Efeito Enem: redações em série e o preço da escrita padronizada nas escolas e nas redes
15 outubro 2025 às 17h03

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Sinval Martins de Sousa Filho e Sirleide de Almeida Lima
Especial para o Jornal Opção
Talvez o desafio mais urgente seja devolver à escrita o que dela foi retirado: o direito à diferença.
É, no mínimo, preocupante o modo como os chamados modelos prontos de redação — difundidos em escolas, cursinhos e redes sociais — vêm sendo tratados como sinônimo de “texto bem escrito”. As estruturas fixas, os repertórios coringas e as expressões rebuscadas substituem, cada vez mais, a reflexão e a autoria dos estudantes. O que deveria ser um exercício de pensamento se transforma em uma simples operação de preencher lacunas.
A fórmula é conhecida: uma tese previamente formatada, dois parágrafos de desenvolvimento genéricos e uma conclusão que termina com a promessa de “medidas que devem ser tomadas para mitigar os problemas supracitados”. Nessa escrita de laboratório, a autoria se perde. Fica a dúvida: será que o aluno ainda consegue escrever um parágrafo com autonomia, sem recorrer a um modelo?
Esses textos seguem o padrão das redações “nota mil” do Enem, que se tornaram referência quase exclusiva para o ensino de escrita nas escolas. A redação escolar, antes espaço de criação e expressão, passou a ser um campo de treinamento, regido por regras fixas e previsíveis. No lugar da aprendizagem, instala-se o condicionamento; no lugar da autoria, a memorização. Escrever, assim, é decorar e completar.
Há quem defenda os modelos prontos como “ferramentas didáticas” capazes de reduzir as dificuldades de escrita. Mas o efeito real é outro: eles condicionam os estudantes a pensar dentro de um molde. A escrita se torna mecânica, repetitiva, e o resultado é o empobrecimento do pensamento crítico e da sensibilidade linguística. Produz-se, em série, o aluno que escreve para agradar o avaliador, não para dialogar com o mundo.
Um dos exemplos mais evidentes desse fenômeno é o modelo amplamente divulgado pelo edutuber Felipe Araújo, criador da plataforma Educacione. Seu “modelo nota 1000”, divulgado no YouTube, promete se encaixar em qualquer tema do Enem. O texto começa com a citação da obra “Utopia”, de Thomas More — tratada, de modo simplista, como “sociedade perfeita” — e segue um roteiro de frases prontas e espaços a serem completados com o tema da redação. O resultado é um texto artificialmente coeso, mas vazio de reflexão.
O sucesso desse tipo de conteúdo, replicado em vídeos, plataformas e cursos pagos, revela o avanço de uma lógica perigosa: a da mercantilização do ensino. A redação transforma-se em produto; o estudante, em consumidor. Sob o discurso da “democratização do acesso”, o que se vende, na prática, é um treino de obediência discursiva, uma simulação de autoria. No capítulo de livro intitulado A redação do Enem à luz dos gêneros do discurso, Araújo e Sousa Filho (2018) consideram a redação do Enem como um dispositivo de subjetivação: uma tecnologia pedagógica que molda sujeitos para reproduzir discursos aceitos, e não para criar novas formas de dizer.
O problema é que esse teatro da escrita vai muito além da sala de aula. A cultura dos modelos prontos reforça a ideia de que pensar é arriscado e que criar é perda de tempo. Nas escolas, professores pressionados por resultados reproduzem o treinamento. Nas redes, os algoritmos premiam o conteúdo que promete sucesso rápido. No fim, o que se perpetua é uma pedagogia da padronização, que transforma a escrita em performance e o estudante em ator de um texto que não é seu.
Formar cidadãos críticos e criativos
Escrever, contudo, deveria ser o contrário disso. Deveria ser um gesto de invenção, de descoberta, de encontro com a própria voz. Mas, diante da lógica das notas e dos “protocolos do sucesso”, o que se ensina é a repetir – e a simular autoria dentro dos limites da obediência. Os modelos prontos treinam para a nota, não para a vida.
Enquanto isso, a escola se vê tomada por um paradoxo: fala-se em formar cidadãos críticos e criativos, mas se exige deles a redação perfeita, uniforme e previsível. A escrita, reduzida a técnica, deixa de ser linguagem viva. A voz do estudante, domesticada por fórmulas, perde sua força de expressão.
Talvez o desafio mais urgente seja devolver à escrita o que dela foi retirado: o direito à diferença. Formar escritores autênticos não é fazê-los repetir um molde, mas convidá-los a pensar, sentir e dizer o mundo com suas próprias palavras. E isso, definitivamente, não cabe em um modelo.
Sinval Martins de Sousa Filho é professor da Universidade Federal de Goiás. Sirleide de Almeida Lima é aluna da pós-graduação da UFG.
