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Mais de 40% das brasileiras que se declararam vítimas de agressões físicas, psicológicas e verbais dos próprios maridos estão inseridas em templos evangélicos, segundo dados apontados pelo Atlas de Violência. Em Goiás, mais de 100 mulheres são vítimas de violência doméstica por dia, considerando ainda que os dados registrados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) podem sofrer com subnotificação visto que a maior parte das mulheres que sofrem abuso não procuram a polícia. Além dos maridos, pais e padrastros, muitas têm como agressores irmãos de igreja, pastores ou líderes religiosos.

Como parte da sociedade, as instituições religiosas não estão imunes às violências e devem estar atentas para combatê-las. Nesse cenário, o pastor Yago Martins escreveu “Igrejas que Calam Mulheres”, livro publicado em maio de 2024. Ao relatar casos de violência e machismo dentro dos templos, o autor rompe a barreira com o negacionismo e denuncia interpretações distorcidas do texto bíblico que têm sido utilizadas como instrumento de opressão. “Muitas vezes, a teologia em que eu acredito é deturpada em um tipo de cultura de apagamento feminino”, explica ao Jornal Opção.

De acordo com o autor, a ideia de escrever o livro nasceu a partir dos problemas que ele lidava dentro da própria igreja. Como pastor, ele teve que levar muitas mulheres à delegacia para solicitar medida protetiva, além de precisar se envolver em cenários de abuso e apagamento feminino. “Eu queria poder mostrar como a escritura não apoia esse tipo de coisa, não aprova esse tipo de perspectiva”, pontua Yago.

Diante do crescimento de denúncias, ele fez alguns sermões aos domingos instruindo a igreja sobre o papel da mulher e conta que foi muito bem recebido pela comunidade, decidindo então reunir os ensinamentos em uma obra literária. No entanto, quando o livro começou a ser divulgado, muitas comunidades e líderes religiosos começaram a expressar uma certa desconfiança como se o assunto fosse um tipo de “pauta comunista, feminista ou qualquer insta moderno que seja geralmente tratada com uma perspectiva antideus ou algo assim”, explica o autor.

Segundo o escritor e teólogo, no Brasil esse movimento de masculinidade bíblica em ascensão tem sido chamado por muitos de “machonaria”. Algumas igrejas usam a passagem bíblica de 1 Coríntios 6.1-8 para desencorajar as vítimas a denunciarem os agressores. “Quando algum de vocês tem um desentendimento com outro irmão, como se atreve a recorrer a um tribunal e pedir que injustos decidam a questão em vez de levá-la ao povo santo”, diz o versículo bíblico.

O texto relata um acontecimento da Bíblia em que a igreja era prejudicada por causa de questões sociais e incentivam a resolver os problemas perante os olhos cristãos, e não os levar às autoridades judiciais, vista como “descrentes”. Muitos pastores se embasam no versículo para justificar o silenciamento de vítimas de abuso sexual, orientando as mulheres a não “exporem os líderes” e resolverem as questões internamente.

“As mulheres cristãs têm todo o direito de procurar ajuda civil em caso de agressão e violência doméstica. Todo tipo de mentira é jogado na cabeça da esposa para que ela não busque ajuda, não denuncie, não ligue para a polícia. Igrejas adotam essa postura ou tratam isso como questões de regimento exclusivamente interno alegando que cristãos não podem levar outros ao tribunal, que poderiam resolver na igreja. No caso de abusos, contudo, não é assunto trivial para líderes religiosos resolverem”, explica Yago Martins.

“Igrejas que calam mulheres” não apenas desafia leituras distorcidas que induzem ao erro e situações desastrosas, mas também enfatiza que a Bíblia promove igualdade, respeito e liberdade. A obra, que conta com endossos escritos por mulheres, é um guia de clareza para compreensão correta da Palavra de Deus, a fim de levar para o sexo feminino cura e restauração, principalmente, para aquelas vítimas que nunca conseguiram encontrar uma saída perante os traumas e agressões.

Embasado nas Escrituras, Yago mostra na prática como a boa teologia liberta e a má produz ambientes religiosos traumáticos, controladores e abusivos.

“O mal não é de esquerda nem de direita”

De acordo com a Bíblia, homens e mulheres são igualmente valorizados aos olhos de Deus e em Seu plano. O complementarismo busca preservar as diferenças bíblicas entre os papéis dos homens e das mulheres, ao mesmo tempo que valoriza a qualidade e a importância de ambos os gêneros.

Sobre as acusações da própria comunidade, Yago explica que falar sobre apagamento feminino não deveria ser uma pauta de esquerda ou direita, mas uma pauta cristã baseada nos textos bíblicos que falam sobre a mulher e a imagem de Deus. Para ele, o assunto deve ser tratado colocando a mulher como uma pessoa digna que precisa ser tratada com respeito e valor. E não apenas como uma pauta que esteja atrelada a algum tipo de posicionamento político.

“O mal não escolhe lado. O mal não é de esquerda nem de direita. O mal só é mal. Só é do diabo. Só é pecaminoso. E sendo o mal, a gente deveria estar muito mais preocupado em evitar o pecado e pregar a santidade do que em qualificar se o mal é progressista ou se é conservador. O mal é pecaminoso. A resposta para o mal é o evangelho e uma boa leitura bíblica. É o poder do Espírito Santo nos transformando. A resposta para o mal não é uma resposta política. É uma resposta que provém da cruz de Cristo”, destaca Yago Martins.

Líder na Igreja Batista Maanaim, em Fortaleza (CE), Yago Martins é mestre em teologia sistemática, apresenta o canal no YouTube chamado Dois Dedos de Teologia, é pai da Catarina e do Bernardo e marido da Isa.

Com uma formação teológica tradicional e conservadora, observa que muitos líderes têm se focado mais em rotular argumentos como de direita ou esquerda, conservadores ou progressistas, em vez de avaliar sua coerência com as escrituras. Ele afirma que alguns conservadores têm falhado ao interpretar temas bíblicos que, à primeira vista, podem parecer progressistas, como a defesa da integridade física e moral das mulheres.

Além disso, destaca que a questão do apagamento das mulheres não é exclusiva de igrejas conservadoras. Em seu livro, ele aborda como tanto comunidades conservadoras quanto progressistas enfrentam esse problema, e menciona que igrejas progressistas também podem falhar em proteger mulheres de abusos. “Tem gente que está mais preocupada em encaixar as pessoas dentro de um grupo do que em perceber a validade dos argumentos e, falando em teologia, perceber se o argumento é coerente com o que a bíblia diz ou não”, explica o líder religioso.

Silenciamento das vítimas

Igrejas, sejam evangélicas ou católicas, muitas vezes protegem abusadores e silenciam vítimas. Elas frequentemente ignoram a laicidade do Estado e a supremacia da Constituição sobre a Bíblia. Denúncias de assédio sexual dentro dessas instituições são historicamente abafadas pelos líderes religiosos. Quando tais casos ganham destaque na mídia, as igrejas emitem pronunciamentos públicos. No entanto, o destino das vítimas permanece incerto.

Jovens que denunciam pastores por importunação sexual frequentemente enfrentam o apoio da congregação ao abusador, visto como alguém que “caiu em pecado” e não deve ser “julgado”. Um exemplo disso é o caso do líder da Igreja Casa, pastor Davi Passamani, afastado de suas funções por importunação sexual contra fiéis. O pastou chegou a ser preso, mas continuou contando com o apoio da Igreja, que não demorou muito para se pronunciar dizendo que ele renunciou “mas não é descartável”.

O pastor Yago Martins ressalta que líderes eclesiásticos, devido ao seu poder e autoridade, devem ser rigorosamente avaliados. Citando Paulo em 1 Timóteo, ele afirma que pastores devem ser julgados publicamente, enquanto cristãos comuns são protegidos ao se arrependerem de seus pecados. “Enquanto cristãos são protegidos quando se arrependem, pastores devem ser julgado diante de todos”, analisa o teólogo.

Ele alerta que, sem uma prestação de contas clara, igrejas podem se tornar terrenos férteis para líderes que abusam de suas posições para benefício próprio, como Jesus Cristo advertiu em Mateus 23. Na passagem, Jesus alerta sobre líderes religiosos que iam nas casas das viúvas com a desculpa de fazer longas orações, mas simplesmente destruíam as casas e roubavam tudo que elas tinham. A violência pode ser física, sexual e também pode ser emocional.

“Se a gente não tiver a igreja trabalhando arduamente para se proteger de más lideranças, vamos ter igrejas que podem ser terrenos férteis para homens e mulheres que podem usar de suas posições para benefício pessoal”, explica o pastor.

“Existem textos que são muito claramente distorcidos por pessoas que provém de um tipo de cultura de masculinismo muito negativo, que vai dizer por exemplo que a mulher não foi criada a imagem de Deus, apenas o homem. Ou, por exemplo, de que a mulher deve adoração e subserviência ao marido e não a visão amorosa do novo testamento. Existem pastores no alto do púpito dizendo que as mulheres devem rastejar aos seus maridos. Ou até mesmo pastores que foram presos por assassinarem suas esposas participando de podcast dizendo que se a mulher apanha do marido deveria estar em oração”, denuncia Yago Martins.

Ele conclui que é fundamental interpretar as escrituras dentro de seu contexto histórico e cultural, reconhecendo o papel das mulheres no Novo Testamento. Ao mesmo tempo, é importante não ignorar os padrões de feminilidade e masculinidade apresentados na Bíblia, buscando sempre entender e aplicar o que Deus quer dizer através dos textos sagrados.

Uma vez que ele é pastor e pastoreia mulheres, conta que escreveu o livro na perspectiva de um pastor que está lidando com a cultura eclesiástica e cultura de liderança. Ele destaca a importância de se falar de um local de fala e que existem certas percepções sobre a realidade que são melhor acessadas quando a pessoa participa diretamente da realidade como agente dela. Porém, fala sobre o compromisso, empatia e responsabilidade enquanto pastor.

“Eu acredito em empatia e acredito que nós podemos entrar na dor do outro e aprender com a dor do outro. Não escrevo como quem desvenda todos os mistérios do mundo feminino ou como quem está vivendo na alma a dor de quem está na cultura de apagamento. Escrevo com um teólogo discutindo textos bíblicos que falam sobre mulheres e tento apresentar um caminho mais justo”, finaliza Yago Martins.