A cada ano, milhares de brasileiros optam por cursar medicina no exterior, atraídos por mensalidades mais acessíveis e processos seletivos menos concorridos. Ao voltar ao país, no entanto, enfrentam um processo de revalidação de diploma considerado complexo, oneroso e, muitas vezes, doloroso — além de lidar com preconceitos que persistem. O Jornal Opção conversou com seis médicos brasileiros formados no exterior para compreender melhor essa realidade.

Para muitos, a decisão de estudar medicina em países vizinhos como Paraguai e Bolívia é impulsionada por fatores financeiros e pela alta concorrência nas universidades brasileiras. Maxmiller Ferreira Machado, médico formado na Universidad Privada Abierta Latinoamericana (UPAL), na Bolívia, entre 2010 e 2016, relata que o sonho de cursar medicina com a esposa, era distante, pois faltavam condições financeiras para pagar uma faculdade particular no Brasil. “Em 2010, o Brasil tinha pouco mais de 180 faculdades de medicina. Hoje já são quase 400. Então, a decisão de estudar fora acabou sendo muito natural”, afirma Maxmiller.

Luis Otávio Benevenuto compartilha da mesma motivação: “Eu não queria perder dois, três, quatro anos com o cursinho pré-vestibular para passar na federal e, na situação financeira em que estávamos, era inviável uma mensalidade particular no Brasil”. Ele encontrou em Pedro Juan, no Paraguai, uma alternativa viável, onde o custo mensal total — incluindo aluguel, alimentação e faculdade — girava em torno de R$ 3.000 a R$ 3.500 no primeiro ano, contraste marcante com a mensalidade média de R$ 8.000 a R$ 10.000 no Brasil.

Luís Otávio Benevenuto

A goiana, Nicelene Rosse Pereira Crespo, que cursou medicina na Bolívia a partir de 2006, também vivenciou essa realidade. “Eu tinha muito medo de não conseguir entrar na federal. Tinha estudado em colégio público e não se sentia preparada”, confessa Nicelene. A decisão foi incentivada pelo pai, que já havia estudado na UFG e via na Bolívia uma opção mais acessível. “Meu maior receio era que meus irmãos terminassem o colégio e tivessem que trabalhar direto, sem conseguir avançar para uma faculdade”, complementa.

A facilidade de ingresso em universidades estrangeiras também é atrativa. Adelicio Galvão, médico especialista em revalidação, destaca: “Na grande maioria das faculdades [no exterior] não existe vestibular como aqui no Brasil. Em muitos países, basta se matricular na instituição”.

A Experiência Acadêmica e o Choque Cultural

Apesar das diferenças, a qualidade do ensino no exterior é elogiada por alguns. Hudson Lucena, formado na Universidade Maria Auxiliadora (Max) no Paraguai, avalia positivamente sua formação: “Minha experiência na faculdade foi muito boa. Tive bastante suporte e gostei muito da formação que recebi”. Ele acrescenta que, em comparação com colegas no Brasil, sua formação “não deixou nada a desejar” e ressalta a abordagem mais humanizada da medicina no Paraguai: “Os médicos sabem escutar mais os pacientes lá; é mais humanizado. O diagnóstico é mais certeiro por conta disso, coisa que eu não vi aqui no Brasil”.

Hudson Vinícius Lucena

A adaptação cultural e linguística, porém, pode ser desafiadora. Hudson relata: “Em um mês, consegui me adaptar tranquilamente ao país. É um país acolhedor, o Paraguai. Foi o que senti, pelo menos na região em que fiquei”. Já Wanessa Melo, formada na Uninter, no Paraguai, descreve o idioma como o maior choque: “Tive de me adaptar ao espanhol e ao guarani”. Luis Otávio também menciona as dificuldades com o idioma nos primeiros meses.

Bolívia e Paraguai se tornaram polos de atração para estudantes brasileiros. Adelicio afirma: “O país que mais tem alunos hoje é o Paraguai, pela acessibilidade, pela proximidade da fronteira”. Wanessa corrobora: “Em 2017, nossa turma inicial no Paraguai tinha cerca de 500 alunos, quase todos brasileiros”.

O Revalida: Um Obstáculo “Dificultoso, Injusto e Doloroso”

O retorno ao Brasil e a intenção de atuar profissionalmente esbarram na exigência do Revalida, exame nacional de revalidação de diplomas médicos estrangeiros. Entre os entrevistados, é consenso que esse processo representa o maior desafio.

Wanessa Melo classifica o processo como “dificultoso, injusto e doloroso”. Ela relata ter sido reprovada na primeira fase do Revalida INEP por “0,06 pontos” em março de 2024 e na segunda fase por três pontos em dezembro de 2024. “O processo é dolorido, vai te desgastar; são muitas noites sem dormir”, critica. Sobre a correção, afirma: “Eles fingem que não viram erros, só passam o olho; não corrigem como deveriam”.

Hudson Lucena defende um “Revalida justo”, reconhecendo a necessidade de avaliar a qualidade das formações estrangeiras, mas critica a aplicação atual: “Nos últimos dois anos, vi provas absurdas, tanto na parte teórica quanto na prática — exigiam protocolos que não se usam no cotidiano”. Ele menciona a pressão psicológica: “Eu estou com mais medo da prática do que da teórica”.

Luis Otávio Benevenuto, que reprovou na primeira fase do Revalida 2024.2 por 1,2 ponto e foi aprovado na edição 2025.1, descreve a segunda etapa como “desafiadora”. “Psicologicamente, a prática não mede só conhecimento clínico; exige controle emocional intenso e gestão do tempo, pela pressão”, compara, lembrando que o Revalida não tem concorrência externa: “Você concorre consigo mesmo”.

Nicelene Pereira enfrentou o Revalida três vezes, passando na teórica em 2020 e na prática em 2021. Ela destaca o alto custo da prova prática: “Paguei R$ 4.500 três vezes, um valor muito alto considerando a bolsa de residência”.

Adelicio Galvão corrobora as dificuldades financeiras: “O Revalida é, talvez, a prova geral mais cara do Brasil”. Ele aponta a baixa taxa de aprovação, de 10% a 12% na primeira fase, e elogia a remoção da prova discursiva: “Havia má correção anterior”, e relata ter conseguido recuperar até 18 dos 50 pontos da prova em recurso.

Adelicio Galvão

Preconceito e Luta por Reconhecimento

Além dos desafios burocráticos, médicos formados no exterior enfrentam preconceito no Brasil. Hudson Lucena comenta: “Muitos acham que medicina fora do Brasil é menos rigorosa, mas a língua e a metodologia tornam tudo mais difícil”.

Maxmiller Machado minimiza o estigma: “Durante a faculdade, ouvi muitos comentários sobre isso. Mas, sinceramente, nunca senti isso na prática. Trabalhei por bastante tempo no hospital de referência da minha região, diretamente na emergência, e sempre fui muito bem recebido pela equipe, e já trabalhei em quase todos os hospitais da região e nunca percebi preconceito, então, na minha vivência, considero isso um mito”, relata.

Além disso, como médico formado no exterior, ele explica que passou por uma prova oficial de conclusão de curso organizada pelo Ministério da Saúde da Bolívia. “Tive um desempenho que me garantiu, além do diploma regular, um diploma de excelência. Depois disso, enfrentei mais duas etapas no Revalida: a prova teórica, na qual tive uma nota bem acima da nota de corte, e a prova prática, também aprovada”.

E por fim, Maxmiller conclui sua lógica: “Isso enquanto me preparava para a prova de graduação da faculdade e nem por isso me sinto no direito de julgar ou desmerecer quem se formou no Brasil e recebeu o diploma direto, sem ter que passar por provas semelhantes às que eu enfrentei. Cada trajetória tem seu valor”.

Para Nicelene Pereira, porém, “existe preconceito em grupos médicos, que acreditam que quem estuda fora ‘corta atalhos’ e não está preparado”. Ela cita o programa Mais Médicos: “Neste último Mais Médicos, por exemplo, que teve agora, a gente viu uma mobilização de alguns grupos de médicos formados no Brasil com o CRM, dizendo que iriam ocupar todas as vagas, iriam se inscrever mesmo que não fossem se apresentar. É, para que outros médicos formados no exterior não ocupassem essas vagas, né? Então, foi um movimento muito feio, muito, muito ruim, sabe?”

Luis Otávio Benevenuto concorda que “o preconceito é mais de quem não está na área.” Ele observa que “profissionais que já trabalharam com revalidado não falam mal; mas ‘dinossauros’ e o público geral duvidam do diploma até a revalidação.” Ele ressalta seu empenho: “Queremos mostrar um bom serviço; temos cuidado dobrado para não depor contra nossa reputação”.

Adelicio Galvão observa ainda discriminação de aplicadores: “Alguns fazem comentários pejorativos durante as avaliações práticas”. Para quem não revalida, diz, “há médicos trabalhando em farmácias, como motoristas de aplicativo ou em supermercados”.

Apesar dos percalços, essa geração de médicos mantém o desejo de contribuir com a saúde do país. Entre obstáculos burocráticos e símbolos de preconceito, seguem movidos por um sonho: cuidar de vidas.

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