Por décadas, a música popular brasileira ajudou a perpetuar visões machistas sobre o papel das mulheres na sociedade. Letras que romantizam a posse, o ciúme e a submissão estiveram entre as mais populares desde meados do século passado. Entretanto, esse cenário vem sendo contestado, sobretudo a partir dos anos 2000, com o fortalecimento de uma geração de cantoras que passou a responder a essas narrativas ou a subverter seus códigos com obras autorais feministas. Esse movimento se manifesta de duas formas distintas: por meio de músicas que são respostas diretas a canções machistas de artistas homens, e por meio de composições que não dialogam com nenhuma obra específica, mas se afirmam como gritos de liberdade, autonomia e empoderamento feminino.

O primeiro grande exemplo de resposta direta a um clássico da MPB surgiu em 2013, quando Ana Carolina lançou a música Resposta da Rita. A composição parte da perspectiva da personagem mencionada na canção Essa Mulher, de Chico Buarque, lançada originalmente em 1979. Na música de Chico, o eu-lírico sofre pela ausência de Rita, a mulher que o deixou. Já Ana Carolina imagina Rita não como uma figura passiva, mas como a protagonista contando seu próprio lado da famosa história.

Não levei o seu sorriso / Porque sempre tive o meu

A resposta de Ana Carolina é considerada um marco porque inaugurou no mainstream essa prática de responder diretamente à narrativa masculina, adotando a voz de personagens outrora caladas. Ainda assim, outros exemplos dessa estratégia surgiriam com força a partir dos anos 2010, impulsionados pelas redes sociais e por um contexto de maior mobilização feminista.

Seguindo o exemplo

Também foi a lógica usado na resposta Nós Somos Mulheres, uma versão feminista do samba “Mulheres” de Martinho da Vila, escrita por Doralice Gonzaga e Silvia Duffrayer. Elas são integrantes do grupo “É samba que elas querem” e criaram essa versão como um manifesto e paródia. A canção propõe um hino coletivo de força e resistência:

Sou mulher, sou dona do meu corpo e da minha vontade / Fui eu que descobri poder e liberdade / Sou tudo o que um dia eu sonhei pra mim.

Outra resposta direta ao passado machista é “Não Precisa Ser Amélia” (Bia Ferreira, 2019). A canção critica de forma explícita o antigo samba “Ai! que saudade da Amélia” (1942). Em seus versos, Bia afirma que a mulher não precisa se submeter aos papéis tradicionais para ser “a mulher verdadeira” e celebra a liberdade.

Não precisa ser Amélia para ser de verdade / Cê tem a liberdade de ser quem você quiser / Seja preta, indigena, trans, nordestina / Não se nasce feminina, torna-se mulher

Canções autorais de empoderamento

Além das respostas, várias compositoras produziram hinos de empoderamento feminino ou protesto, sem necessariamente parodias a alguma música antiga. Em suma, no repertório brasileiro atual convivem duas frentes de enfrentamento ao machismo: por um lado, versões diretas que “respondem” a músicas antigas e machistas (como Resposta da Rita, Nós Somos Mulheres e Não Precisa Ser Amélia); por outro, composições originais de mulheres que exaltam a força feminina e criticam a opressão em geral.

Por exemplo, “Maria da Vila Matilde” (Elza Soares, 2015) aborda o fim de um relacionamento abusivo. Estudiosos apontam que essa canção – parte do álbum A Mulher do Fim do Mundo – é expressão de uma insurgência feminina contra a violência doméstica, estimulando a emancipação da mulher subjugada.

Cadê meu celular?
Eu vou ligar pro 180
Vou entregar teu nome
E explicar meu endereço
Aqui você não entra mais

Rita Lee, em toda sua discografia, desafiou as normas do comportamento feminino. Em 1979, lançou o álbum Mania de Você, com faixas como “Doce Vampiro” e “Corista de Rock”, misturando sensualidade e autonomia.

Gal Costa, com sua voz doce e potente, também deixou sua marca. A canção “Brasil” (1988), composta por Cazuza, ganhou força em sua interpretação, virando um protesto contra a hipocrisia social. Ainda assim, em sua trajetória desde os anos 60, Gal também interpretou canções que exaltavam o amor livre e a presença ativa da mulher na cena musical.

Zélia Duncan, em 2005, gravou “Catedral”, canção que embora não escrita por ela, foi apropriada por muitas mulheres como um grito de liberdade religiosa, emocional e sexual. Sua carreira sempre foi marcada por posturas políticas claras em defesa dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+.

Depois, Rita Lee escreveu e gravou (primeiro sozinha, depois com Zélia Duncan, e depois com Anitta) a música Pagu, em homenagem à escritora, poetisa, diretora, tradutora, desenhista, cartunista, jornalista e militante comunista brasileira, Patrícia Rehder Galvão, apelidada de Pagu e presa por motivação política durante o governo Vargas.

Sou rainha do meu tanque
Sou Pagu indignada no palanque

Mulheres na Música

Embora o número de mulheres na música ainda seja desigual — segundo dados do Ecad e matérias do Brasil de Fato, elas seguem sub-representadas na autoria e nos palcos —, o avanço dessas vozes dissidentes tem sido notável. Elas não apenas respondem ao machismo explícito das canções do passado, mas também ao machismo estrutural que ainda permeia as engrenagens da indústria fonográfica.

O combate ao machismo na música brasileira se dá, portanto, em várias frentes: no resgate de personagens, na criação de novas narrativas, na ocupação de espaços e na valorização da diversidade. Com coragem, inteligência e criatividade, essas mulheres estão mudando o tom da música nacional. E, ao fazerem isso, ajudam também a mudar a sociedade.

Novas gerações e redes sociais como palcos de resistência

Artistas da geração mais jovem seguem essa linha de repensar repertório musical. Cantoras como Mariana Nolasco, Anavitória, Bruna Black, Giulia Be, Carol Biazin e Gabi Luthai utilizam redes sociais (YouTube, TikTok) para reinterpretações críticas. Em 2022, Mari Nolasco lançou uma série no YouTube reunindo cantoras contemporâneas, em que reinterpretam sucessos populares sob nova ótica (por vezes questionando o conteúdo original).

Entretanto, há muitos anos ela publica paródias e respostas à outras músicas. Essa prática de respostas musicais ou paródias críticas ganhou força entre artistas da nova geração, no YouTube, interpretam versões femininas de canções populares, frequentemente trocando o ponto de vista e subvertendo mensagens machistas. Nesse sentido, o exemplo mais famoso hoje deve ser Mari Nolasco, seu trabalho transita entre o afeto e a denúncia, conquistando um público jovem engajado com as pautas feministas. Em vídeos como a resposta à música “Baile de Favela”, Mari insere reflexões sobre a objetificação da mulher no funk e na cultura pop, sem negar a potência do gênero.

Todos nós temos muito amor pra dar
Pode ir quente ou fervendo
Mas respeita o seu par

Porque um dia
A chapa que você ferveu
Pode ser a mãe dos filhos
Do destino que escolheu

Embora não haja dados oficiais publicados sobre visualizações, o próprio engajamento em redes (milhões de curtidas e comentários) mostra que muitas jovens se sentem representadas por essas versões. A iniciativa delas amplia o debate e sinaliza que a cultura musical nacional está sendo ressignificada por ouvintes atentos à igualdade de gênero.

Essas intervenções são parte de uma movimentação cultural mais ampla: as mulheres (cantoras, compositoras, coletivos e influenciadoras) não aceitam mais o repertório tradicional que as reduz a papéis passivos ou submissos. Pelas letras alternativas e protestos sonoros, criam-se “novos imaginários” em que ser mulher é ser protagonista e potente.

Como frisam analistas, músicas que antes tocavam de rotina ganham agora uma leitura crítica: respondidas ou superadas por canções de denúncia e empoderamento. Mesmo que os hits antigos continuem a tocar, uma geração crescente está disposta a questioná-los e propor alternativas.

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