Emendas parlamentares viram combustível do desmatamento na Amazônia

12 outubro 2025 às 10h00

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O uso de emendas parlamentares para a compra e distribuição de máquinas pesadas na Amazônia acende um alerta sobre a fronteira entre legalidade e crime ambiental. Nos últimos dez anos, menos de 1% das verbas destinadas por deputados e senadores ao orçamento federal foi direcionado ao meio ambiente, enquanto 1.648 máquinas chegaram a municípios da região, muitas vezes empregadas em obras associadas a desmatamento e abertura de estradas ilegais.
O contraste entre discurso ambiental e execução orçamentária revela uma contradição ética e institucional. De um lado, parlamentares defendem o desenvolvimento local e o direito de direcionar verbas a suas bases eleitorais; de outro, órgãos de controle identificam que as mesmas emendas funcionam como mecanismo indireto de incentivo a crimes ambientais.
Segundo dados do portal Siga Brasil, entre 2015 e 2024 foram empenhados R$ 298 bilhões em emendas parlamentares. Desse total, apenas R$ 520 milhões foram destinados ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e somente R$ 11,6 milhões chegaram à Amazônia Legal, o equivalente a 2,2% do valor total. Já a compra e distribuição de máquinas, como tratores e escavadeiras, ultrapassaram R$ 900 milhões no mesmo período.
O debate ganha maior relevância diante da proximidade da COP30, que será realizada em Belém, entre 10 e 21 de novembro. O evento coloca o Brasil sob os holofotes internacionais e destaca a necessidade de transparência e responsabilidade no uso dos recursos públicos, principalmente em regiões estratégicas para a preservação ambiental.
Esses equipamentos foram distribuídos por programas como o Calha Norte e a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), apontados por técnicos e ambientalistas como emendodutos, canais usados por congressistas para irrigar suas regiões de influência política.
Criados originalmente para fins de defesa e desenvolvimento regional, os programas ampliaram suas áreas de atuação e passaram a entregar maquinário a municípios sem planejamento ambiental nem estrutura de fiscalização.
O presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, afirma que o órgão acompanha com preocupação o uso indevido dessas máquinas na Amazônia. “O que a gente percebe é uma utilização ilícita. Em muitos lugares, o maquinário é o instrumento do crime. Da mesma forma que alguém usa uma arma para cometer um assalto, essas máquinas são usadas para abrir estradas, desmatar e facilitar a extração ilegal de madeira”, disse.
Agostinho alerta que o problema vai além da destruição ambiental: ele revela um vácuo de accountability, ou seja, uma ausência de mecanismos eficazes de controle, transparência e responsabilização sobre o uso das verbas públicas. Nesse cenário, parlamentares conseguem direcionar recursos e máquinas para seus redutos eleitorais sem que haja acompanhamento sobre o destino e a finalidade do equipamento, nem sanções claras em caso de desvio.
“Trator de esteira não é para enterrar lixo de cidade pequena, é para derrubar floresta. Precisamos de respostas da sociedade e do poder público. O dinheiro público não pode ser usado contra o patrimônio ambiental do país”, afirmou o presidente do Ibama.
O avanço das emendas e a falta de controle se intensificaram após a mudança constitucional de 2015, que obrigou o Executivo a executar as emendas individuais. Em dez anos, o volume de recursos sob controle direto do Congresso saltou de R$ 6 bilhões para cerca de R$ 50 bilhões anuais. Esse aumento de poder orçamentário ampliou a autonomia parlamentar, mas também criou brechas para práticas clientelistas e para o uso político de bens públicos.
Prefeituras de pequeno porte, muitas vezes sem capacidade técnica, acabam recebendo equipamentos que podem ser utilizados tanto em obras de infraestrutura quanto em atividades ilegais de exploração de recursos naturais, como desmatamento e garimpo.
Em nota, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), afirmou que o Congresso “não emite juízo de valor sobre as escolhas alocativas de parlamentares”, mas destacou que “a preservação ambiental e o desenvolvimento sustentável são compromissos globais que exigem ação conjunta de governos, instituições e cidadãos”. A Câmara dos Deputados não se manifestou.
O caso expõe um paradoxo moral e político. Em nome do desenvolvimento regional e da disputa por capital político, parte dos parlamentares tem transformado um instrumento legítimo da democracia, as emendas, em vetor de retrocesso ambiental.
O desafio do governo e das instituições de controle é restaurar a transparência e a rastreabilidade no uso das verbas públicas. Sem isso, o vácuo de accountability continuará permitindo que decisões políticas locais alimentem o mesmo desmatamento que o Brasil promete combater nos fóruns internacionais.
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