Geração Z transforma criatividade em lucro e muda as regras do jogo no mercado profissional
23 outubro 2025 às 14h00

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A Geração Z, composta por nascidos entre 1997 e 2010, está remodelando o mundo profissional a partir de seus alicerces. Movendo-se para além dos setores tradicionais que outrora atraíam as gerações anteriores, esses jovens priorizam propósito, alinham suas carreiras a valores pessoais e abraçam o empreendedorismo não como um plano B, mas como uma via legítima de realização.
Projeções da consultoria McKinsey ilustram esta mudança demográfica de forma contundente: em 2025, um quarto da força de trabalho global será formada por esses jovens. Em 2030, esse número saltará para 30%. Para entender na prática os contornos dessa revolução, o Jornal Opção mergulhou nas trajetórias de dois profissionais que encapsulam a essência desta geração: a artesã digital Vitória Ferreira e o ilustrador Kleber Santana. Suas histórias revelam um caminho onde paixão e profissão não são mais polos opostos.
A arte de tecer uma carreira
Aos 25 anos, Vitória Ferreira dificilmente imaginava que suas mãos, que um dia seguravam apenas livros da faculdade de Jornalismo, construiriam um império de fios e fantasia. O descontentamento com uma rotina unidimensional foi o estopim. “Eu estava naquilo só fazendo faculdade e nada mais e eu pensei ‘nossa tenho que fazer alguma coisa a mais com a minha vida’”, recorda-se. O convite veio de um lugar familiar: o armarinho da sua mãe. Foi ali, entre novelos e agulhas, que ela teve seu primeiro contato com o crochê, incentivada pela mãe que lhe mostrava pontos e sugeria projetos “rapidinhos”.
O que começou como um passatempo despretensioso, sem ambição comercial, rapidamente ganhou os contornos de uma vocação. A transição do hobby para o negócio foi orgânica, quase um acidente feliz. “Eu comecei despretensiosamente só para fazer uma obra, não queria vender, não tinha intenção de fazer virar um negócio”, confessa. No entanto, o encantamento das pessoas que a seguiam nas redes sociais pela sua arte foi o termômetro que indicou um potencial inexplorado. A decisão, então, tornou-se lógica: “‘eu vou vender, já que eu estou fazendo uma coisa que eu gosto e ainda vai me dar dinheiro’”.

O universo que Vitória escolheu dominar foi o do amigurumi, uma técnica japonesa. “O amigurumi consiste na técnica de fazer um boneco 3D de crochê”, explica, destacando a quebra de paradigmas. “A gente conhece o crochê como uma arte, fazer uma roupa, fazer um tapete… Mas o amigurumi é tipo um boneco 3D que você consegue fazer com linha e agulha”. Desenvolvida nas décadas de 80 e 90, a técnica só alcançou popularidade global por volta de 2018, timing perfeito para o ingresso de Vitória no mercado.
Ela viu o nicho explodir e, com ele, a oportunidade de “quebrar tabus e preconceitos que a gente achava que era o crochê”.
A evolução do seu negócio é um estudo de caso em gestão e autoconhecimento. Após um período inicial fazendo de tudo um pouco para captar clientes um “bichinho ou boneca”, ela percebeu onde sua paixão e seu talento realmente brilhavam: nos personagens.
A decisão de nichar seu trabalho foi o estopim para que seu sucesso crescesse ainda mais. “Quando a gente está começando a gente pega de tudo para ter cliente… Só que quando a gente começa a crescer mais, aí a gente pensa ‘não, vou começar a nichar o meu trabalho porque agora eu consigo recusar alguns tipos de serviços’”. Essa especialização a permitiu focar no que ama e aprimorar sua técnica a ponto de superar constantemente as expectativas de sua comunidade de fãs.
A jornada comercial também foi de aprendizado. No início, as vendas eram por encomenda ou de peças prontas, um processo que exigia divulgação incansável “na raça”. A precificação foi outra curva de aprendizado. “No começo eu cobrava bem baratinho”, admite, até perceber o valor real do seu tempo e expertise. “Eu tive que colocar mais valor de venda no que eu queria pegar… porque eu demorava muito tempo para fazer, porque tem amigurumi que demora duas horas para fazer quando é pequenininho, só que tem amigurumi que demora três dias para fazer”.
A grande virada, no entanto, veio com a transição do produto físico para o intelectual. Vitória descobriu que poderia escalar seu negócio e reduzir a carga de trabalho focando na venda de receitas – os tutoriais em PDF que ensinam outras pessoas a criarem seus próprios amigurumis. “Quando eu comecei a ver que só vender as receitas me sustentava, aí eu comecei a fazer só as receitas”, relata.
Ela descreve a receita como “tipo a receita de bolo”, um documento minucioso que lista materiais, pontos e cada etapa do processo, com abreviações que, para um leigo, parecem “uma coisa matemática muito maluca”, mas que se tornam claras para os iniciados.
A produção de uma receita é um projeto em si, que pode levar dias. Envolve confeccionar a peça, fotografar cada passo, escrever as instruções e diagramar tudo em um PDF visualmente atraente, trabalho que ela realiza sozinha usando ferramentas como o Canva. Paralelamente, ela alimenta um canal no YouTube com tutoriais em vídeo e, sua jogada mais mestre, criou um clube de assinatura mensal na plataforma Apoia.se.
Lá, seus apoiadores têm acesso a conteúdos exclusivos, um modelo de negócio que gera receita recorrente e fortalece a sensação de comunidade. “Antes de eu falar o tema que vai ser, as pessoas já pagaram o mês, sem saber o que vai ser, sem saber o que vai vir, por conta dessa credibilidade que a gente cria”.
Sua estratégia de divulgação é multicanal e meticulosa. O Instagram @amigurumisdavit é sua praça principal, usada para direcionar tráfego para seu site, onde as receitas são vendidas e baixadas automaticamente, e para promover o clube de assinatura. O YouTube, que já gera renda por monetização, é sua segunda maior rede e, em sua opinião, tem potencial para ultrapassar o Instagram em relevância.

TikTok, Pinterest e até mesmo o Twitter, onde mantém um perfil mais descontraído que ocasionalmente viraliza, completam seu ecossistema digital. “Eu sempre estou postando em todas as redes para atingir todo tipo de público possível”, afirma.
A pandemia de COVID-19 foi um catalisador para o seu negócio. “Muita gente ficou em casa sem ter o que fazer e foi atrás de hobbies e coisas diferentes para ocupar a cabeça. E aí o crochê cresceu muito nessa época”, contextualiza. Foi nesse período que ela consolidou a viabilidade financeira da sua arte. A constância e a construção de uma relação de confiança com seu público foram os pilares. “Quem não é visto é esquecido, né?! Então tem que estar sempre ali para a galera que está te apoiando”.
A empreendedora, que hoje consegue uma renda fixa mensal de cerca de R$ 5.000, com picos que podem ultrapassar R$ 10.000, faz questão de enfatizar a exaustão que acompanha o sucesso. “Eu faço todo o meu trabalho sozinha, eu fiz tudo do zero e tive todas as ideias sozinha… E além de ter tudo sozinho, eu faço a gerência de tudo sozinha, não tenha ajuda, o que é muito cansativo”.
Apesar do cansaço, a realização é inegável. “Eu jamais imaginaria que esse fosse ser o meu trabalho hoje em dia porque eu achava que viver de crochê era uma ilusão, né? Só que é possível, sim”. Terminar a faculdade de Jornalismo foi um ato de prudência, um “plano B” que felizmente não precisou ser acionado. O plano A, tecido ponto a ponto com linhas e criatividade, mostrou-se não apenas viável, mas gratificante.
O ilustrador que desenha seu próprio mercado
Aos 27 anos, Kleber Santana personifica a busca por um lugar em um mercado que tradicionalmente não é fácil para os que estão fora dos grandes eixos. Sua história com a ilustração não começou como uma ambição profissional clara, mas como um amor primordial por livros e pelo ato de desenhar.
“Assim que eu entrei na escola eu já amava ir à biblioteca e tentar fazer os meus próprios livros em casa com a ajuda da minha mãe”, rememora. A paixão pelo desenho era uma constante, mas a compreensão de que existia uma profissão por trás daquilo era nebulosa. “Para mim os livros, desenhos animados e histórias em quadrinhos simplesmente existiam e era isso”.

Conforme foi crescendo, o véu se levantou. A descoberta de autores, editoras e ilustradores abriu um mundo de possibilidades, ainda que distante. Na escola, a pressão do entorno o levou a internalizar a ideia de que arquitetura era o caminho natural para alguém com seu talento. Foi para a Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV UFG) que ele rumou, mas seu coração permaneceu no universo das narrativas visuais. Foi através de matérias de núcleo livre em Artes Visuais e de cursos de capacitação na Escola do Futuro de Goiás em Artes Basileu França que ele começou a adquirir as ferramentas concretas para sua futura profissão.
A motivação para transformar o desenho em carreira brotou de uma necessidade intrínseca. “Uma necessidade de desenhar, criar coisas que eu gostaria de ver existindo e de me aproximar do mercado editorial, que sempre foi um interesse meu”, reflete.
Na adolescência, ao mergulhar no mundo dos livros, descobriu uma cena de jovens autores e ilustradores nacionais. O desejo de fazer parte daquele ecossistema o levou a uma pesquisa sobre a carreira desses profissionais, tentando decifrar o caminho das pedras.
Hoje, seu trabalho está ancorado no mercado editorial. Atua como ilustrador, dando forma visual a textos, e como capista, responsável desde a ilustração e o lettering até o design final da capa. Seus clientes são uma mistura de editoras estabelecidas, como a Novo Século, no Brasil, e a Secret Society, selo jovem da Penguin Random House Portugal, e autores independentes, para os quais ilustrou projetos como o livro “Perfis de Que Vive a Cultura”, de Amanda Costa. Também deixou sua marca em novas edições de clássicos para a editora Alta Books.

Caporalli e ilustrado por Kleber Santana | Foto: Divulgação
Questionado sobre o papel de sua geração na transformação do mundo do trabalho, especialmente nas áreas criativas, Kleber exibe um olhar nuanceado, longe de qualquer idealismo ingênuo. “Depende”, pondera. Reconhece que a Geração Z tem trazido maior atenção a questões como a redução da carga horária e o equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Na ilustração e na literatura, vê um interesse genuíno em representatividade e na produção de obras que dialoguem com as vivências da juventude brasileira.
No entanto, alerta para os obstáculos estruturais. “Como a geração ainda é majoritariamente formada por profissionais com pouco tempo de carreira ou iniciando sua vida profissional, percebo que poucos de nós ocupam posições e cargos em que se tem poder para definir o rumo das coisas e isso acaba por limitar nossa capacidade de mudar a realidade do mercado”. Kleber acrescenta a esta equação a ameaça da inteligência artificial, um cenário econômico global desfavorável e a precarização do trabalho, concluindo que muitos jovens “acabam gastando todas as nossas energias em sobreviver ao mercado ao invés de efetivamente conseguir transformá-lo”.
A conquista do seu espaço não foi trivial. Estar em Goiás, longe do epicentro do mercado editorial no eixo Rio-São Paulo, impôs uma barreira geográfica significativa. “Tive e tenho bastante dificuldade em me aproximar dos profissionais e possíveis clientes”, confessa.
Tudo se resume a e-mails, em um jogo de números onde se envia “centenas de emails para talvez receber cinco respostas e conseguir viabilizar minha participação em um ou dois projetos”. O primeiro projeto, ele garante, é sempre o mais difícil. A partir dele, o portfólio se constrói, a confiança se estabelece e as indicações começam a surgir.
Este foi o primeiro ano em que a ilustração se tornou sua principal fonte de renda, um marco em uma trajetória de anos. Viver de um trabalho criativo, ele descreve, é um desafio que exige “muita organização, comprometimento e planejamento financeiro”. A ausência de um contrato CLT significa arcar com riscos e ser autossuficiente. “Não é fácil, nem é o ideal, mas é o caminho que a maioria dos artistas acaba trilhando”. Ele critica a falta de políticas públicas e de uma indústria criativa consolidada no Brasil que possa oferecer estabilidade aos profissionais da área.
A tecnologia, para Kleber, é uma ferramenta fundamental, não necessariamente no ato de criar – onde usa programas comuns de design -, mas no acesso ao mercado e ao conhecimento. “Acho que se eu não tivesse iniciado minha carreira com a existência da internet, dificilmente eu teria conseguido acessar esse mercado”, reconhece.
A internet moldou o estilo de sua geração, proporcionando um acesso sem precedentes a referências globais e fomentando “comunidades de artistas de diversos países com interesses similares”. Esta “cultura virtual”, no entanto, gera um dilema: como equilibrar as influências globais da sua “bolha” online com a cultura e a comunidade local. “Achar esse equilíbrio entre cultura local e cultura virtual ainda é algo com o qual eu estou aprendendo a lidar”.
Seu conselho para os jovens que aspiram a uma carreira criativa é pragmático e desprovido de clichês motivacionais. “Pesquisar o máximo possível antes de tomar qualquer decisão, buscar entender como funciona o mercado no qual você quer se inserir e tentar adotar uma abordagem mais flexível em relação à carreira”. Abandona a ideia romântica de um único caminho predestinado. “Talvez você siga uma carreira criativa que você ainda nem sabe que existe, talvez seguir uma carreira criativa seja manter um outro trabalho por um tempo… e talvez seu contato com sua criatividade seja como um hobby”.
Ele é crítico ferrenho da máxima “siga seus sonhos e dará tudo certo”. “Às vezes as coisas não dão certo e precisamos ter isso em mente”, argumenta, enfatizando a importância de, paralelamente, lutar por direitos trabalhistas e seguridade social.
Olhando para o futuro, seus planos envolvem diversificar sua atuação. Embora o mercado editorial seja seu porto seguro atual, ele almeja explorar os mercados publicitário e fonográfico e migrar para a direção criativa. “Embora eu ame desenhar, o que me interessa mesmo é criar conceitos, ter ideias e traduzi-las através das mais diversas mídias; e participar de projetos colaborativos”.
Sobre o papel das profissões criativas, sua visão é de importância estratégica. “Conforme os mercados se tornam cada vez mais competitivos, criatividade e inovação são essenciais”. Ele enxerga no Brasil e em Goiás um “potencial para ser uma referência mundial na indústria criativa”, citando a alta qualidade da arte, literatura, música e cinema nacionais, que, com investimento e incentivo adequados, poderiam contribuir muito mais para o desenvolvimento do país.
As trajetórias de Vitória Ferreira e Kleber Santana, embora distintas em suas expressões, uma no tátil mundo do crochê, outro no universo digital da ilustração, são fios da mesma teia. A Geração Z não está chegando ao mercado de trabalho. Ela está, ponto a ponto, traço a traço, construindo um novo mercado à sua própria imagem e semelhança.
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