Indígenas em Goiás: sub-representação no Censo, medo de se declarar e violência histórica marcam realidade ignorada
17 novembro 2025 às 08h08

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Embora o Censo Demográfico 2022 tenha revelado quase 20 mil indígenas vivendo em Goiás e identificado 211 etnias no estado, o retrato oficial ainda está distante da realidade. É o que alerta a professora Eunice Pirkodi Tapuia, primeira docente indígena da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Para ela, o número apresentado pelo IBGE é importante por tornar a presença indígena visível, mas não representa o total de indígenas que vivem em cidades goianas — especialmente os povos invisibilizados pela urbanização e pelo preconceito.
“Esse número não é real. Só na minha cidade e nas vizinhas vivem muitos Tapuia que não apareceram no Censo. Eu mesma tentei ser recenseada e não conseguiram ir à minha casa. Ou seja, eu procurei o IBGE, estava em casa, e não estou no Censo”, explica. “Então há um erro claro do IBGE, mas também há o medo dos parentes de se identificar.”
Medo de se declarar indígena ainda marca a vida urbana em Goiás
O Censo mostrou que 93,7% dos indígenas em Goiás vivem sem falar língua indígena em casa e que a grande maioria está em situação urbana. Para Eunice, isso revela as marcas de séculos de violência e apagamento.
Ela própria sente o impacto no cotidiano. “Ser visto como indígena em Goiás ainda é muito pesado. Eu, quando saio, tento ao máximo não me apresentar como indígena, porque o tratamento muda. As pessoas te veem diferente.”
Segundo a professora, muitos indígenas que vivem nas cidades — inclusive seus próprios parentes — evitam se identificar no Censo para não sofrer preconceito. “O medo é real. A população indígena guarda no interior esse medo. O preconceito ainda é muito forte, porque Goiás sempre tratou os povos originários com muita violência.”
Discrepância entre número de povos com território e população total
O Censo mostrou que Goiás possui apenas três povos com território demarcado, mas cerca de 20 mil indígenas no total. Essa diferença, segundo Eunice, escancara o impacto histórico da expulsão e dispersão dos povos originários do estado.
“É um dado importante que o IBGE trouxe, porque mostra que existem indígenas em Goiás e que é um número muito alto”, diz. “Mas se compararmos que temos apenas três povos em território demarcado, fica evidente que o estado tem apagado os povos originários por séculos.”
Os dados do IBGE reforçam esse cenário:
- Karajá é a etnia mais numerosa (1.260 pessoas),
- seguida por Xavante (1.022),
- Tapuia (626), etnia de Eunice,
- e Guarani (579).
Quase todas essas populações vivem predominantemente em área urbana — no caso Xavante, 96,97%; no caso Guarani, 95,51%.
Violência histórica e atual: “coisas que acreditávamos que ficaram nos séculos passados”
A professora lembra que a relação de Goiás com seus povos originários é marcada por expulsões, massacres e políticas de apagamento. “Os indígenas aqui sofreram um apagamento muito grande. Goiás era um lugar com muitos povos, hoje temos apenas três com terras demarcadas”, afirma.
Segundo ela, a violência não ficou no passado. “O povo Avá-Canoeiro, por exemplo, está vivendo violências que achávamos que tinham ficado séculos atrás. Ainda acontecem nesse século. É muito grave.”
Ela também cita conflitos que atingem seu próprio povo:
“O território Tapuia é essencial para nós: é lá que estão os cemitérios tradicionais, que são sagrados. Mas nenhum deles está na área demarcada. O território é parte de nós. Terra e povo são um só.”
Goiás fica de fora da COP e reforça invisibilidade
A exclusão também se expressa em espaços de participação. Eunice destaca que, apesar de mais de 400 lideranças indígenas participarem da COP, nenhum indígena de Goiás foi representado.
“Isso diz muito. É a invisibilidade dos povos indígenas do estado. Somos quase 20 mil indígenas, mas não temos voz nos grandes debates ambientais.”
Urbanização, burocracia e políticas públicas que não chegam
Mesmo com quase 20 mil indígenas no estado, Goiás não possui políticas públicas estruturadas voltadas a essa população, afirma Eunice.
“O governo estadual não tem nenhum projeto específico para indígenas. Pelo contrário, tem tentado desestabilizar a educação indígena”, denuncia.
Ela destaca obstáculos no acesso a editais, cultura e universidade:
- linguagem excessivamente formal,
- internet instável nas aldeias,
- prazos curtos,
- ausência de material acessível,
- pouca inclusão em editais culturais.
“A maioria dos editais não contempla povos originários. Quando contempla, são projetos coordenados por não indígenas. Os povos não são protagonistas.”
UFG como resistência e ponte
Apesar do cenário, Eunice reconhece a UFG como um dos principais agentes de fortalecimento dos povos indígenas no estado.
A Licenciatura Intercultural, iniciada em 2007, foi decisiva para seu povo: “A UFG nos permitiu pesquisar nossa própria história, recuperar nossa língua e revitalizar conhecimentos que estavam dormindo. Isso fez com que nosso povo se reconhecesse novamente.”
Hoje, ela participa do Observatório dos Povos Indígenas, ligado a UFG, FUNAI, Ministério Público Federal e Estadual. A iniciativa, coordenada pelo professor Manuel Lima Filho e Pedro Wilson Guilmarães, busca aproximar instituições e comunidades.
“Terra é minha mãe”: por que a luta territorial é central
Se estivesse na COP ou em qualquer espaço de debate ambiental, Eunice afirma que levaria um ponto fundamental:
“A questão territorial é a maior luta de todas. Sem território, não existimos. Nós e o território somos um.”
Em Goiás, três povos enfrentam disputas por terra:
- Avá-Canoeiro, que precisa de proteção urgente;
- Inã, cuja aldeia está dentro da cidade e sofre pressões urbanas;
- Tapuia, em luta pelos cemitérios tradicionais e áreas de caça, coleta e pesca.
Uma população grande — e silenciada
O Censo 2022 mostrou que Goiás é o 5º estado em diversidade indígena, com 211 etnias identificadas. Em municípios como Goiânia, são 132 etnias diferentes.
Mas, como reforça Eunice, números não contam tudo.
“Se o território é a nossa mãe, a nossa existência depende dela. Precisamos ser vistos, respeitados e protegidos. E isso começa pelo reconhecimento — no Censo, na política, na cidade e no dia a dia.”
Censo revela salto na diversidade indígena em Goiás
Goiás registrou um crescimento expressivo na diversidade de povos indígenas identificados pelo Censo Demográfico 2022. Em pouco mais de uma década, o número de etnias autodeclaradas no estado saltou de 143 para 211, um aumento de quase 50%. Segundo o superintendente do IBGE em Goiás, Edson Vieira, o avanço está diretamente ligado às melhorias operacionais da pesquisa, ao detalhamento do questionário e ao fortalecimento da autodeclaração — especialmente nas áreas urbanas.
“A melhor cobertura metodológica e operacional no Censo 2022, com mais mobilizações locais e questionários mais detalhados, levou à identificação de muitos mais grupos”, afirma Vieira. Ele destaca que o fenômeno também tem relação com o fato de que mais indígenas residentes nas cidades passaram a declarar sua etnia de origem. “A alta autodeclaração urbana ampliou bastante o registro”, reforça.
Grandes cidades concentram maior diversidade
Os municípios de Goiânia, Aparecida de Goiânia e Valparaíso lideram o número de etnias distintas identificadas no estado. Para o IBGE, essa concentração está diretamente relacionada ao papel desses centros como polos de atração econômica e de serviços.
“São municípios com forte atração urbana, o que traz indígenas de diferentes origens. A maior população implica maior probabilidade de diversidade de etnias”, explica o superintendente.
O Censo não investigou se políticas municipais específicas influenciam essa concentração, mas, segundo Vieira, os dados produzidos pelo instituto podem orientar estratégias do poder público. “O levantamento pode contribuir para que políticas sejam implementadas, na medida em que identifica, quantifica e localiza esses povos”.
A identificação das etnias e das línguas indígenas é feita exclusivamente por autodeclaração, um critério considerado fundamental para respeitar os modos de identificação próprios de cada povo. Para isso, o instituto elaborou treinamentos específicos, adaptou questionários e utilizou perguntas abertas, nas quais os entrevistados registram diretamente sua etnia e as línguas faladas.
“Os entrevistados escrevem livremente a etnia e as línguas declaradas. Além disso, usamos instrumentos específicos e formulários adaptados para áreas indígenas”, explica Vieira.
População urbana e aldeada: como o Censo distingue
O questionário do Censo registra se o domicílio está localizado em área urbana ou rural e se está situado dentro de uma terra indígena demarcada. Segundo o superintendente, essa distinção permitiu módulos de coleta separados para aldeias e cidades.
“Tivemos módulos distintos para terras indígenas e para domicílios urbanos, segundo a localização”, esclarece.
Línguas com menor número de falantes preocupam especialistas
Embora o IBGE não faça uma classificação formal de risco de extinção, os dados do Censo permitem identificar línguas com pouquíssimos falantes, o que indica situação de vulnerabilidade. Em Goiás, várias famílias linguísticas registradas aparecem com contingentes reduzidos, como Arawá, Mawé, Múra e Tukano.
“O Censo traz números de falantes, mas não define risco. Ainda assim, várias famílias têm poucos falantes, e isso sugere vulnerabilidade”, aponta Vieira.
