Djalba Lima

Cinco décadas após sua morte, em 4 de dezembro de 1975, Hannah Arendt permanece uma figura que provoca amor, irritação, fascínio e desconforto — não necessariamente nessa ordem. Mais do que uma filósofa, foi uma testemunha privilegiada e ferida das convulsões do século XX. Nada em sua vida foi simples. Nada foi linear. Nada foi cômodo. Talvez por isso sua obra continue tão viva.

Arendt nunca pertenceu totalmente a lugar algum — e, mesmo quando pertencia, escapava.

Juventude brilhante e amor proibido com Heidegger

Nascida em Linden, no então Império Alemão, em 1906, Arendt era ainda uma jovem universitária quando se envolveu com Martin Heidegger, seu professor em Marburg — um dos filósofos mais influentes (e mais controversos) do século XX. Ele, 17 anos mais velho, casado, intelectual em ascensão. Ela, uma estudante judia de 18 anos, talentosa e ardente.

A relação, marcada pela intensidade e por longos silêncios, moldou profundamente Arendt — intelectualmente, afetivamente e até moralmente.

Hannah Arendt e Martin Heidegger: filósofos alemães | Fotos: Reproduções

Décadas depois, seu perdão público a Heidegger, que aderiu ao nazismo em 1933 e se tornou reitor de uma universidade sob o regime hitlerista, continuou sendo um dos aspectos mais criticados de sua trajetória. Muitos nunca lhe perdoaram esse ponto cego. Outros veem aí justamente a chave de sua humanidade trágica: a incapacidade de reduzir uma vida às suas escolhas políticas, mesmo as escolhas mais sombrias.

Arendt nunca foi indiferente à fragilidade humana — nem à sua própria.

A primeira fuga: Berlim, 1933

Em 1933, aos 27 anos, Arendt experimenta o poder esmagador dos regimes totalitários de forma direta. Detida pela Gestapo por “atividades suspeitas” — ela coletava material sobre propaganda antissemita — passou dias sendo interrogada. Liberada por circunstâncias nunca totalmente esclarecidas, entendeu que não teria uma segunda chance.

Uma análise do passado que serve como alerta para o presente | Foto: Companhia das Letras

Com a mãe, Marta, atravessou clandestinamente a fronteira para a Tchecoslováquia e dali para Paris. Foi a primeira de suas fugas, mas não a última.

Paris: o exílio, a militância e a condição de apátrida

Durante oito anos na França, Arendt viveu uma vida dupla: de um lado, a rotina árdua dos refugiados judeus; de outro, uma militância profunda em organizações sionistas, especialmente a Youth Aliyah, que ajudava adolescentes a emigrar para a Palestina.

Em 1937, por decisão do governo nazista, Arendt teve sua cidadania alemã cassada. Tornou-se o que mais tarde descreveria como “pária por destino” — uma condição que marcaria toda sua reflexão sobre direitos, pertencimento e cidadania.

1940: o campo de Gurs e a segunda fuga

Com a invasão alemã, a França classificou todos os alemães como “estrangeiros inimigos”. Judia, Arendt foi enviada ao campo de internamento de Gurs, com milhares de mulheres, muitas delas intelectuais, artistas, militantes.

Um mês depois, aproveitando a desorganização administrativa do campo, fugiu. Era sua segunda evasão de um regime que se pretendia total. Reencontrou o marido Heinrich Blücher na zona não ocupada, em Montauban.

A vida dos dois dependia agora de algo que não podiam controlar: documentos, vistos, milagres burocráticos.

Travessia pela Espanha e a sombra de Walter Benjamin

Graças à rede de resgate organizada por Varian Fry, o “Schindler americano dos intelectuais”, Arendt e Blücher conseguiram vistos e seguiram para a Espanha franquista. Depois, alcançaram Portugal. Lisboa era o último porto da esperança europeia.

Em maio de 1941, embarcaram para Nova York.

Walter Benjamin: filósofo alemão que se matou aos 48 anos | Foto: Reprodução

O que Arendt talvez nunca tenha superado foi a perda do filósofo alemão Walter Benjamin, amigo querido e alma intelectual próxima. Ele tentou seguir a mesma rota clandestina pelos Pireneus. Impedido de entrar na Espanha pelos guardas franquistas e acreditando que seria entregue aos nazistas, suicidou-se em Portbou, em setembro de 1940.

Esse trauma ecoa em toda a obra de Arendt. Walter Benjamin era mais do que um amigo: era a voz que nunca se acomodava. O exilado por excelência. A ferida aberta da Europa sem chão.

Arendt carregou essa ausência pelo resto da vida.

Nova York: renascimento e controvérsias

Chegando aos Estados Unidos como apátrida — estatuto que manteve até 1951 —, Arendt reinventou sua vida e sua língua. Ali nasceram seus grandes livros, em especial:

“As Origens do Totalitarismo” (1951): uma obra monumental, analisando nazismo e stalinismo como fenômenos inéditos, marcados pelo terror, pela atomização social e pela destruição do espaço político.

Hannah Arendt capa de A Condição Humana ok2

“A Condição Humana” (1958): um relato histórico, antropológico e filosófico da existência humana em sociedade, desde a Grécia Antiga até a Europa moderna.

“Eichmann em Jerusalém” (1963): o livro que a faria odiada e incompreendida por parte da comunidade judaica, devido ao conceito de “banalidade do mal”.

Mas Arendt não escrevia para agradar. Escrevia porque precisava compreender.

A mulher que recusava rótulos

Hannah Arendt nunca aceitou ser chamada de filósofa. Dizia que só filosofava quando precisava. Preferia ser chamada de teórica política — ou, na falta de um termo melhor, simplesmente de observadora do mundo.

Era espirituosa, feroz, irônica, apaixonada, e incapaz de ser domesticada.

Intelectual sem pátria, mas profundamente fiel às pessoas que amava.

Hannah Arendt capa de Sobre a Violência ok33

Crítica do sionismo estatal, mas defensora intransigente do direito dos judeus à sobrevivência.

Crítica do comunismo soviético, mas fervorosa defensora da participação política e da liberdade.

Arendt era feita de paradoxos — mas paradoxos vivos.

Cinquenta anos depois: mais viva do que nunca

Cinco décadas após sua morte, Hannah Arendt continua sendo uma das vozes mais necessárias para pensar o presente: as derivas autoritárias, o avanço dos populismos, o culto da mentira, a erosão da verdade e a perda do espaço político.

Sua vida – partida, reconstruída, marcada por fugas e renascimentos – é inseparável de sua obra.

Seus amores, suas perdas, sua teimosia, sua lucidez dolorosa – tudo isso ainda ressoa.

Hannah Arendt viveu exatamente como pensava: recusando a servidão, mesmo a servidão às ideias.

Por isso, talvez, continue tão atual. Porque sua vida nos obriga a encarar a pergunta mais inquietante de todas:

Como permanecer humano quando o mundo inteiro parece conspirar contra a humanidade?

Djalba Lima, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.

Leia sobre a poeta Hannah Arendt

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