Escrevo sobre feminicídios na esperança de um dia não precisar escrever mais
17 dezembro 2025 às 19h51
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Eu cresci aprendendo que o silêncio protege. Protege a família, protege o nome, protege o homem. Aprendi cedo que a violência doméstica não começa com o soco — começa com o medo. Com o controle. Com a humilhação cotidiana. Meu pai já foi preso por violência doméstica. Essa frase, que para muitos ainda soa como um escândalo, para mim é um dado da infância. Um marco. Uma ferida que nunca fecha completamente.
Hoje, sou jornalista. E ironicamente — ou tragicamente — escrevo quase todos os dias sobre aquilo que marcou a minha história: mulheres violentadas, agredidas, assassinadas. Escrevo sobre feminicídios na esperança íntima, quase ingênua, de que um dia eu não precise mais escrever sobre isso.
Mas as manchetes não cessam. São Christinas, Railmas, Tainaras, Danieles, Catarinas, Layses, Marias. No Brasil, na Índia, no México, nos Estados Unidos. Em zonas de guerra e dentro de casas aparentemente comuns. Mulheres mortas por homens que diziam amá-las. Ou que diziam corrigi-las. Ou possuí-las.
A violência contra a mulher não é um desvio de caráter ou surto momentâneo. Ela é um projeto histórico.
Desde que o mundo foi organizado sob estruturas patriarcais, o corpo feminino passou a ser território de disputa, controle e punição. A mulher foi transformada em propriedade — do pai, do marido, da igreja, do Estado. Quando desobedece, quando rompe, quando tenta existir fora do script, a violência aparece como instrumento de correção.
O feminicídio é o estágio final de um ciclo que começa muito antes do crime. Começa quando meninas aprendem a baixar a voz. Quando mulheres são ensinadas a tolerar o intolerável. Quando denúncias viram “exagero”. Quando agressões viram “problema de casal”. Quando a sociedade pergunta “o que ela fez?” antes de perguntar “por que ele fez?”.
Não é só o Judiciário que falha — embora falhe muito.
Não é só a polícia que chega tarde — embora chegue.
A violência contra a mulher é sustentada por um sistema inteiro:
pela política que legisla sobre nossos corpos sem nos ouvir;
pela igreja que prega submissão feminina em nome de Deus;
pela cultura que erotiza a violência e romantiza o controle;
pela imprensa que, muitas vezes, transforma assassinatos em espetáculos;
pela sociedade que se mobiliza por alguns dias e logo esquece.
Quando o Congresso dificulta o aborto legal de meninas estupradas, ele não protege a vida — ele protege o agressor. Quando líderes religiosos silenciam diante da violência doméstica, mas discursam sobre moral, eles escolhem um lado. Quando o Estado reage apenas após a morte, ele confessa sua falência.
E quando uma mulher morre, todos dizem: “ninguém poderia prever”. Poderia. Sempre pôde.
Os sinais estão lá: na denúncia ignorada, na medida protetiva descumprida, no agressor reincidente, na ameaça banalizada. O feminicídio não é um raio em céu azul. É um incêndio anunciado.
Casos emblemáticos se acumulam como memória coletiva da negligência: Marielle Franco, executada por desafiar estruturas de poder. Eliza Samudio, assassinada após denunciar violência. As milhares de mulheres anônimas cujos nomes não viram hashtag, mas cujas mortes seguem o mesmo roteiro.
O mundo inteiro convive com essa epidemia. Em países ricos ou pobres, democráticos ou autoritários, o feminicídio se manifesta com sotaques diferentes, mas com a mesma raiz: a ideia de que a vida das mulheres vale menos.
Eu escrevo porque sobrevivi.
Escrevo porque minha mãe sobreviveu.
Escrevo porque muitas não sobreviveram.
Escrevo porque sei que a violência doméstica não destrói só corpos — destrói infâncias, subjetividades, futuros.
Mas escrever somente não basta.
Não basta indignação passageira.
Não basta luto performático.
Não basta endurecer penas sem prevenir a violência.
É preciso desmontar o sistema que produz homens violentos e silencia mulheres feridas. É preciso educação de gênero desde a infância, políticas públicas estruturadas, orçamento contínuo, responsabilização do Estado, enfrentamento direto ao machismo — inclusive dentro das igrejas, dos parlamentos e das redações.
Enquanto a sociedade insistir em ensinar homens a dominar e mulheres a suportar, o ciclo continuará.
Eu sigo escrevendo. Mas sonho com o dia em que essa coluna, esse texto, essa dor, não sejam mais necessários.
Porque viver não pode ser privilégio.
E porque, um dia, eu quero escrever apenas sobre mulheres que vivem.
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