituintes buscavam a ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos, definir o princípio da não discriminação por sexo e raça-etnia, a igualdade de direitos e responsabilidades na família e a proibição da discriminação da mulher no mercado de trabalho. A busca pela igualdade salarial entre homens e mulheres é tema tão atual e necessário que hoje, 8 de março de 2023, o governo Lula da Silva lança política para garantir tal condição.

“Era uma pesada rotina de debates, reuniões e sessões para a elaboração da Carta da Mulher brasileira que integrou a CF (…) A nossa chegada no Congresso incomodou muitos. Éramos 26 mulheres e parece que não tínhamos o direito de estar lá. Nem banheiro havia e os jornalistas e as pessoas de modo geral estavam mais interessados em saber qual nossa roupa, perfume, batom (…) chegavam a eleger determinadas musas. Enquanto isso, reivindicávamos direitos que deram origem a várias leis, inclusive à Lei Maria da Penha”, anota. O “lobby do batom”, como foi conhecido à época, surgiu a partir de uma aliança de mulheres em busca de direitos no período de redemocratização do país.

Dos 559 deputados eleitos, apenas 26 eram mulheres — 5%.  E, além dos direitos da mulher, entre as propostas enviadas e que foram atendidas estão: a criação de um Sistema Único de Saúde, políticas de proteção ao meio ambiente e o direito de greve extensivo a todas as profissões.

“Dessa época, uma outra mudança muito importante foi na sociedade conjugal. Era mais um avanço em direção ao reforço da identidade das mulheres. Essas conquistas até hoje são trabalhadas em leis complementares ou ordinárias”, explica Lúcia Vânia. A ex-senadora diz ainda que a bancada contou com o apoio de parlamentares homens — Cristóvam Buarque, Fernando Henrique Cardoso e outros e por isso ela acredita que a discussão de gênero precisa ser ampliada. “É fundamental sensibilizar os homens para essas questões, de forma que eles entendam as pautas das mulheres verdadeiramente.”

Sobre a possibilidade de independência feminina, Lúcia Vânia avalia ainda que não bastam auxílios em dinheiro, sendo preciso fortalecer a rede de apoio às mulheres. “A independência financeira é fundamental para ajudar as mulheres a romper com a situação de violência, mas as instituições devem também garantir locais onde elas possam deixar seus filhos em segurança. As mulheres são múltiplas e desempenham diferentes papéis. É preciso tranquilidade para buscar sustento da família e isso envolve um ambiente no qual os filhos tenham segurança.” No final da década de 1970, Lúcia Vânia foi defensora das creches, implantando à época pré-escolas em Centros Comunitários, precursora do que hoje conhecemos como CMEI.

Lúcia Vânia também foi secretária de Assistência Social no governo de Fernando Henrique Cardoso. Responsável pela implementação da Lei Orgânica da Assistência Social, a Loas, inclusive nos Estados e municípios, e o Benefício de Prestação Continuada, voltado para idosos com mais de 65 anos e pessoas com deficiência. “A assistência social deve ser enxergada como direito. Não é caridade, não é filantropia e não pode ser vista assim. Nessa época (da Loas e do benefício de prestação continuada para idosos), fizemos o esforço junto ao então presidente Fernando Henrique Cardoso para que essa assistência fosse via INSS. Para que todos vissem que é um direito.”

Combinando a análise de economista, digamos, com uma visão sociológica, a ex-senadora entendeu, ao contrário dos políticos populistas, que o assistencialismo, ainda que absolutamente necessário — porque há gerações de mulheres e homens que foram deixados para trás — não garante inclusão, ou seja, não retira as pessoas da pobreza. Por isso ela tinha — e tem — uma visão mais ampla do social. A inclusão depende de políticas factíveis de integração que extrapolem a mera assistência.

Com entusiasmo, Lúcia Vânia comenta sobre a importância do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que foi quatro vezes premiado pelo Unicef. É o programa das Nações Unidas que cuida das crianças no mundo todo. E, por mais de uma vez, a ex-senadora reforça que assistência é direito da sociedade e precisa de planejamento. “A essa época conseguimos retirar 1 milhão de crianças da condição de trabalho infantil.”

A educação desempenha papel central na nossa sociedade. Lúcia Vânia cita, por exemplo, que “alguns pais chegavam a reclamar por estarmos retirando as crianças do trabalho e colocando elas para aprender música, teatro e outras atividades”. De forma similar, quando atuou como secretária de assistência no governo de Ronaldo Caiado, a ex-senadora relembra que se sentiu realizada quando conseguiu implementar mudanças no socioeducativo. “Fui convidada por Caiado após o triste episódio no qual 10 menores do socioeducativo morreram num incêndio. E uma das nossas primeiras ações foi implementar, além do ensino regular, aulas de música, esporte e grafite.”

As aulas de grafite foram em parceria com a Universidade Federal de Goiás e as ações para profissionalização foram em parceria com Sistema S. “Os jovens infratores de Goiás hoje têm um local com infraestrutura melhor e com possibilidades de seguir um novo caminho, com oportunidades”, frisa Lúcia Vânia.

Sobre a necessidade de mais mulheres no mundo político, Lúcia Vânia é categórica: “Temos muitas goianas que estão há anos com mandatos como deputadas, mas que não se interessam pelo Senado e isso precisa mudar (é o caso, por exemplo de Flávia Morais, do PDT, sempre uma das deputadas mais votadas do Estado). A ex-senadora comenta ainda que as cotas ajudaram, assim como a maior presença na televisão e financiamento de campanha. Mas a ex-parlamentar defende que mudanças dos partidos precisam vir de dentro.

“É necessário modificar a estrutura dos partidos que atualmente são anacrônicos. Sem essa segmentação PSDB mulher, PL mulher, e outros. As mulheres precisam estar inseridas de fato no centro das discussões partidárias”, comenta. A ex-senadora reforçou que as jovens precisam ter coragem para disputar pleitos. Em 1994, Lúcia disputou com Maguito e Caiado o executivo estadual.

Lúcia Vânia diz que não se vê mais na política porque precisa se dedicar à questões particulares — é a inventariante da família — e deseja ter mais tempo para si (planeja escrever um livro sobre sua história pessoal e política. A ex-senadora é formada em Jornalismo e escreve muito bem). “Para quem é mais jovem quatro anos de profunda dedicação é pouco tempo. Para mim, hoje, quatro anos é muito e me recuso a fazer as coisas pela metade.”